sábado, 30 de outubro de 2010

REGINALDO


Formada em 1973, emendei em um concurso público para professora do Município do Rio de Janeiro, ensino fundamental. Naquela época, passar em concurso, com raras exceções, significava ser mandada para depois de onde judas perdeu as botas. Será diferente hoje em dia? Não sei. O fato, em si, não me chateou. Apesar da distância, dar aula em uma área menos favorecida me atraía, alimentando minha vontade de estar mais próxima da realidade de nossa sociedade carente. O problema era chegar lá.

Como tinha sido convidada a dar aulas na Universidade onde acabara de me formar, ir para Campo Grande, zona rural, exigia uma estratégia em alto estilo, pois os horários praticamente se emendavam. E era uma viagem, sem dúvida. Na mocidade, no entanto, isso não conta e está sempre tudo bem.

Aos novatos estavam sempre reservadas as piores turmas. E uma delas era conhecida como a turma do Reginaldo. Soube o que isso significava ao pegar meu horário e os diários de classe na secretaria:

- Você vai pegar a turma do Reginaldo? Chi...

Como recém formada, sem experiência nenhuma, aquele “chi” esfriou cada vértebra de minha coluna. Mas não tinha jeito. Fingi que não tinha ouvido e segui para o desconhecido. Justamente a turma do Reginaldo estava com o horário cortado pelo recreio. Se a turma era difícil, dar duas aulas interrompidas por um recreio, seria pior ainda. E, no dia seguinte, a turma pegava os dois últimos horários, o que também era pesado, já que os alunos, geralmente, ficam agitados, ansiosos por irem embora. Mas eu procurava não pensar nisso.

Entrei na sala com atitude de quem sabia o que estava fazendo. A porta ao fundo da sala, me fez percorrer o caminho até a mesa, passando pelas mesas dos alunos. Literalmente, andar pelo meio da turma. Cumprimentei-os, ninguém respondeu. Logo na entrada, ouvi a observação de um dos meninos:

- É isso que vai dar aula pra gente?

E ele tinha razão. Aos 22 anos, concordo que eu tinha cara de uns 16, no máximo. Ainda tinha de mostrar minha carteira de identidade em filmes de 18! Fingi não ouvir e consegui alcançar a mesa viva.

Eu estava recém formada, com tudo fresquinho na cabeça e uma vontade imensa de ser uma boa professora. Mas era uma diferença gritante sair de uma universidade da zona sul, onde horas atrás eu tinha dado aula de grego e cultura clássica para enfrentar a turma do Reginaldo, mais da metade dos alunos trepetentes, isto é, cursando o mesmo nível pela terceira vez. Mas aí justamente talvez estivesse o sentido de estar ali, era o que contestava minha alma jovem e cheia de ideais.

Apresentei-me à turma e parece que aquele momento foi o único em que consegui ter a turma atenta nos dois próximos meses. Eu estava doida para saber quem era o Reginaldo, mas não dava o meu braço a torcer. Também não queria me arriscar a fazer a chamada da turma logo no começo, já que eles estavam atentos. Mas durou pouco, havia um bulício que me fazia sentir como se estivesse ali dando aula a ninguém. Foi um custo falar até que a campainha do recreio me salvou. Ufa, intervalo. Mas um negro de alto porte levantou-se, dirigiu-se à porta e fechou-a, dizendo:

- Hoje ninguém sai.

Reginaldo. Dispensado de melhor apresentação. Encostado à porta, olhava para mim. Me lembro que entrei em pânico e dizia para mim mesma ter calma. Tudo me passava pela cabeça, menos gritar por socorro. Não teria voz, eu sei. Aí, me lembrei da minha professora de Estrutura e Funcionamento de Ensino, que aliás, em termos de conteúdo nada teria a dizer para mim naquele instante. Mas aguçou minha memória uma observação que ela tinha feito num dos intervalos de aula: muitas crianças só iam à escola por causa da merenda. Santa professora, nem sabe como isso me salvou, nesta hora à beira do abismo. Olhei para a turma e disse:

- Eu estou com fome e vou lanchar. Quanto a vocês, não sei.

