domingo, 26 de dezembro de 2010

QUERO MEUS DIREITOS DE VOLTA (conto de ano novo)


Falamos tanto de direitos humanos, de direito civil, direito isso, direito aquilo, mas nos esquecemos do melhor dos direitos: o direito de podermos comandar nosso eu interior, nossos passos da alma, nossas emoções. O direito que podemos e devemos nos dar de vivermos o melhor de nossas escolhas.

Enquanto olhamos para fora, para a crítica da mídia, do sistema, do planeta, do isso e do aquilo, quem sabe, não estejamos, antes de tudo, mascarando os direitos mais profundos e internos de nossa própria vida, aquilo sobre o que podemos decidir sobre nós mesmos, antes de decidirmos sobre o que existe fora de nós.

Não sou contra a luta social, muito pelo contrário. Na juventude fiz passeatas, participei de greves, vesti camisas, me arrisquei a perder o emprego, mas não deixei por menos: fiz. Não me arrependo, era a hora de fazer e até me orgulho disso.

Mas há direitos que não podemos deixar de resgatar se os perdemos... e isso acontece com uma indescritível freqüência, um direito que nos foi dado, quando viemos ao mundo. Na maioria das vezes, o perdemos no bulício do cotidiano, da juventude, do trabalho, dos vieses da vida. Deixamos de lado a voz de nosso coração, somos racionais, práticos demais... ou somos excessivamente emocionais, apaixonados, impulsivos. Tudo certo. Tudo válido. Mas, muitas vezes, acabamos perdendo nosso rumo interior, na medida descompassada da mente e do coração.

Sempre tivemos os mais importantes dos direitos: os direitos que asseguram nosso livre arbítrio. Mas, quase sempre, nos esquecemos de que eles existem com a finalidade única e imprescindível de nos tornarmos aptos a lutar por nossa saudável felicidade.

O que me faz escrever isso hoje é uma soma incalculável de mostras de tanta infelicidade a minha volta, tanta dor, às vezes, tanto sofrimento interior. Também das minhas dores, não me excluo disso. Mas talvez esteja mais consciente agora do que antes.

E é por isso mesmo que faço um convite, por que não? Não há nada a perder, pelo contrário!

Se as coisas não andam como você deseja, que tal fazer uma passeata interior, entrar em greve de “vida” e gritar para você mesmo ou mesma:

QUERO MEUS DIREITOS DE VOLTA!

O melhor da história é que eles estão ao seu alcance, é só você se dar conta disso... e tomar as atitudes corretas. Quem sabe, sua vida dê uma reviravolta saudável a partir daí e, se você não está bem, é hora de começar a escrever o seu novo conto, seu verdadeiro conto de vida.

Muitas vezes, a mudança nem se dá no cotidiano exterior. O mais importante é o que vai na sua alma. Outras vezes, a mudança é mesmo total e muda tudo: o de fora para mudar o de dentro. Foi assim que aconteceu comigo. Mas não importa qual seja o seu caminho. Você veio com o direito de ser feliz. O problema é saber encontrar como... e... quem sabe, é bem mais fácil do que você imagina. Simplifique. A grande e maior sabedoria é tão simples que, muitas vezes, não conseguimos alcançá-la!... Não se iluda, ouça sua voz interior. Seja fiel a ela. É uma boa pista. Talvez a melhor.

Tente. Quem sabe a felicidade esteja a sua porta, na porta interior de sua alma. Ninguém usurpa os direitos de alma de ninguém. Se não os tem, ou melhor, se não os percebe vivos, faço este convite, de amiga, de mãe, de irmã, de alguém que te quer ver feliz porque também lutou por preservar a própria felicidade.

Lute por você: tenha seus direitos de volta!

Lutar por eles foi, um dia, o mais importante e verdadeiro conto da minha vida.

sexta-feira, 24 de dezembro de 2010

PEDIDO DE NATAL


Ah, Papai Noelzinho,
Você, que é tão bonzinho,
Aponta sempre o meu caminho
Para o lado mais certinho.

sexta-feira, 17 de dezembro de 2010

QUEM DIRIA (Alemanha 2)


Berlim: linda, magnífica, a cidade que não dorme. Bulício, festa, cores, luzes, vida. Passear perdida pela cidade até que as pernas andassem separadas do corpo, pois o cérebro deixa de pensar que existem, adormecidas, mas felizes. Prefiro saltar a parte de visita a Berlim Oriental, que deixo para um conto à parte. Voltemos nossos olhares para a festa. Enquanto meu “ex” passava praticamente os dias a cata de seus trenzinhos, eu me embebedava pelo colorido multifacetado da cidade, em suas ruas, museus e atrações as mais diversas. E foi no início de uma das manhãs que me vi numa pequenina agência de correio para despachar um dos pacotes de compras de cidadezinhas, casinhas e outras coisas do hobby de trenzinhos dele. Fazíamos isso, pois seria impossível carregar tudo em malas, pois precisam ser bem empacotados para que não quebrem, etc. Melhor despachar. Como eu não tinha compromissos, senão o de perambular pelas ruas, não me custava encarregar-me dos despachos, enquanto ele corria afoito para novas compras. Ele não queria perder um minuto do exame acurado das revistas com os números dos trens, vagões, casinhas e tudo mais que fazia seu hobby valer a pena. Eu, por meu lado, não tinha pressa. A cidade estava ali, para ser sorvida como um manjar dos deuses. Passar pelo correio, poderia fazer parte da festa. Nunca se sabe o que pode acontecer a cada passo. E, neste dia, foi surpreendente! Estar sem pressa é tudo nesta vida. Vivemos cada segundo intensamente, se soubermos que são segundos vitais... e eu sabia.

No que se refere ao aspecto financeiro, a vida me dava a oportunidade de poder entender e fazer isso. Passei por muitas experiências, desde o aperto financeiro mais agudo, na juventude, à possibilidade de viajar por aí, depois de recebida a herança de meu pai. Depois, novamente, novos grandes, intensos apertos, com o divórcio e, mais tarde, novas oportunidades de ardorosa e saudável subida. Talvez essa experiência multifacetada me tivesse dado sempre esse perfil de aproveitar as oportunidades pelo que posso trazer dentro de mim e não pelo que posso carregar nas malas e nos bolsos. Nada contra quem pense ou faça diferente, é claro. Se todos fossem iguais, a vida não teria mesmo graça... para mim, no entanto, naquela época, o que contava era a sede de conhecimento, não obrigatoriamente só acadêmico, mas de vida. Felizmente, aproveitei a oportunidade de poder fazê-lo da forma que me deu maior prazer. E, essencialmente, um conhecimento interior que só pude constatar, de fato, muitos anos depois.

Mas, voltemos aos correios: Entrei na agência como quem sabe tudo. Já havia feito tantas remessas, que sabia preencher os formulários de cor e salteado. Havia apenas dois funcionários atendendo (a agência era bem pequena!) e nenhum cliente. Preenchi os formulários (alemães adoram formulários!), etiquetei tudo com a meticulosidade germânica já minha conhecida e me aproximei do balcão. O atendente era um senhor bem forte (por que não dizer gordo?), bochechudo, olhos azuis escondidos pelas rugas da face, ligeiramente corado, barba branca bem tratada, cabelos idem. Muito simpático.

Pegou o pacote e me perguntou algo em alemão. Não entendi bulhufas. Ele repetiu. Nada. Perguntei se falava inglês, francês, espanhol, português. Nada. Então, ele olhou para mim, abriu os braços como asas flutuantes e perguntou:

- “By fly?”

E depois, juntando as mãos, como imitando um barco flutuando através do mar, perguntou:

- “ Or by ship?”

Entendi a pergunta: era para ir de avião ou de navio? Claro, de navio, é bem mais barato. Leva uns dois meses, mas quem tem pressa? O importante, no entanto, não foi isso. O que me chamara a atenção fora o jeito engraçado com que ele gesticulara. Tão engraçado, que não resisti: propositadamente, copiei seu gesto, tentando caricaturizá-lo ao extremo: juntei as mãos e as fiz flutuarem no ar escandalosamente, exatamente como ele fizera e repeti:

- “By shshiiippp!”

O senhor não resistiu. Soltou uma gargalhada tão gostosa e contagiante, que pensei que o mundo estaria todo feliz naquele momento. Comecei a rir também, contagiada e, logo, despregadamente. O funcionário ao lado, que a tudo assistira, caiu num riso solto, idem. E os três não conseguiam parar. Rimos de torcer, como quem pede para parar pelo amor aos deuses. Mas não conseguíamos. Era terrivelmente contagiante, como se fosse a piada do século, como se as crianças que habitavam em nós surgissem à tona, ao mesmo tempo.

Nesse momento, entrou um cliente, um desses alemães bem carrancudos. Olhou para nós três com olhar de quem não estava entendendo nada e também de reprovação. Éramos loucos ou coisa assim? Acenou com a cabeça e... retirou-se da agência. Pronto! Foi o suficiente para rirmos em dobro pelo ridículo que deveríamos ter passado ao carrancudo senhor...

Rimos muito muito muito. Rimos como amigos de infância que se encontram para uma tarde de aventuras e piadas. Rimos como seres humanos que se encontram felizes, independentes de raça, religião, cultura, língua ou crenças. Rimos cúmplices. Jamais me esquecerei. E por mais que tente, não consigo reproduzir a profundidade desse momento em palavras. Se puder, busque você imaginar o puro encantamento: “ by shshiiippp!”

Ah, Alemanha, cujo colorido e aventuras povoam meu coração...

Saí da agência levando na mente aquele rosto corado e simpático, a barba branca, a pança avantajada, os olhinhos azuis... e... principalmente, aquela gargalhada franca e contagiantemente gostosa.

E... de repente... tive a indescritível sensação de ter descoberto onde Papai Noel se esconde durante o ano: Quem diria!... Funcionário dos correios! Nada mais apropriado...

sábado, 11 de dezembro de 2010

PRECONCEITO (Alemanha 1)


Visitei a Alemanha, pela primeira vez, na década de oitenta, com um puríssimo preconceito pendurado a tiracolo, de quem ouviu a vida inteira que o povo alemão é rude, não sabe rir, não é gentil. Fui assim, esperando caras fechadas por todos os lados e preparada para enfrentar 20 dias de completa antipatia.

Entramos por Hamburgo, meu ex-marido e eu, vindos de Amsterdã, aquela cidade maravilhosa, super acolhedora, que já mereceu um conto à parte! Desci do hotel direto para um pequeno mercado para comprar frutas. Felizmente, ali, quase todos falam inglês. Foi aí que tive o primeiro e definitivo contato, com esse povo que saía, enfim, das telas de meus filmes de guerra da adolescência para a realidade. O mercado era bem pequeno, digamos, uma pequena venda, com apenas dois funcionários. Na verdade, pareciam ser o casal de donos. Estávamos no caixa, meu “ex” puxando o dinheiro para pagar as contas enquanto eu empacotava as frutas. O alemão do caixa era um senhor corado, gordo e de cara fechada. Pura rabugice, pensei eu. Mas... já que estava na chuva, continuei contrita minha tarefa de empacotamento, ansiosa por ir embora e me largar, ainda que tímida e titubeante, pelas ruas da cidade.

Foi, então, que aconteceu: antes de dar o troco a meu “ex”, o tal senhor olhou-me (sem sorrir) e me estendeu a mão com algo dentro. Instintivamente, estendi a minha, sem saber para quê. Ele, gentilmente, colocou uma pequenina moeda em minha mão e fechou-a delicadamente sem pronunciar palavra. Não sei se sorriu, mas pareceu sorrir. Olhei para ele e para moeda e traduzi, imediatamente, aquele pequeno brinde ao meu coração: bem-vinda a minha casa. Meus olhos se encheram de lágrimas, como boa latina que sou. Agradeci, comovida, entendida a gentileza de tão suave e sutil acolhida. Na rua, já estava com o rosto banhado em lágrimas, meu “ex” sem ter entendido nada, me perguntando o que significava aquilo tudo. Expliquei-lhe finalmente que tinha vindo àquele país com a maior má vontade (ele não sabia), apenas pelo amor de acompanhá-lo em seu capricho consumista (ele era ou é, colecionador de miniaturas de trens, hobby caro de pecinhas minúsculas, cujas fábricas são alemãs). De repente, tudo que eu pensara e construíra em minha mente a respeito do povo, tinha sido divina e poderosamente destruído pela singeleza do toque de alma daquele senhor gordo, corado e... tão gentil!!! Chorava de emoção, de culpa, de gratidão. Por muitos e muitos anos esta moeda me acompanhou, tomando o lugar de honra em meu porta-níqueis, até que, um dia, a perdi. Mas guardo aquele gesto até hoje, num cantinho especial de meu coração.

Daí por diante a Alemanha abriu meu coração para sempre. Não havia um lugar em que eu parasse, abrisse o mapa para me posicionar na cidade e não visse, imediatamente, algum alemão se aproximar: “may I help you?” Que povo maravilhoso! Minhas caminhadas por todas as cidades eram simplesmente magníficas. Fazia-as com sabor de festa, enquanto meu então companheiro passava os dias enfiado nas lojas a busca de seus trenzinhos de brinquedo. Vinte dias de liberdade de caminhadas, colhendo aqui e ali o que a alma deste povo esconde em seu interior. O país é pródigo em belezas naturais e estruturais, em museus, passeios, atrativos os mais variados. É possível andar para cima e para baixo, para todos os lados, no meio daquela língua belíssima, mas incompreensível, sem se perder. Tudo corre a tempo e a hora, numa organização ideal para o turismo com todas as facilidades de deslocamentos.

Nada de excursões. Grupos em que somos contados como carneiros não estavam em meus planos. Assim, a organização e a facilidade de achar-me e deslocar-me independente da língua tornava-se essencial. E a Alemanha é pródiga nesse item. Os trens saem absolutamente no horário, com exceção dos de Frankfurt que saiam com exatos cinco minutos de atraso, mas chegavam ao seu destino no horário estabelecido pelos folhetos. É claro que me refiro à década de 80. Agora não sei como são. O fato é que me senti completamente em casa em todas as vezes que fui lá e não foram poucas... e é o país de onde tenho mais aventuras para contar.

Lembro-me de uma passagem muito interessante no metrô de Munique. Eu estava encarregada, em todas as cidades, de conseguir um mapa miniatura do metrô para compor uma das inúmeras coleções do “ex”, cujo hobby compunha uma lista invejável de itens, entre relógios, mapas, latinhas de coca-cola, canhões de brinquedo, ferramentas, destacando os tais trenzinhos com suas cidadezinhas montáveis, itens aos quais ele dava maior vazão nas viagens.

A mim, não custava nada bambolear pela cidade a busca de mapinhas de metrô pequenos e bonitos (pois nem sempre eram oferecidos no metrô) para enfeitar o corredor de nosso apartamento. Eu não fazia lá muita questão desse tipo de enfeite, embora ficasse gracioso, confesso. Do que eu gostava mesmo era ter de serpentear pela cidade com o pretexto de encontrá-los. Perdia-me sem mapas (muitas vezes, abandonava os mapas e adorava me perder pelas ruas), justamente para buscar um mapa, imagine! Para mim, soava interessante. Pois bem, em Munique, não achava um mapinha que prestasse. Resolvi, enfim, ir direto ao metrô. Falaria com algum encarregado, perguntando onde poderia encontrar a minha prenda. Acabei por achá-lo, dias depois, numa banca de jornal escondida, mas, antes disso, teria de passar por uma pequena, mas deliciosa aventura:

Desci do hotel, num horário compatível com o pedido. Metrô sem muito movimento, tudo bem arquitetado em minha mente, pois, a essa altura, eu já estava entendendo um pouco como se fala com o povo alemão e em que situações a aproximação é mais promissora. É exatamente como os chiliques que também temos em nossa cultura e não nos damos conta que existem: tudo tem seu tempo e hora...

Me dirigi à bilheteria e foi onde eu entrei em contato, pela primeira vez, com o espírito de humor germânico. Fiquei ensaiando como falaria em inglês, já que o francês, língua de minha preferência, não é tão usada assim nos outros países europeus. Busquei meu sorriso mais significativo de socorro e perguntei ao jovem que estava atendendo: do you speak English? Aceno negativo. French? Não. Spanish? Não. Portuguese? Não. Caramba... então, ele sorriu (eu aprendera a ler o sorriso alemão!) e apenas me perguntou: Deutsch? Aí, sim, sorrimos os dois. São assim as piadas alemãs.

Eu não falava o único idioma que seria necessário falar naquele momento... tanta erudição jogada fora... Fora? Não: dentro! Ele deixou outro funcionário no lugar dele, deu a volta, saiu da “gaiola” e se dirigiu a mim gesticulando de modo a me fazer entender que eu me expressasse como desse. Isso é a rudeza alemã? É assim que eles tratam mal a gente? Valha-me um cartucho de sal! Francamente, eu não encontro isso em muitos lugares da terra...

Apontei para um out door com o mapa do metrô na parede. Vale o aparte: lá há mapas enormes, onde você pode ver todo o trânsito das incontáveis linhas de metrô – em alguns deles, você clica o botão com o nome da estação de destino num pequeno mostruário abaixo desse mapão e nele acende-se o roteiro, partindo da estação em que você se encontra até chegar à estação de destino. Assim, você pode acompanhar o trajeto, inclusive as baldeações, se necessário, sem precisar falar uma palavra de alemão.

Bem, voltemos ao conto: apontei para um desses mapões e fiz um gesto com as mãos, mostrando que gostaria daquilo em tamanho pequenininho. O jovem entendeu prontamente e fez aquela expressão de “lamento, mas não temos”. Fiz um gesto como quem pergunta onde poderia achar. Ele fez cara de quem não sabia, mas algo em seu olhar iluminou-se. Imaginei que ele tinha resolvido o meu problema. Fez sinal para que eu esperasse e sumiu entre as pessoas, entrando por uma porta restrita aos funcionários. Passei uns vinte minutos à espera. Se não estivesse na Alemanha juraria que ele tinha me deixado na mão. Mas não. Ele voltou com algo e me entregou. Imagine você: ele estava me dando um mapa daqueles enormes, um out door que caberia na parede de uma sala! Não posso pensar em como ele conseguiu aquilo, só para agradar a uma turista que ele nem conhecia. Mas fez. Olhei para ele estarrecida, com um olhar de admiração incontestável. Ele apenas sorriu singelamente, o melhor que um alemão convicto sabe fazer, acenou gentilmente a cabeça, como quem diz que “não foi nada, foi um prazer” e retirou-se para seu guichê. Sorri para ele, ainda, de longe, deixando bem claro o meu reconhecimento e minha gratidão. Eu não tinha a mínima idéia de para que aquele mapa me serviria, em casa, mas isso era o de menos. O que valera, ali, fora a boa vontade, a elegância, a delicadeza.

Ah, a Alemanha... de povo sério, de alma gentil. E de um humor que poucos sabem entender. Acho que ela vale mais um conto, um conto de natal, na semana que vem...

sábado, 4 de dezembro de 2010

O PASSAPORTE


Você conhece algo mais fácil do que tirar passaporte com antecedência? Não tem. Com antecedência, claro.

Meu primeiro passaporte demorou muito. Marinheira de primeira viagem e um sistema operacional manual, nos idos tempos da década de 70, me exigiu o fôlego e a paciência de tirar aquele retrato em estúdio de fotógrafo, segurando uma plaquinha com data aparente, no peito, e pano de fundo branco. Quem é da minha geração se lembra: típica foto de bandido em delegacia. Dali, providenciar uma lista inumerável de documentos, guia de banco (essa técnica já existia) e uma fila do caramba, na Polícia Federal da Praça Mauá. E esperar, claro. Ah, quase ia me esquecendo: acordar cedo, como quem entra em qualquer fila pública da época. E levar um lenço, pois lambuzavam todos os dez dedos para tomarem as impressões digitais pelo método de mil novecentos e vovô criança: uma tinta preta horrorosa espalhada em cada dedo, pegajosa, para que as nossas pegadas saíssem impressas na ficha da polícia. Aquela tinta que, uma vez lambuzada, colocava você diretamente em cheque com o desafio de não manchar sua roupa. Pode imaginar, não? Hoje, apesar de algumas exceções, as coisas melhoraram bastante nos órgãos públicos para darmos entrada em documentos. Pelo menos, você pega uma senha e senta. E se livra, também, de alguns desses desconfortos. Naquela época, além dessas técnicas do século passado, você ficava numa fila de dar voltas em quarteirão e era, literalmente, na rua mesmo, fizesse sol ou chuva. É verdade que tinha uma taxa de urgência. Com ela, você conseguia fazer em uns 15 dias, mas, nesse caso, era melhor contratar um tal de despachante. E saía bem caro. Além disso, tinha de enfrentar a fila, na mesma, no dia da impressão das digitais, etc.

Fora dessas circunstâncias, tirar passaporte com mais facilidade, só se fosse o consular ou, então, os chamados especiais, de empresas, etc. Nós, simples mortais, tínhamos de tirar com antecedência mesmo e com todos esses embaraços.

Mas as coisas melhoram com o tempo e foi graças aos primeiros avanços tecnológicos que vivi minha pequena, mas inesquecível aventura com a Polícia Federal, na saída do país, em 1998, às vésperas de um dos congressos mais importantes da minha vida.

Tudo começou com o tal “avanço tecnológico”: era possível tirar passaporte pelo correio! Que maravilha! Depois de duas décadas pelo método confuso, digo, antigo, poder ir ao correio e entregar tudo ali, no balcão, era um pedaço de céu. Com antecedência, é claro, pois demorava um mês para chegar. Indo na Praça Mauá, já se conseguia em 10 dias. Mas com todos aqueles embaraços já descritos.

Eu sempre faço as coisas com antecedência e, se puder ser com conforto, melhor ainda! Então, juntada a tal foto de presidiária com data e pano de fundo branco, a taxa do banco, o passaporte antigo e os documentos de praxe, me mandei para o correio, na esquina de casa, e dei entrada nos papéis. Protocolo em mãos e... esperar. Mas, é claro, não sou tão confiante assim. Eu já tinha minha nacionalidade portuguesa assegurada e, idem, passaporte europeu. Qualquer vacilo burocrático, estaria segura, não perderia a viagem. Já viu alguma taurina agir sem mil metros de segurança a sua volta?