Me dirigi à janela, pulei, dei a volta pelo pátio e entrei na sala dos professores. Não sabia o que fazer. Olhando pela janela, vi a turma no pátio. Ele tinha liberado a turma. Falar com a diretora? Tinha medo de perder a autoridade de vez, não só perante a turma, mas também pela vergonha que sentiria diante dela, uma senhora, perto dos meus inexperientes 22 anos. A próxima aula era na mesma turma, o que fazer? Com certeza estariam esperando por alguma repreensão, alguma atitude, talvez eu fosse acompanhada da diretora ou coisa assim. Não fiz nada, talvez mais por medo do que por iniciativa. Voltei morrendo de medo por dentro, mas fingi que nada tinha acontecido. Passei uma redação, pois me sentia incapaz de dar aula. Meu medo era o de que simplesmente se negassem a fazer. Reginaldo me enfrentou novamente:

- E se eu não quiser fazer?

- Não faça. Não vai valer nota mesmo. É só para eu sentir como vocês estão escrevendo.


Não me lembro se ele escreveu. Lembro-me apenas que o nível da turma era baixíssimo. E a turma era completamente diversificada, tendo alunos de 12 a 17 anos. Reginaldo era o mais velho e também o mais forte. Segundo o conceito dos professores, também o mais marginal. Eu não sabia até onde corria o significado de “marginal” e era, na verdade, a última coisa que queria saber para tentar enfrentar melhor o meu medo, naquele dia.

O fato é que o horário escolar terminou e eu fui apresentada a outra intempérie: os professores deveriam sair juntos para atravessarem, com segurança, a Estrada Comari, rumo a Barão do Monte Alto. Se não fosse com o grupo, não daria para pegar o ônibus das 19:20. Ninguém se arriscaria a descer sozinho pela Comari, mato alto dos dois lados, naquela escuridão. Sair no horário passou a ser, portanto, uma questão de honra, todos reunidos na saída da escola às 19:05. Quem não estivesse ali, não dava para esperar. Significaria perder o ônibus.

Cheguei em casa meio aos prantos. Jurei nunca mais voltar lá. Telefonei a uma grande amiga, psicóloga, bem mais velha do que eu, que já tinha trabalhado em um presídio no Rio de Janeiro. Que sorte a minha! Deu-me todo colo profissional que eu precisava. E soube dá-lo como ninguém. Por uma questão de responsabilidade, voltei no dia seguinte. Dali, teria todo o resto da semana para saber o que eu faria e, com certeza, muitos e muitos papos com essa amiga caída dos céus. De pronto ela me fez ver que seria questão de honra conquistar Reginaldo. O resto seria fácil. Mas como conquistar aquela fera? Meu estômago dava um nó só de olhar para ele. Conversei também com a diretora. Por incrível que pareça, o que ela disse foi fundamental:

- Reginaldo não é má pessoa, querida. É um jovem muito sofrido, nem sabe quem é o pai. Outro dia o vi entregar roupa numa casa aqui perto. Sua mãe é lavadeira. É certo que tem um comportamento marginal, mas acho que é a forma que ele encontrou de ser respeitado nesse fim de mundo. A região aqui, como você vê, não é fácil. E ele é muito respeitado na rua por todos.

Que mulher! Ao contrário de todos, na escola, tinha o olhar de lince, o carinho, o cuidado, a seriedade que, logo percebi, eram os responsáveis por faze-la tão querida por professores, funcionários e alunos.

Mas voltemos aos fatos: conquistar Reginaldo, o menino que não era má pessoa. Sorri no meu desespero e parece que a vida estava começando a facilitar as coisas para o meu lado. Eu ia à escola às segundas e terças. Na segunda seguinte, ao entrar na sala, vi Reginaldo com dois profundos cortes no braço. Muito fundos. Não perguntei nada e segui em frente. Tinha um pacto com minha amiga de seguir a risca suas orientações e não queria dar mancada alguma. Por que eu continuava lá? Não me pergunte, pois até hoje eu não tenho essa resposta. Minha amiga, no entanto, era a tábua de salvação e à noite contei o que vira a ela. No mesmo momento ela soube identificar o ferimento: briga com navalha dupla.