Vinte e cinco dias depois (vinte e cinco dias e não trinta!!!), recebi a notificação de entrega e me mandei para o correio. Ele estava lá, lindinho, fofinho, me esperando. Assinei todos os recibos de entrega (um monte!) e trouxe minha jóia para casa. Abri para conferir com mais calma. Tudo certo, com exceção da... data de nascimento! O dia e o mês estavam certos, mas o ano, veja só, era 1995. Oficialmente, portanto, eu tinha apenas 3 anos de idade! Achei um absurdo sem nexo. Como teriam errado desse jeito? Como teriam achado um ano assim? Eu nasci em 1951. Não dava nem para imaginar a troca de 1955 por 1995. Mesmo fazendo um trabalho sem atenção ou automatizado, como o funcionário conseguira essa proeza? E não daria tempo para modificar, mesmo que eu fosse diretamente à Praça Mauá. Faltavam apenas dez dias para a viagem e eu tinha mil coisas a fazer. Estava em meados de junho, o congresso começaria no dia 25, no Porto, Portugal e eu tinha provas dos alunos para corrigir, notas para entregar, arrumar a mala, enfim, todas as atolações de viagem em final de semestre letivo. Sem contar com os últimos preparativos de minha apresentação no congresso, já que eu era uma das palestrantes! Nem pensar em tentar a trabalheira de consertar o passaporte. Mas eu queria sair com passaporte brasileiro, pois, quem viaja sabe como é bom sair com o brasileiro, entrar lá com o europeu e fazer o caminho de volta ao inverso. Significa, literalmente, livrar-se de quatro (quatro) grandes filas de engarrafamento nos setores de migração: quem é “de casa” passa mais depressa, quando não passa direto. O que fazer, então? Ora... tentar sair com aquele mesmo e “ver se cola”. Típico jeitinho brasileiro, que todos conhecemos. Afinal, o erro não tinha sido meu!

Resolvi, por via das dúvidas, levar minha certidão de casamento, anexada ao passaporte, minha identidade básica, mais genuína que minha carteira de identidade. Ao tirá-la da pasta de documentos para anexá-la ao passaporte, tive a curiosidade de relê-la. No final, a averbação de meu divórcio: 18 de dezembro de 1995. Ah... estava lá! O funcionário deveria estar bem distraído, quem sabe, conversando com a namorada ao telefone, quando fez uma miscelânea nos meus dados, misturando o ano do meu divórcio com a data de nascimento! Tinha sido isso. Explicada a confusão. Ok, vamos transformar isso num argumento, levar o documento original e ver no que dá.

E foi o que fiz: o funcionário, quer dizer, o agente federal abriu o passaporte em frente a uma viajante com cara de inocente, super calma e feliz. Mas não adiantou, ele viu a data e não deixou passar barato:

- Seu documento está errado. Aqui consta nascimento em 1995.

Tentei brincar:

- Está correto, é a data do meu divórcio. Nasci, de novo, nesse ano.

Ele não deu chance, embora esboçasse um leve sorriso:

- Mas está oficialmente errado, não posso deixar passar.

Continuei tentando brincar:

- Tem razão, faltam a fralda e a mamadeira. Só que não posso deixar de viajar de jeito nenhum. Tenho uma palestra em um congresso no dia 25, depois de amanhã. Nem pensar em não viajar hoje. Chegarei a Lisboa amanhã, dia 24, sigo direto para o Porto, durmo e apresento meu trabalho no dia seguinte! Tenho de viajar nem que seja no bagageiro (tentava mostrar bom humor para ver se ele não emplumava)

- Não posso deixá-la viajar com a documentação errada!

- Mas o erro não foi meu! Você está vendo! Estou levando minha certidão de casamento junto para mostrar, se for o caso. Não posso deixar de ir. Recebi assim do correio, às vésperas da viagem, não deu tempo nem de verificar! Se preciso, chame seu supervisor, faça qualquer coisa, estamos a três horas do vôo e vocês podem consertar ou verificar o que quiserem. Mas eu tenho de ir!


Eu estava tentando garantir minha volta sem grandes embaraços ao solo pátrio, com o passaporte nacional. Mas já estava pronta para puxar o outro, se fosse necessário. O supervisor chegou trazendo o passaporte, entre sério e solícito, pois sabia a bomba que tinha nas mãos. Falou delicadamente:

- Por mim, uma vez que o erro não lhe cabe, eu a deixaria passar, mas a senhora não conseguiria entrar em outro país com essa data errada!

Aliviada, então, mostrei o outro passaporte:

- Então, está tudo certo: o senhor me deixa sair com esse que eu entro com esse outro no outro país.

Com esse argumento, ele só pode ceder e me fez prometer que consertaria o passaporte tão logo voltasse ao Brasil.

Felizmente, tinha os dois passaportes, senão, talvez não tivesse viajado, curtido um dos melhores congressos de que participei, além de poder ter vivido uma das grandes aventuras amorosas de minha vida: meu encontro com um africano gabonês de sonhos. Mas isso eu conto em outro conto.

Voltando ao Brasil, corretinha como sou, fui super fiel a minha promessa: me apresentei à Polícia Federal para o acerto. A primeira coisa que o funcionário fez foi perguntar como eu tinha conseguido viajar com aquele documento. Quando soube de meu outro passaporte, apenas disse:

- Então, pode deixar como está! A senhora usa esse assim mesmo até a data de validade. E utiliza o outro para entrar nos outros países.

Pode acreditar? Foi isso mesmo. Ele deveria ser irmão daquele outro que carimbou a data errada. Só podia ser. Tão competente e sério quanto aquele... marca de família.

Eu deveria ter feito um escândalo, mas, sinceramente, iria dar tanto trabalho e eu estava em um momento tão atribulado de minha vida que acabei deixando passar. Afinal, não planejava viajar tão cedo e, na verdade, tirei outro passaporte dois anos depois por conta de uma outra viagem. Aleguei ter perdido o anterior. Na verdade, o que eu queria era guardar como lembrança o erro inconseqüente - ou, quem sabe, inconsciente? - de alguém que colocou o ano de meu nascimento para uma “nova vida” em um de meus documentos oficiais... presentes da vida...

Agora, para tirar um passaporte, você faz tudo por internet e vai lá, em algum lugar perto de casa, apenas para assinar, tirar uma foto digital e colocar seus dez dedos numa máquina também digital, sem necessidade de sujá-los com aquela tinta preta horrorosa. E faz isso com hora marcada, sem precisar esperar, pois, desde sua inscrição pela internet, você pode escolher posto, dia e hora para entregar os documentos, tirar foto e imagens das impressões digitais. Muito chique. Depois de uns 10 dias, passa por lá e pega sua jóia. O único problema é que, na inscrição pela internet para preencher o formulário e marcar a data de entrega dos documentos no posto, dependendo da época do ano, você só consegue vaga daí a um mês.

Mesmo assim, tirar passaporte, hoje em dia, é realmente muito simples: tudo computadorizado, automaticamente conferido, pois você é um número bem delineado nas máquinas do sistema... e não passa pela possibilidade de viver a aventura de ter de brincar com um oficial da migração para conseguir sair de seu país.

Mas tudo isso, é claro, se tomar essas providências com antecedência, pois, se quiser deixar para a última hora, ah... vai ter de viver tudo que eu vivi (com exceção da foto de presidiário e a tinta preta nos dedos), só que no aeroporto internacional, setor da polícia federal – migração -, enfrentando uma fila de mais de duzentas pessoas, todas igualmente apressadas e atrasadas como você. Soube disso, por uma amiga, dessas que deixa as coisas para o último minuto. Mas se você quiser arriscar essa forma ancestral, conhecerá um pedacinho das tormentas que vivíamos no século passado. E, quem sabe, de brinde, viva suas próprias aventuras...

quinta-feira, 25 de novembro de 2010

DIANTE DAS CIRCUNSTÂNCIAS



Pensei em escrever mil coisas hoje. Algo fora do senso comum, algo fora do que todos já estamos acostumados a ler. Já sabemos que falta educação, que faltam os subsídios para a tranqüilidade da alma, do corpo, da mente, da cidadania, enfim, de nossos postos como seres humanos subjetivos e sociais. Já sabemos. Não é preciso a mídia insistir. Já sabemos.

Dizer o dito passou a ser sem sentido. Discurso vazio, cansativo, sem metas, sem soluções.

Hoje, sem palavras, diante do que estamos vivendo nesta cidade amada, só tenho o conto da minha tristeza, da minha impotência, da minha vontade de ser útil, mas não sei onde.

Rezar? Só se for assim:

Em nome do Pai,
do Filho
e do Espírito Pranto.
Amém?


Mas sei que não vou entregar os pontos. Pertenço a esta cidade, que escolhi para ser minha, para ser meu pouso, meu trabalho e meu repouso.

Prefiro escolher a esperança, jamais a perderei.

A esperança, entre vários sentimentos que povoam e povoaram meus contos, está presente hoje, mais do que nunca, torcendo por esta cidade amada, mais que amada, luz de meu coração!

sábado, 20 de novembro de 2010

LUZIA


Dei um pulinho na universidade para pegar documentos antigos, contracheques, etc. Revi amigos e aproveitei para tirar algumas fotos para o blog. Foi aí que me deparei com uma parte da vista do estacionamento. Notei um carro estacionado em frente a uma vaga reservada para cadeirantes. Ver isso da altura do décimo primeiro andar me dava mais a impressão de ser coisa de filme ou de casa de brinquedos do que realidade. Mas era verdade. Em plena universidade, onde sei que há inúmeros projetos extensionistas e um vasto folhetim sobre cotas, direitos sociais e necessidades especiais - que é o que mais caracteriza o lugar em que trabalhei -, a vista disso me parecia coisa fora do lugar. Mas estava lá, o carro azul, em frente à vaga, enfrentando meus princípios.

Para não “entrar nela” desobedecendo ao aviso ostensivo de proibição, ele ou ela simplesmente optou por estacionar em frente! Dava na mesma. Não pude deixar de fotografar. De quebra, fiquei imaginando se os carros estacionados nas vagas reservadas seriam, realmente, de cadeirantes. É certo que os seguranças são logo chamados nesses casos, pois há um número considerável de cadeirantes lá. Não desci para ver. Lembro-me de que fazia isso quando era membro efetivo do Conselho Estadual para Política de Integração da Pessoa Portadora de Deficiência. Naquela época eu tinha mais poder de fogo, me apresentando como membro e mobilizando as autoridades locais. Bons tempos! Ou... maus tempos, como sempre? Para que precisar de carteira, afinal... não deveria ser um direito / dever de cidadania de todos?

O fato é que fiquei com o vicio já meio natural de estar atenta a esses absurdos. Aliás, guardei um arquivo que me mandaram, um dia, pela internet. A piada é boa, embora esconda outro preconceito, que também deveria ser combatido. Falaremos disso, provavelmente, em outro conto. Por ora, lá vai, pela criatividade do autor, para mim, desconhecido:


Outro dia, saindo do carro e andando pelo estacionamento do aeroporto do Galeão, rumo ao elevador, vi um cidadão (cidadão?) estacionando numa vaga dessas. Não resisti, mesmo sabendo que, de vez em quando, a gente se meter numa coisa dessas é furada. Me aproximei e perguntei o mais delicadamente que pude, se ele não tinha visto a placa, já que não via na chapa do carro a marca obrigatória que os cadeirantes tem de ter. Ele simplesmente retrucou:

- Alguém está vendo?

Não agüentei:

- Sua consciência não está?

- Você vai me multar?


- Não, mas deveria, já que sou do Conselho Estadual (já não sou mais, mas dei a cartada). Invisto apenas no seu senso de cidadania. Eu mesma tinha essa vaga à disposição quando passei por aqui, mas estou estacionada há quase cinqüenta metros, bem mais longe dos elevadores. E suas pernas são bem mais jovens que as minhas.

Não quis discutir mais, dei as costas, mas saí dali indignada. Não achei um segurança perto, queria pedir providências. Não vi ninguém.

Fiz o que tinha de fazer no aeroporto e voltei rapidamente. Como era o meu caminho, passei outra vez pela mesma vaga e... estava vazia. Por medo ou por consciência - gostaria mais de acreditar na segunda opção -, o jovem escolhera outro lugar. Resolvi voltar e procurei um segurança que, enfim, colocou um daqueles “cones” de plástico amarelo na vaga. Aquilo não evita a desobediência, mas é mais um empecilho. O problema é que também atrapalha o verdadeiro cadeirante que, vindo sozinho, quer estacionar ali.

Ando muito pela cidade e, volta e meia, me deparo com uma coisa dessas. Nossa educação básica de convívio está mesmo depauperada. Já sabemos disso de sobra. Mas como criticar a violência, se ela começa dentro de nossos corações?

Saí do estacionamento cabisbaixa, pensando nessas coisas, e me parece que aquele era mesmo um dia de me encontrar com a representação de pessoas muito especiais, que já trilharam a minha vida, me ensinando coisas da mente e do coração. Estava chegando em casa quando vi Luzia, uma antiga colega de faculdade. Ocorre que Luzia é cega. Andava devagar, com sua bengala. Me deu vontade de fazer uma meninice, como nos antigos tempos. Me aproximei sem falar uma palavra e lhe dei meu braço. Luzia parou e estranhou. É muito difícil um vidente dar o próprio braço para um cego na rua, para ajudá-lo. Geralmente, pegamos o seu braço, seu ombro, pois não fomos preparados para isso. A maioria das pessoas não sabe, mas essa atitude provoca uma total insegurança, pois a pessoa se sente monitorada e não guiada, como deveria. Se alguém se aproxima e, de saída, sem essa ou mais aquela, oferece o próprio braço, a pessoa cega já desconfia de que há noventa e nove por cento de chance de que o tal sujeito ou sujeita já andou aprendendo isso com cegos por aí.

- Quem é?

Minha meninice, dando o braço e caminhando, conservou silêncio.

- É Rita?

- Não.

- Fala mais um pouco. Você já andou com muitos cegos, não?

- Muitos.
Sorri.

- Ora, Eulalia! Você por aqui!

- Essa não vale Luzia, como você descobriu?


Ela me respondeu, com aquela cara de marota, bem minha conhecida:

-Se você já andou com cego, querida, está marcada para sempre... depois, é só aguçar para as características: pelo riso (e eu que pensei que apenas tinha sorrido!) e, logo depois, pela maneira de andar e pelo braço. Pela voz, fiquei um pouco na dúvida, porque você está um pouco resfriada, isso mascarou pouco, mas eu já tinha quase certeza. Então, chutei.

- Luzia, faz cerca de 30 anos que não nos vemos!

- Ver nunca te vi, mesmo, zombou ela,
lembrando-me de pronto de seu irrefutável bom humor. Mas o jeito, depois de termos convivido tão proximamente durante quatro anos... ah...não dá para esquecer.

Pois é... quem de nós, sem ver outra pessoa e praticamente sem falar com ela – e, ainda por cima, com resfriado -, poderia reconhecer um amigo, na rua, depois de trinta anos? Os cegos, quase sempre, podem.

Perguntei para onde ela queria ir.

- A um ponto de ônibus da Princesa Isabel.

Andamos conversando animadas, ela já habituada com o tipo de guia que eu sou, descendo e subindo as calçadas sem prévio aviso. É tão fácil guiar um cego com segurança... basta dar o braço e se conservar um passo adiante. Ele nota que você vai descer e subir, desviar de buraco... nem precisa falar. É incrível o senso de percepção que eles tem!

Fomos assim conversando rumo à Princesa Isabel. Soube que era seu caminho quase diário. Incrível, ela trabalhava numa escola ao lado do meu edifício, há dez anos, e nunca nos vimos. E justamente agora que nos tínhamos encontrado ela estava sendo transferida. Seguindo, assim, de papo, atravessamos a avenida e, como há vários pontos de ônibus, apenas fui caminhado, pois eu já sabia que ela iria reconhecer quando chegássemos ao dela. Não deu outra: num determinado momento, ela deu aquela “travadinha básica” bem minha conhecida. Era ali. Não resisti:

- Qual é o sinal, Luzia? Estava me referindo a como ela reconhecia o ponto.

- O cheiro da farmácia.


É preciso ressaltar que a farmácia não fica em frente ao tal ponto, fica duas lojas à frente. Significa que não tínhamos passado por ela. Pois é... nós temos um olfato tão aguçado? Uma percepção de contato tão aguçada? O que fazemos com nossos sentidos? Não dá para chamar uma pessoa assim de deficiente... é mesmo mais para pessoa especial...

E, talvez, quem sabe, foi com esse espírito de perceber o quanto são especiais que, muito mais tarde, por caminhos da vida, acabei trabalhando com surdos, aprendendo sua língua, lutando academicamente por uma educação especial melhor.

Só tenho a agradecer, por esses presentes da vida, me preparando, com antecedência programada para vários dos embates de minhas futuras escolhas.

Um dia, quem sabe, eu fale mais de Luzia e de surdos em outro conto. Vale a pena.

sábado, 13 de novembro de 2010

O CÂMBIO


Londres. Mas minha segunda língua era o francês e bem sabia que não seria bem-vinda à cidade falando uma língua tão adversa à deles. Já tinha ouvido horrores sobre a richa entre os londrinos e parisienses que fingiam não entender um a língua do outro ao menor apelo turístico. A saída, então, era mesmo arranhar meu inglês e ver no que dava.

A primeira chance deu-se logo na entrada, quando me deparei com a necessidade de trocar meus dólares por libras. Perguntei logo ao sair do hotel onde havia o câmbio mais próximo. A resposta, com sotaque inglês impecável, naturalmente, foi a de que me dirigisse à estação de trens, ali perto. Bem, eu tinha conseguido falar... e também...entender. Menos mal. Fiquei um pouquinho mais animada.

Fui arranhando uma tentativa de encontro, mas não achava a estação. Tinha mesmo de perguntar a um outro transeunte. Ensaiei a pergunta, com cautela, em pensamento: “Please, where is the station?” Achei que assim estaria bom.

Ao primeiro transeunte, então, lancei a frase ensaiada, mas só ouvi em resposta:

- What?

Bem, eu deveria ter pronunciado alguma coisa mal e tentei caprichar mais, invertendo a ordem na frase:

- Where is the station, please?

- What?


Não era possível. Eu tinha a frase decorada de meus bancos de colégio. Não poderia estar errada... será que seria minha pronúncia? Resumi:

- The... station... please.

- What?


Não era possível. Será que estaria pronunciando errado a palavra /steition/? Resumi mais ainda:

- Station.

- Wou, station.
O cara estava falando com o “a” aberto: /station/!!!

Isso mesmo... como um brasileiro falaria, com o “a” bem aberto, caso não soubesse a verdadeira pronúncia! Ora, aí já era esculhambação. Se era para falar assim com “a” aberto eu não precisaria ter ensaiado tanto!!! Mas fiquei ali firme e acenei que sim com a cabeça. Num péssimo inglês para o que eu supunha ser inglês, o senhor me apontou a estação, que estava pouco adiante. Muito mais tarde eu soube, por uma amiga que era professora de inglês – a Patrícia, da qual já falei em contos anteriores – que ele deveria ser de uma região da Inglaterra (não me lembro qual) que tinha mesmo o que ela chamou de “inglês terrível”. E eu tinha de cair, logo na estréia com a língua, nas mãos de alguém assim!

O fato é que achei a estação de trem rapidinho e também o guichê de câmbio. Esparramei uns dólares e nada falei, pois era óbvio o que eu queria. Apenas sorri o sorriso dos turistas que mal falam a língua. O senhor me deu notas de libras, sem trocados. Como eu iria me virar com notas tão elevadas? Seria mais do que natural receber uns trocados, não? Que nada... só nota de valor alto.

Minha mente me traia mais uma vez. Como se pede trocado em inglês? A palavra “change” simplesmente sumiu da minha cabeça. Não tinha jeito... ou eu saía dali com aquelas notas ou me virava de outro jeito ali mesmo, com gestos, fala engasgada... o que fosse. Decidi, embora sabendo ser super inconveniente, pronunciar a frase que supunha proibida naquela cidade:

- Do you speak French?

- Mais oui, je suis parisien!!!


Pelos deuses! Essa não!!! Um francês no guichê de câmbio! E, ainda por cima, parisiense! Só se fosse mesmo aquele meu anjo aventureiro encarnado que sempre me acompanha. Era mesmo um francês! E francês, você sabe, quando vê um estrangeiro falando a sua língua em terra estrangeira se desmancha todo. Aliás, ele já se derrama todo quando vê um estrangeiro falando francês em Paris. E eu estava falando francês em Londres, mostrando minha incompetência logo em que país! Estava feita!

O homem só faltou estender um tapete vermelho para eu passar. Levantou-se, sorriu, me cumprimentou através do buraquinho do guichê. Perguntou o que eu desejava e mais parecia um amigo gentil do que um funcionário. Despencou a me perguntar se eu conhecia Paris, se tinha ido à França. Quando disse que sim, passou a discorrer sobre a cidade amada, com mil sorrisos e mesuras, perguntando onde eu tinha ido, se ia voltar, me dando dicas turísticas.

E a fila crescendo atrás de mim.

Com gentileza, disse que não queria atrapalhá-lo, que já havia tomado muito o seu tempo. Na verdade, estava com medo de ser linchada pelos turistas na fila. Mas ele não estava nem aí. Simplesmente me dizia que não falava francês há dias e que estava muito feliz em me servir. Era uma fila, os outros que esperassem.

Fiz o que pude para sair de mansinho, envergonhada. Na carteira todo o trocado, minuciosamente oferecido, exatamente como eu queria. De brinde, uma lição para lidar com a moeda inglesa que, cá para nós, tem uns macetes que só gringo nativo entende. Mas a lição foi boa e eu entendi tudinho... ainda mais em francês...

Saí rindo dali, com a recepção inesperada e também pela dupla aventura: a de um péssimo inglês me levando a um maravilhoso francês.

sábado, 6 de novembro de 2010

O AEROPORTO


Morei em aeroporto por três dias, seis horas e incontáveis minutos, quando tive a oportunidade de conviver com a casta da antipatia, da petulância e da prepotência americanas.

Voltava de uma viagem a Jacksonville, em visita a Katia, uma grande amiga que estava em Paradise Point, acompanhando o marido. Passei dois dias em Chicago para visitar um amigo e parti direto para a base militar, por cerca de uma semana, apenas para conferir a amizade, já que o trabalho aqui é muito e não pode esperar.

A ida fora sem problemas, apesar dos inúmeros interrogatórios na entrada do país. Não tivesse eu um passaporte da União Européia, então, não saberia por quantos outros questionamentos passaria.

Eu tenho a impressão que os americanos se acham mesmo donos do mundo. Nada contra isso, cada um acha de si o que quiser, o sistema político-administrativo tem todo o direito a todos os cuidados que deve ter e não coloco nada disso em questão. Mas sistema é sistema e gente é gente. O funcionário, seja lá do que for, tem o dever de cumprir o seu dever. Mas não precisa ser tão antipático, tão arrogante e tão petulante quanto a lei. Parece, no entanto, que eles não estão falando com outra pessoa igualzinha a eles, com cabeça, tronco e membros iguais, sem contar com alma e espírito. Não. Acho que isso não passa pela cabeça da maioria de cada ser americano, pelo menos daqueles com quem convivi, nesses trânsitos administrativos. Ali, pelo que parece, eles não são gente ou acham lindo imitarem maquinas a serviço de uma máquina. Uma pena eu ter tido essa impressão de um país que poderia ter um pouco de açúcar. Ou será que eles gastam todo o açúcar que têm em comidas e guloseimas e não sobra nada para a alma?

Estou sendo rigorosa demais? Logo veremos.

Por uma semana, apenas convivi com as delícias de uma família brasileira em país estrangeiro. Uma espécie de consulado brasileiro no meio de uma cidade sem calçadas e sem ônibus. Sem calçadas. Significa que o sonho americano se concretiza ali: cabeça, tronco e rodas. Literalmente. Não fosse a gentileza de meus anfitriões, eu estaria simplesmente presa em casa, a não ser que alugasse um veículo. E ir para onde? Para os shoppings, naturalmente. Desconfio que, se tirarmos os shoppings dos americanos, eles perdem a identidade. Para quem não se sente atraída por montes de compras, eu estava mesmo perdida. Mas havia o espaço da base militar e os passeios a outras cidades com que meus amigos muito gentilmente me brindaram. Na base, eu podia andar a pé, quanto quisesse. Não se vai a lugar algum, mas era lindo caminhar entre as filas de casas para famílias dos mais variados países, jardins sem muros e muito espaço. E esquilos soltos por toda parte... e pássaros beliscando aqui e ali pelos jardins.


Seres humanos, enfurnados em suas casas. Lembro-me que eu andava todos os dias por cerca de um quilômetro para ver o lindíssimo pôr-do-sol. E não encontrava ninguém no caminho. Até hoje não consegui entender o que essas pessoas faziam enfiadas em suas casas, com um espaço tão lindo a seu dispor.



Eu caminhava em direção ao vastíssimo lago onde o sol se punha. Um lago rodeado de um gramado aconchegante, árvores encantadoras e muitos bancos voltados para ele. Todos sempre impecavelmente vazios.



Eu era a única transeunte, exceção feita a um ou outro morador que fazia sua caminhada apressada com algum cachorro. Mas isso era muito raro e eles sequer se davam ao trabalho de responderem ao meu cumprimento.

A semana passou rápido e lá estava eu, me despedindo de meus amigos, no aeroporto. Um bom livro, passagem pela polícia federal e os bancos de espera para o voo intermediário entre Jacksonville e Chicago, de onde viria para o Brasil. Vinte minutos para o embarque e... nada. Nem sinal de chamada. Em suma, o avião doméstico atrasou e isso significava que eu perderia a conexão.

Falo pouco inglês. Com os americanos, então, complica. Em Londres me viro muito melhor. Entender eu entendia e sabia que estava correndo o risco de ter uma boa encrenca nas mãos. Não deu outra. Eles não queriam se responsabilizar de jeito nenhum pelo meu voo internacional. E eu, com meu péssimo inglês, exigindo meus direitos. Era quase meia-noite e nada resolvido. Dormi no chão, pois os responsáveis por qualquer providência não estavam mais no aeroporto. Se estavam, não apareceram.

Você deve imaginar que um país de primeiro mundo só tem aeroportos super fantásticos. Engano seu. Se você se lembra de como era o aeroporto Santos Dummond antes da reforma, diria que ele seria um paraíso perto daquele. Para comer? Só uma birosca que abria das 8 às 18 horas vendendo biscoitos esquisitos que só os americanos conseguem engolir. Tinha pão, mas era para ser comido puro, pois eu nem conseguia olhar para aqueles recheios gordurentos. Máquina de refrigerantes e água. Mas fechados, dentro da loja, depois das seis da tarde. Assim, sem nada para comer ou beber, com um ar condicionado de polo norte e sem nada para me cobrir, eu e mais umas duas pessoas que falavam uma língua indecifrável perambulamos por ali até o amanhecer. Telefonei para meus amigos para que avisassem a quem iria me buscar no aeroporto no Brasil. Acalmei-os, dizendo que estava tudo bem e que voaria na manhã seguinte.

No dia seguinte, a companhia aérea responsável pela minha passagem, a United Airlines (nunca mais viajo nela, se os deuses me permitirem!), me enrolou o dia todo, dizendo procurar alguma vaga em outro voo. Parece que conseguiram, mas a outra companhia, American Airlines, não quis fazer o check in. Voltei para a companhia de origem e me fiz acompanhar por um funcionário ao check in da companhia a que me estavam transferindo. Mas quando a funcionária da United apresentou a passagem no check in da American, o funcionário do balcão olhou a passagem e simplesmente a rasgou, sem a mínima cerimônia. Fiquei perplexa: a falta de respeito se estendia ao colega de trabalho, assim, numa boa, sem explicações!

Estávamos no início de agosto e até entendo que arranjar uma vaga em qualquer voo para o Brasil era uma tarefa hercúlea. Mas a responsabilidade era deles e eu estava lá, morrendo de cansaço, sem banho e comendo pessimamente. Os tickets para alimentação que me ofereciam davam direito às bombas americanas da tal birosca das quais meu estômago não conseguia chegar nem perto. Assim me enrolaram por todo o dia e não saí de lá. Banho? Nada. Reclamava pelos meus direitos e eles apenas diziam que estavam tentando um hotel. Uma droga de língua na qual eu não sabia xingar me atrapalhava a comunicação à altura do que eles mereciam. Não conseguiram acomodações, pois a cidade, que dista quase dez quilômetros do aeroporto, era pequena e estava atolada com uma convenção internacional sem tamanho. Isso era o que eles diziam. Sempre frios e secos, diante desta latina sul americana. E me enrolando o dia todo, passei mais um dia ali, sem saber o que fazer, mas achando que voaria no final da tarde, como me haviam assegurado. Era pura embromação.

Meus amigos iriam para Disney, dois dias depois, com as crianças e eu não queria mobilizá-los. Afinal, o aeroporto ficava quatro horas distante de sua casa e seria uma viagem enorme de ida e volta. E para quê? Ligava para eles duas vezes por dia, dizendo que estava esperando e que estava tudo bem.

Evidentemente, não estava nada bem. Mas fiz o melhor que pude. Naquele saguão sem recursos, dei uma de barraqueira. Juntei minha mala grande, coloquei a de mão em cima, puxei uma mesa deles para perto do telefone publico, que passei a considerar meu centro de informação com meus amigos, e usei uma daquelas cadeiras presas ao chão. Nem sei como não me impediram. Talvez a determinação das atitudes. Os seguranças apenas me olharam. Tentaram se aproximar, mas não dei pelota. Estava montando meu escritório provisório. Mesa, telefone, cadeira, malas como estante. Livro aberto e leitura. Não havia mais nada a fazer. Felizmente, eu tinha mais de um livro na mala e tudo que não tinha lido durante a semana foi engolido ali mesmo.

Quando soube que não voaria naquele dia, perdi, finalmente, as estribeiras. Perguntei indignada se alguém ali falava francês, espanhol ou português. Ninguém. Eu falava três línguas e todos ali só sabiam falar uma droga de única língua. Exigi uma intérprete. A comissária, com cara de máquina, solicitou meu passaporte, disse para esperar e sumiu! Sumiu com meu passaporte por longos quarenta minutos! Eu queria ser presa, eu queria qualquer coisa, algum treco tinha de acontecer! Enfim, ela voltou e solicitou (eles não pedem, eles mandam ou solicitam, com uma falta de gentileza espantosa!) que a acompanhasse. Lá estava a minha intérprete. Ao telefone, lógico. Peguei o aparelho e, do outro lado, uma brasileira, com sotaque carioca. Contei tudo que estava acontecendo, exigi um hotel, um banho, uma cama e, principalmente, providências imediatas para que eu voltasse ao meu país. Foi tudo ouvido, anotado e providências seriam tomadas imediatamente. Que eu me acalmasse e que, em breve tudo estaria bem. Depois disso, me levaram para o saguão de novo e pediram que aguardasse. Eles estariam tomando providências.

O imediatamente deles simplesmente não existe e nada foi providenciado, a não ser um prato de comida que não consegui tocar. Banho? Não havia acomodações no aeroporto, sentiam muito. Não conseguiam hotel. O voo sairia na manhã seguinte e qualquer distancia maior do que a tal cidadezinha me faria perder a hora.

Quando contei que achava que ainda dormiria mais uma noite no aeroporto, meus amigos não aguentaram e se despencaram para lá. Não havia outra coisa a fazer senão concordar. Aceitei e aguardei, sentada em meu escritório, embutida nos meus livros, para passar o tempo da melhor forma possível. Felizmente, livros ótimos. Tão bons que meus amigos chegaram e nem me dei conta deles.

Katia tinha sido minha aluna e, ao me ver ali, daquele jeito, não resistiu ao flagrante. Hoje, ao rever a foto que coloquei lá no título desse conto é que acredito que aquilo realmente me aconteceu.

O bom da história é que eles conseguiram um hotel, às 22 horas da noite. O suficiente para eu poder tomar um banho, trocar de roupa, comer um sanduíche saudável e me atirar na cama por umas duas horas. Nem sei se dormi. Meu voo saia, finalmente, às seis horas da manhã, rumo ao aeroporto de Chicago, onde passaria o dia até que o voo internacional me trouxesse de volta ao lar, partindo às 23 horas.

Agradeço a cada mimo com que este casal me brindou naquela noite. Fico imaginando o esforço de ir e vir, numa viagem de quatro horas para cá, quatro de volta, às vésperas de uma longa viagem para as férias das crianças, só para me oferecerem um banho e um pouco de conforto. Foi mesmo um esforço a mais, inesperado e acolhedor. A vida me brindou com amigos assim e jamais deixarei de dar o devido valor a cada vez que ela me mostra esses requintes...

Voltei ao aeroporto para o susto final: uma fila incomensurável para a passagem pela polícia federal. Como chegamos bem cedo, no início, não dei muita importância. Mas eu não tinha me lembrado de como a revista era rigorosa, passageiro a passageiro. Faltando vinte minutos para a saída do meu voo, falamos com seguranças do aeroporto. Completamente insensíveis, apenas disseram que deveríamos ter chegado mais cedo e que eu me conservasse na fila. Aí é que veio o jeito carioca. Não havia saída. Fomos falando com cada pessoa na fila pedindo para passar a frente e, muitas vezes, quase sem ouvirmos a resposta de sim ou não, já estávamos falando com o passageiro da frente. Nem sei como consegui me adiantar cerca de cinquenta pessoas para me colocar diante da passagem pela segurança. Contando, assim, você não pode imaginar o desespero!

O longo caminho entre a ala de segurança e a entrada no avião foi percorrido correndo, com o fôlego na boca. Se eu perdesse o voo, desta vez, a responsabilidade seria minha. E... do jeito que eu tinha sido tratada, tinha medo de que nada me garantisse que eles esperariam um último passageiro. Me passou pela cabeça que haveria outros na mesma situação, mas eu não via ninguém. Soube, muito depois, por um dos passageiros, que o avião pousara ali em escala, que muitos haviam descido, mas apenas uns dois ou três tinham entrado. Talvez, conexão interna, eu é que vinha de fora. O fato é que consegui entrar e, logo atrás de mim, a porta do avião se fechou.

Eu estava simplesmente exausta, de corpo e de espírito. Jurava a mim mesma nunca mais colocar os pés naquele país. Que os deuses me livrassem de tal castigo! Cheguei a Chicago, naquele aeroporto de sonhos, onde me alimentei à altura e adormeci naqueles magníficos sofás. Dormi quase o dia todo e fui uma das primeiras a entrar no avião com destino certo: Rio de Janeiro. Colocando os pés em solo pátrio, tive ímpetos de beijá-lo. Mas senti-lo sob meus pés, o cheiro do Rio, o sol do Rio, a delicadeza e o sorriso das pessoas do Rio foram suficientes para me sentir em casa, aconchegada e feliz.

Quem sabe, um dia, o destino me faça voltar aos Estados Unidos, só para eu perder a péssima impressão que esse povo me causou. Na verdade, lá no fundo, gostaria de acreditar nisso.

sábado, 30 de outubro de 2010

REGINALDO


Formada em 1973, emendei em um concurso público para professora do Município do Rio de Janeiro, ensino fundamental. Naquela época, passar em concurso, com raras exceções, significava ser mandada para depois de onde judas perdeu as botas. Será diferente hoje em dia? Não sei. O fato, em si, não me chateou. Apesar da distância, dar aula em uma área menos favorecida me atraía, alimentando minha vontade de estar mais próxima da realidade de nossa sociedade carente. O problema era chegar lá.

Como tinha sido convidada a dar aulas na Universidade onde acabara de me formar, ir para Campo Grande, zona rural, exigia uma estratégia em alto estilo, pois os horários praticamente se emendavam. E era uma viagem, sem dúvida. Na mocidade, no entanto, isso não conta e está sempre tudo bem.

Aos novatos estavam sempre reservadas as piores turmas. E uma delas era conhecida como a turma do Reginaldo. Soube o que isso significava ao pegar meu horário e os diários de classe na secretaria:

- Você vai pegar a turma do Reginaldo? Chi...

Como recém formada, sem experiência nenhuma, aquele “chi” esfriou cada vértebra de minha coluna. Mas não tinha jeito. Fingi que não tinha ouvido e segui para o desconhecido. Justamente a turma do Reginaldo estava com o horário cortado pelo recreio. Se a turma era difícil, dar duas aulas interrompidas por um recreio, seria pior ainda. E, no dia seguinte, a turma pegava os dois últimos horários, o que também era pesado, já que os alunos, geralmente, ficam agitados, ansiosos por irem embora. Mas eu procurava não pensar nisso.

Entrei na sala com atitude de quem sabia o que estava fazendo. A porta ao fundo da sala, me fez percorrer o caminho até a mesa, passando pelas mesas dos alunos. Literalmente, andar pelo meio da turma. Cumprimentei-os, ninguém respondeu. Logo na entrada, ouvi a observação de um dos meninos:

- É isso que vai dar aula pra gente?

E ele tinha razão. Aos 22 anos, concordo que eu tinha cara de uns 16, no máximo. Ainda tinha de mostrar minha carteira de identidade em filmes de 18! Fingi não ouvir e consegui alcançar a mesa viva.

Eu estava recém formada, com tudo fresquinho na cabeça e uma vontade imensa de ser uma boa professora. Mas era uma diferença gritante sair de uma universidade da zona sul, onde horas atrás eu tinha dado aula de grego e cultura clássica para enfrentar a turma do Reginaldo, mais da metade dos alunos trepetentes, isto é, cursando o mesmo nível pela terceira vez. Mas aí justamente talvez estivesse o sentido de estar ali, era o que contestava minha alma jovem e cheia de ideais.

Apresentei-me à turma e parece que aquele momento foi o único em que consegui ter a turma atenta nos dois próximos meses. Eu estava doida para saber quem era o Reginaldo, mas não dava o meu braço a torcer. Também não queria me arriscar a fazer a chamada da turma logo no começo, já que eles estavam atentos. Mas durou pouco, havia um bulício que me fazia sentir como se estivesse ali dando aula a ninguém. Foi um custo falar até que a campainha do recreio me salvou. Ufa, intervalo. Mas um negro de alto porte levantou-se, dirigiu-se à porta e fechou-a, dizendo:

- Hoje ninguém sai.

Reginaldo. Dispensado de melhor apresentação. Encostado à porta, olhava para mim. Me lembro que entrei em pânico e dizia para mim mesma ter calma. Tudo me passava pela cabeça, menos gritar por socorro. Não teria voz, eu sei. Aí, me lembrei da minha professora de Estrutura e Funcionamento de Ensino, que aliás, em termos de conteúdo nada teria a dizer para mim naquele instante. Mas aguçou minha memória uma observação que ela tinha feito num dos intervalos de aula: muitas crianças só iam à escola por causa da merenda. Santa professora, nem sabe como isso me salvou, nesta hora à beira do abismo. Olhei para a turma e disse:

- Eu estou com fome e vou lanchar. Quanto a vocês, não sei.

Me dirigi à janela, pulei, dei a volta pelo pátio e entrei na sala dos professores. Não sabia o que fazer. Olhando pela janela, vi a turma no pátio. Ele tinha liberado a turma. Falar com a diretora? Tinha medo de perder a autoridade de vez, não só perante a turma, mas também pela vergonha que sentiria diante dela, uma senhora, perto dos meus inexperientes 22 anos. A próxima aula era na mesma turma, o que fazer? Com certeza estariam esperando por alguma repreensão, alguma atitude, talvez eu fosse acompanhada da diretora ou coisa assim. Não fiz nada, talvez mais por medo do que por iniciativa. Voltei morrendo de medo por dentro, mas fingi que nada tinha acontecido. Passei uma redação, pois me sentia incapaz de dar aula. Meu medo era o de que simplesmente se negassem a fazer. Reginaldo me enfrentou novamente:

- E se eu não quiser fazer?

- Não faça. Não vai valer nota mesmo. É só para eu sentir como vocês estão escrevendo.


Não me lembro se ele escreveu. Lembro-me apenas que o nível da turma era baixíssimo. E a turma era completamente diversificada, tendo alunos de 12 a 17 anos. Reginaldo era o mais velho e também o mais forte. Segundo o conceito dos professores, também o mais marginal. Eu não sabia até onde corria o significado de “marginal” e era, na verdade, a última coisa que queria saber para tentar enfrentar melhor o meu medo, naquele dia.

O fato é que o horário escolar terminou e eu fui apresentada a outra intempérie: os professores deveriam sair juntos para atravessarem, com segurança, a Estrada Comari, rumo a Barão do Monte Alto. Se não fosse com o grupo, não daria para pegar o ônibus das 19:20. Ninguém se arriscaria a descer sozinho pela Comari, mato alto dos dois lados, naquela escuridão. Sair no horário passou a ser, portanto, uma questão de honra, todos reunidos na saída da escola às 19:05. Quem não estivesse ali, não dava para esperar. Significaria perder o ônibus.

Cheguei em casa meio aos prantos. Jurei nunca mais voltar lá. Telefonei a uma grande amiga, psicóloga, bem mais velha do que eu, que já tinha trabalhado em um presídio no Rio de Janeiro. Que sorte a minha! Deu-me todo colo profissional que eu precisava. E soube dá-lo como ninguém. Por uma questão de responsabilidade, voltei no dia seguinte. Dali, teria todo o resto da semana para saber o que eu faria e, com certeza, muitos e muitos papos com essa amiga caída dos céus. De pronto ela me fez ver que seria questão de honra conquistar Reginaldo. O resto seria fácil. Mas como conquistar aquela fera? Meu estômago dava um nó só de olhar para ele. Conversei também com a diretora. Por incrível que pareça, o que ela disse foi fundamental:

- Reginaldo não é má pessoa, querida. É um jovem muito sofrido, nem sabe quem é o pai. Outro dia o vi entregar roupa numa casa aqui perto. Sua mãe é lavadeira. É certo que tem um comportamento marginal, mas acho que é a forma que ele encontrou de ser respeitado nesse fim de mundo. A região aqui, como você vê, não é fácil. E ele é muito respeitado na rua por todos.

Que mulher! Ao contrário de todos, na escola, tinha o olhar de lince, o carinho, o cuidado, a seriedade que, logo percebi, eram os responsáveis por faze-la tão querida por professores, funcionários e alunos.

Mas voltemos aos fatos: conquistar Reginaldo, o menino que não era má pessoa. Sorri no meu desespero e parece que a vida estava começando a facilitar as coisas para o meu lado. Eu ia à escola às segundas e terças. Na segunda seguinte, ao entrar na sala, vi Reginaldo com dois profundos cortes no braço. Muito fundos. Não perguntei nada e segui em frente. Tinha um pacto com minha amiga de seguir a risca suas orientações e não queria dar mancada alguma. Por que eu continuava lá? Não me pergunte, pois até hoje eu não tenho essa resposta. Minha amiga, no entanto, era a tábua de salvação e à noite contei o que vira a ela. No mesmo momento ela soube identificar o ferimento: briga com navalha dupla.

- O que é isso?

- Briga com duas navalhas em uma só mão. Precisa ter muita destreza e parece que esse seu aluno tem. Mas levou um bom talho. Quando se luta com duas navalhas o objetivo é ferir o adversário cortando-o com as duas lâminas ao mesmo tempo. Assim, a cicatrização é muito lenta, pois a pele que puxa para cicatrizar um lado, abre a ferida do outro. Esse seu menino não é brinquedo não e, se ele só se feriu no braço, com certeza levou a melhor.

- O que eu faço?

- Nada muito direto. Compre tudo que você achar que seria bom para curativo, coloque num saquinho discreto e, quando passar pela carteira dele, amanhã, coloque em cima da mesa dele e diga baixo e discretamente: para o seu ferimento. Depois, siga em frente e finja que não fez nada. Vamos ver como ele reage. Se a diretora disse que ele é um bom menino e como me chamou a atenção que ele entrega a roupa para mãe, pode ser mesmo que talvez esse seja um bom começo. E não olhe para ele durante a aula, de jeito nenhum. Assim, ele não se sentirá focado no resto do tempo. Pode constrangê-lo ou mesmo irritá-lo.


Fiz exatamente o que ela mandou e procurei não olhar para ele durante toda a aula, como estava prescrito.

Na semana seguinte, consegui dar alguma aula na segunda, muito embora tivesse de enfrentar o período antes do recreio e depois do recreio. Na terça, a turma pegava os dois últimos tempos e eu caí na besteira de dar uma redação. Foi aí que aconteceu. Reginaldo e seu amigo mais chegado, Paulo César, esticaram o tempo e diziam não terem terminado a redação no final da aula. Eu não sabia o que fazer, já que teria de me encontrar com o tal grupo de professores para pegar o ônibus. Se perdesse o grupo, teria de esperar os professores do turno da noite saírem. Chegaria de madrugada em casa! Mas não tive coragem de reagir. Estava nervosa, sem saber como resolver o problema e percebia que eles estavam mesmo enrolando. Parecia de propósito. Me entregaram o trabalho depois das 19:05. Eu perdera a companhia dos colegas. Jurei que não voltaria mais ali. Não precisava me expor a tal ponto. Me encaminhei para a diretora para pedir orientação. Já tinha ido embora. A secretaria fez aquele “chi”, de novo. Acho que ela tinha esse “chi” na ponta da língua para tudo. Deveria ser vício de linguagem. Aconselhou-me, no entanto, a ficar no portão do colégio para tentar, quem sabe, alguma carona de alguém que tivesse ido de carro ou algum grupo que fosse descer a rua. Caso contrário, só mesmo esperando terminar o turno da noite. Telefonei para casa avisando que perdera o ônibus. Embiquei para o portão. Dois vultos na penumbra, do lado de fora. Nada mais nada menos do que Reginaldo e seu amigo. O que estariam fazendo ali? Ao me verem, se aproximaram e Reginaldo me disse:

- Professora, vamos acompanhar a senhora até a Barão.

Referia-se à Barão do Monte Alto, a tal rua do ônibus, lá embaixo, depois de atravessar sete longos minutos da tal Estrada Comari.

Senti meus ouvidos zunirem, fiquei um pouco tonta, meu estômago congelou. Eu não sabia se isso era bom ou mal. Mas todo o meu corpo se sentiu em perigo. Adrenalina pura. Eu tinha de resolver o que fazer. Negar? Estaria perdida nas aulas seguintes. Aceitar? O que poderia me acontecer? Acreditei nos anjos, acreditei nas palavras da diretora “Reginaldo é um bom menino”, mas estava muito claro para mim que aquilo era uma armação. Eles tinham se atrasado e estavam me esperando ali. O que fariam comigo? Até hoje, eu não sei por que aceitei. Se alguém estivesse me contando essa história eu diria com certeza que, se fosse eu, não tiraria os pés da escola nem que os deuses do olimpo viessem em bando tentar me convencer do contrário. Mas fui. E, aí, aconteceu o inusitado. Passamos por vários grupos esquisitos, uns jovens mal encarados, alguns com bebida nas mãos. A Estrada Comari não tinha qualquer iluminação e era rodeada, dos dois lados por terrenos baldios. Os bandos que encontramos estavam conversando em pé, todos eles. Não vi armas, não vi nada, mas eu tremia da cabeça aos pés. Reginaldo engrenou um papo cujo conteúdo não sei dizer qual foi. Ele via que eu estava apavorada. Na verdade, não sabia se ele estava falando comigo ou com o amigo. Eu andava meio ensurdecida, meio anestesiada, pronta para sucumbir ou ser sucumbida. Mas eles foram atravessando cada roda de marginais dizendo:

- Licença aí pra professora, licença aí pra professora.

Não cheguei a me acalmar, nem a sair do estado de alerta, mas algo me dizia que eu não corria perigo. Pelo menos, não iminente. Enfim, chegamos ao ponto do ônibus e Reginaldo apenas me disse:

- Agora ninguém deve nada a ninguém. Pode descer sozinha quando quiser, que ninguém vai mexer com a senhora.

Caiu a ficha. Ele estava me pagando o favor. Eu lhe dera curativos na véspera. Ele me dera proteção na rua. Vim para casa sem saber se isso era bom ou mal. Pela minha amiga, era bom. De alguma forma, eu tinha tocado em algum ponto importante do jovem. Talvez as coisas rumassem melhor a partir daí.

O fato é que, realmente, quando eu me atrasava, descia a Comari sozinha, encontrando os grupos que sempre me cumprimentavam: “boa noite professora”. E ninguém mexia comigo. Poderoso esse Reginaldo. Muitos anos depois, essa imagem também se desfez. De modo geral, os professores são respeitados e tive outras oportunidades de entrar em favelas ou bairros suspeitos, tendo sido apresentada antes como professora. Às vezes, penso como seria bom sermos assim tão respeitados também pelas autoridades em nossa profissão. De qualquer modo, a atitude de Reginaldo fora diferenciada e ele, com certeza, queria dizer algo para mim. Alguma coisa me dizia que eu tinha conseguido tocar um pedacinho de seu coração. Será?

Minha brilhante amiga me instruiu direitinho: eu precisava mostrar ao Reginaldo que sabia que a liderança era dele e que eu dependia dela para conseguir dar aula. Ao contrário do que aprendemos na academia, a questão, ali, não era mostrar que quem manda é o professor. A psicologia era outra. Ela me dirigia como quem dirige um barco no meio da tempestade, mas sua destreza com a experiência anterior no presídio tinha sido um presente dos céus para mim. Então, fazer tudo para que minhas aulas dependessem da liderança do Reginaldo. Assim, eu não estaria nem de longe querendo tocar em sua autoridade diante da turma. Diante da fragilidade da situação, me parecia mesmo o melhor seguir seus experientes conselhos.

Na semana seguinte, no meio da aula, se é que se poderia chamar aquela bagunça de aula, Reginaldo me chamou, levantando a mão. Me dirigi a sua carteira e ele me mostrou um saquinho. Pensei que ele iria devolver o apetrechos de curativo que eu tinha levado na semana anterior. Não era isso. Perguntou-me:

- Sabe o que é isso?

- Não.

- Tem um sapo aqui dentro e pretendo soltar ele na sala. Mas vou esperar sua aula acabar. Talvez eu solte na outra. Mas se a senhora dedurar vou considerar traição.


Que dilema! Estaria expondo meu colega que entraria depois. O que fazer? Fui totalmente covarde e sofri por isso por um longo tempo. Não disse nada. Pela primeira vez, e logo no início de minha carreira, me senti traindo um colega. Esse amargo na boca me custou muitas noites de sono. Noites sem conta. Na semana seguinte soube o que acontecera: o colega entrou, viu o sapo e simplesmente saiu da sala. Não deu aula naquele dia. Segundo ele, não “se esquentou” com a questão. Simplesmente foi embora mais cedo. Deveria ter-me aliviado, mas, na verdade, a marca de minha postura me tocou profundamente. Sei o quanto isso foi valioso nas minhas conquistas junto a Reginaldo, mas o amargor que este fato me custou marcou um aprendizado de ética que me custou bem caro em todas as outras oportunidades futuras, às quais fiquei duplamente atenta. Às vezes, é mesmo preciso errar para aprender. Se é que aquilo teria sido um erro. Mas eu o via como tal.

Depois do episódio do sapo, no entanto, só faltou mais um fato para a conquista definitiva de Reginaldo. Na semana seguinte, quando estava ainda no corredor, caminhando em direção à sala, um dos alunos veio me avisar que Reginaldo estava completamente bêbado. Meus deuses, e agora? Um marginal bêbado dentro de sala, como seria? O que eu estava fazendo ali! Entrei pronta para sair, caso a coisa estivesse feia. Que se danasse a psicologia, eu não ficaria com um marginal bêbado dentro de sala. Era coisa para a diretora resolver. Felizmente, no entanto, não sou precipitada. Entrei. Reginaldo estava completamente caído da cadeira, recostado na parede, não sei como. Paulo César me disse que ele tinha tido um confronto com o chefe de outro grupo. Disputaram quem conseguiria beber mais sem cair. Era, portanto, uma disputa de fortaleza e liderança. Reginaldo tinha vencido, pois conseguiu sair e andar até a escola sozinho. Mas, ali, ele estava imprestável. Senti, no ato, que ele estava completamente incapacitado a fazer qualquer algazarra, tal o estado de prostração. E eu estava ficando mais espertinha. Cheguei perto dele e falei:

- Ok, sei que você não está bem. Vamos fazer um acordo: eu não digo nada na diretoria e você não atrapalha minha aula.

Eu estava em vantagem. Ele sequer conseguia abrir o olho quanto mais me responder! Paulo César tomou a liderança da turma e mandou todo mundo calar a boca e ai de quem falasse qualquer coisa na secretaria. Foi o primeiro dia em que dei aula tranquilamente. A turma estava meio em choque. Realmente, eu estava em vantagem. Ademais, Paulo César mandava todo mundo ficar quieto, provavelmente, para não chamar a atenção do inspetor de alunos para a sala. Pegar Reginaldo naquele estado, com certeza, daria confusão.

Dali por diante, fui conquistando a turma aos poucos e não me lembro bem como, no mês de maio (lembro-me disso por causa do meu aniversário), era a turma em que eu conseguia dar as melhores aulas. Na entrada da sala eu já dizia:

- Reginaldo, cheguei.

Nunca foi verbalmente combinado, mas eu não olhava para a turma até ele me dizer:

- Pode começar professora.

Era como se eu não estivesse lá. O que ele fazia, eu não sei. Só sei que eu me virava de costas, apagando o quadro negro, enquanto ele punha ordem no caos. Às vezes eu ouvia o som de caderno voando ou coisa assim. Turma sentada, todos nos lugares e em silêncio:

- Pode começar professora.

Se, no meio da aula a bagunça começava a aparecer ou havia muito bulício e dispersão, eu apenas dizia:

- Reginaldo, dá um jeito na turma pra mim?

Quando aquele negro, alto, de porte altaneiro, de bigode, começava a se levantar, todo mundo sentava. Mas seus olhos, no fundo, eram muito doces. Daí para ficarmos amigos não demorou muito. E, se no primeiro mês ele teve conceito “E”, posso orgulhosamente dizer que em setembro, ele ostentava um belíssimo “B” na minha disciplina. E, posso garantir que foi às próprias custas, pois nunca dei refresco a ninguém.

Se há um aluno de quem sinto especial saudade é o Reginaldo. Chegamos a conversar algumas vezes, em alguns intervalos. Seu sonho era ser médico, mas, segundo ele dizia, era tarde demais.

- Eu não vou poder estudar pra medico. Eu sei disso. Não é pra mim. Estou velho, vou fazer 18 anos e aí, não poderei estudar mais. Vou servir o exercito no ano que vem. Acho que é o máximo que vou poder fazer da minha vida. Quem sabe, eu acabe um bom soldado.

Tenho lágrimas nos olhos ao escrever isso, ao me lembrar de seus olhos negros e profundos. Eu nem sei se ele iria querer mesmo ser médico, se foi um sonho de momento. Mas a dor de ver alguém tão precioso e de olhar tão doce, perdido num canto qualquer do mundo, se vendo sem chance, multiplicou em mim, a consciência de como vivemos tão longe da realidade social. Olhar de fora e de longe é muito diferente do que sentir, na pele, a vida dessas pessoas.

Nunca mais soube do Reginaldo. Na verdade o tremendo esforço de me despencar da universidade para Campo Grande, debaixo de sol ou chuva, colocando botas para subir a Estrada do Comari, tendo almoçado apenas um biscoito na viagem entre a zona sul e a rural, e ficando sem comer até as 22 horas, custou-me um preço muito alto e tive de abandonar o Município e ficar só com a universidade, após uma licença de três meses para cuidar da saúde.

Hoje Reginaldo estaria com 52 anos, provavelmente. Gostaria de reencontra-lo para saber de sua vida. É mais provável que eu tenha me apagado nos rastros de seu passado. Para mim, no entanto, ele foi um grande marco de amizade, de pacto, de aprendizado e de amor incondicional sincero. Amei-o como se ama a um “filho emprestado”, encontrado, sem querer, à beira da estrada da vida. E do mesmo modo que nos encontramos, de repente, seguimos, cada um, o seu caminho. Mas, para mim, ele estará guardado no meu coração para sempre.

sábado, 23 de outubro de 2010

O MICO


Cônsules são tão cuidadosamente formados e preparados para a função que não se espera um mico, principalmente em situações delicadas. Nós nos esquecemos de que são humanos. Não perdoamos a gafe. Mas essa é mesmo digna de nota.

Tudo começou quando fui visitar uns amigos em Manaus. Ele, militar da marinha, super conceituado, foi designado para uma missão na Amazônia, por dois longos e intermináveis anos. Digo isso, como amiga distante da família, presa no Rio pela saudade principalmente de sua esposa, minha ex-aluna e amiga, saudade dele mesmo, que considero um doce irmão, da mãe e das crianças, naquela época, bem pequenas.

A oportunidade de visitá-los surgiu, um ano depois de sua ida, nos feriados da independência. Meu “irmão” iria estar de folga e poderíamos curtir bem os feriados, conhecendo os cantos gostosos dos meandros amazonenses, dando descanso à saudade. E fui. Na mala, apenas roupas esportivas e, para não deixar uma mala feminina incompleta, um vestido para jantar. Nunca se sabe.

Graças aos deuses as mulheres pensam no “nunca se sabe”. Nesse caso, esse nunca se sabe aconteceu em todas as cinco noites ocorridas em Manaus. Todas. Ocorre que meu querido comandante foi, à última hora, convocado para fazer as honras às nações vizinhas que vieram em suas embarcações ao Brasil para oferecerem suas homenagens ao evento da independência. Mais especificamente, navios da Guiana Francesa, Paraguai e Uruguai. Nosso feriado foi para os ares, pois, fazer as honras significa ser responsável por todos os requisitos do anfitrionato, durante o dia, e aos jantares durante a noite, levando a família, naturalmente. Isso queria dizer um jantar na embarcação de cada um dos navios estrangeiros em cada noite, mais a noite no navio brasileiro e, para encerrar, um jantar na casa de um cônsul que não vou dizer qual é, pois a gafe veio mesmo dele. Tudo isso sem contar com um ataque simulado de guerra que teria de ser comandado pelo nosso ilustre chefe de família, fazendo parte do kit, o que significou que ele não podia estar conosco nas horas diurnas, enfurnado que ficou no comando das estratégias do exercício militar. Brincadeira de bandido e mocinho.

De qualquer modo, pelo menos, vi a família e passei por momentos muito interessantes. O comandante brasileiro, como disse, foi convidado a cada noite para jantar em um dos navios. Ele e sua família. Bom, eu não era da família e já estava me preparando para ficar em casa, lendo um bom livro, já que, às noites, não teria o que fazer sozinha pela cidade. Manaus, à noite, naquele tempo, só mesmo para quem conhecia. Agora não sei como está. Mas nem passou pela cabeça de nosso comandante me deixar em casa. Meu “irmão” não fez por menos. Colocou-me na lista familiar. É preciso, a esta altura, esclarecer que somos de raças diferentes. Bem diferentes. Ele é um negro de porte, ombros largos, alto, tipicamente filho da África. A esposa também da raça negra e eu, como você já viu nas fotos, porte delgado, branca, de olhos claros. Mas, tudo bem. Seu comandante ordenou, quem sou eu para discutir. Só que à entrada no primeiro navio, talvez mais por carinho do que por outro motivo, fui apresentada como sendo sua irmã. E assim ficou, como um epíteto carinhoso. E, depois da apresentação do primeiro dia, tendo sido tudo tratado com a maior naturalidade, me senti um pintinho no lixo, super à vontade, com o novo título.

O fato é que nos consideramos irmãos mesmo e isso, no fundo, era muito natural. E nos conhecíamos há tantos anos que eu mesma não me sentiria não irmã, em algum momento. Justiça seja feita: as coisas estavam no lugar. Só no dia do jantar do cônsul é que fomos perceber o quanto o fato tinha chamado a atenção de todos e como tinha sido levado a sério!

Depois de todos saírem da mesa e estarmos em grupos pela sala, o cônsul sorridente, me perguntou:

- Há quantos anos vocês se conhecem?

Levando a brincadeira adiante, apenas respondi:

- Desde que ele nasceu, já que sou mais velha.

Pelo olhar admiradíssimo do cônsul, percebemos, no entanto, num segundo, toda a história daqueles dias, os supostos comentários e a tremenda curiosidade em torno do fato. Mas aí já era tarde, fiquei firme. Meu irmão colocou a mão sobre o meu ombro e ficou firme idem, dando força ao pedaço. Acho que surgiu, de repente, em nosso espírito altaneiro, a luta contra a discriminação. Sua mão no meu ombro contou tudo e, ali, se concretizou a defesa de nossos princípios.

Mas o cônsul não percebera e capturado, talvez, menos pela singeleza da resposta do que pela estupefação insistiu:

- Mas vocês são irmãos mesmo, de mesmo pai e da mesma mãe?

Isso, com certeza, feria o protocolo. E muito. Não era pergunta que se fizesse em alto em bom som, em pleno território brasileiro (ou qualquer outro lugar do mundo!), em um jantar oficial, com os cerimoniais de praxe, vinda de uma pessoa com quem não tínhamos qualquer intimidade. A brincadeira ingênua dos primeiros dias, de repente, valia uma defesa de princípios! Num pacto de segundo, meu irmão e eu percebemos que a gafe agia por si só e merecia ausência de resposta para ficar mais contundente. Apenas olhamos para ele. Nós e todos os convivas. Silêncio geral, “daqueles” silêncios desconcertantes.

Eu não tinha a mínima intenção de ajudá-lo a consertar o mico. Teve de fazê-lo sozinho, convidando a todos para se deslocarem para a outra sala, para um café.

Um sem número de vezes, durante a vida, tive de optar pelas cidadanias da minha alma, todas, quase sempre, ligadas aos direitos de classes discriminadas socialmente. Em todas felizmente, tive a chance de colocar meus princípios a favor da minha liberdade de ser, acima de tudo, uma cidadã do mundo.

Fui para casa radiante por dentro, com a alma em festa por ter deixado tão mal uma eminente autoridade do “nada”. Agradeço a esse cônsul, portanto, mais uma noite de sonhos bem dormida. E também a meu irmão, por termos feito isso acontecer.

sábado, 16 de outubro de 2010

O PAPA


Fui a Roma e não vi o papa. Tinha tanta coisa a fazer na Itália, que, realmente, não deu. Em princípio, nada contra o papa. Era mesmo uma questão de tempo ou, quem sabe, um excesso de terços e ladainhas, já estressantemente vivenciados em meus dez anos de internato. Por conta de reza, portanto, com certeza não estaria eu em falta.

Mas fui ao Vaticano. Palmilhei a cidade atrás das artes, da biblioteca, da própria basílica que é estrondosamente interessante, embora eu não a tenha achado a mais bela do mundo. É difícil derrubar a beleza de Notre Dame, o encanto da Saint Chapelle, a monumental Catedral de Colônia, só para citar algumas, já me esquecendo da Catedral de Milão e da indescritível porta do sol do Batistério de Florença... de qualquer forma, me encantei com muitos dos inumeráveis detalhes da catedral mor da cristandade.

Só não agüentei visitar o tesouro do papa. A santa igreja que me desculpe, mas tudo que aprendi no internato a respeito dos votos de caridade e pobreza foi palmo a palmo desmentido no meio de tanta escandalosa riqueza.

Não tenho nada contra riquezas. Nadica. Cada um que tenha a sua com direito de posse e postura que mais desejar. Sejamos ricos ou pobres a nosso gosto ou desgosto, ninguém tem nada a ver com isso. Se você quer dividir o que tem com alguém que tem menos do que você, problema e gosto seu. Qualquer tipo de julgamento a esse respeito, para mim, está destituído de senso de valor.

Não tenho posições políticas a respeito. Não me considero capitalista, nem socialista. E também não jogo na coluna do meio. Sou nada. Que me considerem alienada, não me importo. Mas sei que sou uma pessoa de profundo bom senso. E não cabe no meu bom senso ter aprendido que os religiosos fazem votos de pobreza e cada papa, sob o argumento de conter a representação de um “Estado” ostente tanta riqueza sem tamanho.

Fui constatar isso ali, nos subterrâneos da Basílica de São Pedro. Cada papa, dos inúmeros que o mundo viu, teve seu próprio manto incrustado de riquezas sem fim, entre ouro, pedras preciosas e bordados transcendentais. Cada um teve seu bastão, seu ostensório, seu anel, seus paramentos, enfim, seu riquíssimo enxoval. Nada passou de um para outro. E pior, que eu saiba, não está em pauta a idéia de doação desses bens a necessitados. Tudo faz parte do patrimônio dessa cidade-estado.

Passar por esse museu, uma vez que se entra, não tem volta. Nos primeiros passos, antevi o que veria e quis voltar. Não era permitido. Uma vez no labirinto, tinha de trilhá-lo até o final. Depois de poucos passos, comecei a passar direto. Na verdade, comecei a passar mal. Meu estômago literalmente embrulhou. Queria ar, queria sair dali. Por que não poderia voltar? Não tinha jeito, tinha de seguir em frente, o que fiz o mais rápido que pude. Para completar, o museu desemboca numa lojinha de recordações, com réplicas de relíquias, coisas sagradas à venda, etc.

Repito: não tenho nada contra riquezas. E não teria nada contra as riquezas do Vaticano. Eles podem ser podres de ricos que para mim não faz diferença alguma. Só não agüento ter sido interna aprendendo votos de pobreza por parte dos religiosos. Não faz sentido. Nenhum. Sejam ricos! Sejam felizes! Só não me peçam para abrir os meus bolsos em dízimos, pois sou paupérrima perante o que vocês tem! Fiquei confusa, completamente confusa com esta visita.

Se algum apreço eu ainda guardava dos princípios de caridade e compaixão cristãs por parte da educação religiosa que tivera, estava literalmente “desconvertida”. E revoltada também. E traída. Não houve explicação que me convencesse. Os argumentos são vários a respeito do patrimônio de Estado. Nada feito. Eu não tenho nada contra riquezas, já disse. Podem estar carregados de ouro, já disse. Só não me venham com discursos de caridade!!! Para mim, isso passou a me parecer fazer favor com chapéu dos outros e, no caso, caridade com o meu chapéu!!! Nada disso.

Enquanto eles não entrarem materialmente na concretização da compaixão pelo outro, o assunto está encerrado para mim. Não tem doação em nome de igreja alguma que eles consigam me convencer a fazer. Minhas doações, a partir daí, passaram a ser diretas, do meu bolso ao consumidor, exceção feita aos Médicos sem Fronteiras e a uma creche sustentada por um amigo que você já conheceu, se leu o conto “a ponte”.

A santa madre igreja me desculpe, mas acho que está muito longe de me convencer que aquele tesouro tem razão de ser. E olha que aquilo é apenas uma amostra! Nem todos os pertences estão ali!

Saí do Vaticano com duas lacunas. Essa e o fato de que a biblioteca mostra apenas um pequeno filão do ouro em forma de conhecimento e documentos que os subterrâneos guardam em seus papiros e tudo que seus livros devem conter. Quanta sabedoria escondida continua guardada e trancada a sete chaves... e por quê? Será que um dia virá a luz?

Fora isso, adorei estar lá. A visita à basílica foi amenizada pelas pinturas da Capela Sistina. Ficaria horas esquecida, exercitando meu pescoço em busca de detalhes daquelas pinturas monumentais. Não fossem os dias contados, não teria saído dali tão cedo, meio puxada pela mão de meu ex que tinha um roteiro cheio de atrações, ainda para o mesmo dia.

Enfim, adorei ter ido. Até pela experiência, pelo dissabor, pela vivência. Não vi o papa. Depois da visita às riquezas, acho que ficaria muito triste em vê-lo. Pareceria uma hipocrisia, pelo menos para mim. Não poderia saudá-lo. Não conseguiria.

Paciência. Tenho minhas limitações de entendimento e compreensão. Não engoli a pílula. Quem sabe, um dia, eu consiga entender para que ela serve. Por enquanto, soaria como veneno e me faria muito mal engoli-la ou deixar de comentar sobre o assunto.

Que você me leia com a condescendência de quem é capaz de entender que não posso calar-me diante da pobreza que vejo diariamente a minha volta e de quem compreende que não consigo entender o discurso doce do dízimo. Não esse dízimo. Os deuses que me perdoem.