- O que é isso?

- Briga com duas navalhas em uma só mão. Precisa ter muita destreza e parece que esse seu aluno tem. Mas levou um bom talho. Quando se luta com duas navalhas o objetivo é ferir o adversário cortando-o com as duas lâminas ao mesmo tempo. Assim, a cicatrização é muito lenta, pois a pele que puxa para cicatrizar um lado, abre a ferida do outro. Esse seu menino não é brinquedo não e, se ele só se feriu no braço, com certeza levou a melhor.

- O que eu faço?

- Nada muito direto. Compre tudo que você achar que seria bom para curativo, coloque num saquinho discreto e, quando passar pela carteira dele, amanhã, coloque em cima da mesa dele e diga baixo e discretamente: para o seu ferimento. Depois, siga em frente e finja que não fez nada. Vamos ver como ele reage. Se a diretora disse que ele é um bom menino e como me chamou a atenção que ele entrega a roupa para mãe, pode ser mesmo que talvez esse seja um bom começo. E não olhe para ele durante a aula, de jeito nenhum. Assim, ele não se sentirá focado no resto do tempo. Pode constrangê-lo ou mesmo irritá-lo.


Fiz exatamente o que ela mandou e procurei não olhar para ele durante toda a aula, como estava prescrito.

Na semana seguinte, consegui dar alguma aula na segunda, muito embora tivesse de enfrentar o período antes do recreio e depois do recreio. Na terça, a turma pegava os dois últimos tempos e eu caí na besteira de dar uma redação. Foi aí que aconteceu. Reginaldo e seu amigo mais chegado, Paulo César, esticaram o tempo e diziam não terem terminado a redação no final da aula. Eu não sabia o que fazer, já que teria de me encontrar com o tal grupo de professores para pegar o ônibus. Se perdesse o grupo, teria de esperar os professores do turno da noite saírem. Chegaria de madrugada em casa! Mas não tive coragem de reagir. Estava nervosa, sem saber como resolver o problema e percebia que eles estavam mesmo enrolando. Parecia de propósito. Me entregaram o trabalho depois das 19:05. Eu perdera a companhia dos colegas. Jurei que não voltaria mais ali. Não precisava me expor a tal ponto. Me encaminhei para a diretora para pedir orientação. Já tinha ido embora. A secretaria fez aquele “chi”, de novo. Acho que ela tinha esse “chi” na ponta da língua para tudo. Deveria ser vício de linguagem. Aconselhou-me, no entanto, a ficar no portão do colégio para tentar, quem sabe, alguma carona de alguém que tivesse ido de carro ou algum grupo que fosse descer a rua. Caso contrário, só mesmo esperando terminar o turno da noite. Telefonei para casa avisando que perdera o ônibus. Embiquei para o portão. Dois vultos na penumbra, do lado de fora. Nada mais nada menos do que Reginaldo e seu amigo. O que estariam fazendo ali? Ao me verem, se aproximaram e Reginaldo me disse:

- Professora, vamos acompanhar a senhora até a Barão.

Referia-se à Barão do Monte Alto, a tal rua do ônibus, lá embaixo, depois de atravessar sete longos minutos da tal Estrada Comari.

Senti meus ouvidos zunirem, fiquei um pouco tonta, meu estômago congelou. Eu não sabia se isso era bom ou mal. Mas todo o meu corpo se sentiu em perigo. Adrenalina pura. Eu tinha de resolver o que fazer. Negar? Estaria perdida nas aulas seguintes. Aceitar? O que poderia me acontecer? Acreditei nos anjos, acreditei nas palavras da diretora “Reginaldo é um bom menino”, mas estava muito claro para mim que aquilo era uma armação. Eles tinham se atrasado e estavam me esperando ali. O que fariam comigo? Até hoje, eu não sei por que aceitei. Se alguém estivesse me contando essa história eu diria com certeza que, se fosse eu, não tiraria os pés da escola nem que os deuses do olimpo viessem em bando tentar me convencer do contrário. Mas fui. E, aí, aconteceu o inusitado. Passamos por vários grupos esquisitos, uns jovens mal encarados, alguns com bebida nas mãos. A Estrada Comari não tinha qualquer iluminação e era rodeada, dos dois lados por terrenos baldios. Os bandos que encontramos estavam conversando em pé, todos eles. Não vi armas, não vi nada, mas eu tremia da cabeça aos pés. Reginaldo engrenou um papo cujo conteúdo não sei dizer qual foi. Ele via que eu estava apavorada. Na verdade, não sabia se ele estava falando comigo ou com o amigo. Eu andava meio ensurdecida, meio anestesiada, pronta para sucumbir ou ser sucumbida. Mas eles foram atravessando cada roda de marginais dizendo:

- Licença aí pra professora, licença aí pra professora.

Não cheguei a me acalmar, nem a sair do estado de alerta, mas algo me dizia que eu não corria perigo. Pelo menos, não iminente. Enfim, chegamos ao ponto do ônibus e Reginaldo apenas me disse:

- Agora ninguém deve nada a ninguém. Pode descer sozinha quando quiser, que ninguém vai mexer com a senhora.

Caiu a ficha. Ele estava me pagando o favor. Eu lhe dera curativos na véspera. Ele me dera proteção na rua. Vim para casa sem saber se isso era bom ou mal. Pela minha amiga, era bom. De alguma forma, eu tinha tocado em algum ponto importante do jovem. Talvez as coisas rumassem melhor a partir daí.

O fato é que, realmente, quando eu me atrasava, descia a Comari sozinha, encontrando os grupos que sempre me cumprimentavam: “boa noite professora”. E ninguém mexia comigo. Poderoso esse Reginaldo. Muitos anos depois, essa imagem também se desfez. De modo geral, os professores são respeitados e tive outras oportunidades de entrar em favelas ou bairros suspeitos, tendo sido apresentada antes como professora. Às vezes, penso como seria bom sermos assim tão respeitados também pelas autoridades em nossa profissão. De qualquer modo, a atitude de Reginaldo fora diferenciada e ele, com certeza, queria dizer algo para mim. Alguma coisa me dizia que eu tinha conseguido tocar um pedacinho de seu coração. Será?

Minha brilhante amiga me instruiu direitinho: eu precisava mostrar ao Reginaldo que sabia que a liderança era dele e que eu dependia dela para conseguir dar aula. Ao contrário do que aprendemos na academia, a questão, ali, não era mostrar que quem manda é o professor. A psicologia era outra. Ela me dirigia como quem dirige um barco no meio da tempestade, mas sua destreza com a experiência anterior no presídio tinha sido um presente dos céus para mim. Então, fazer tudo para que minhas aulas dependessem da liderança do Reginaldo. Assim, eu não estaria nem de longe querendo tocar em sua autoridade diante da turma. Diante da fragilidade da situação, me parecia mesmo o melhor seguir seus experientes conselhos.

Na semana seguinte, no meio da aula, se é que se poderia chamar aquela bagunça de aula, Reginaldo me chamou, levantando a mão. Me dirigi a sua carteira e ele me mostrou um saquinho. Pensei que ele iria devolver o apetrechos de curativo que eu tinha levado na semana anterior. Não era isso. Perguntou-me:

- Sabe o que é isso?

- Não.

- Tem um sapo aqui dentro e pretendo soltar ele na sala. Mas vou esperar sua aula acabar. Talvez eu solte na outra. Mas se a senhora dedurar vou considerar traição.


Que dilema! Estaria expondo meu colega que entraria depois. O que fazer? Fui totalmente covarde e sofri por isso por um longo tempo. Não disse nada. Pela primeira vez, e logo no início de minha carreira, me senti traindo um colega. Esse amargo na boca me custou muitas noites de sono. Noites sem conta. Na semana seguinte soube o que acontecera: o colega entrou, viu o sapo e simplesmente saiu da sala. Não deu aula naquele dia. Segundo ele, não “se esquentou” com a questão. Simplesmente foi embora mais cedo. Deveria ter-me aliviado, mas, na verdade, a marca de minha postura me tocou profundamente. Sei o quanto isso foi valioso nas minhas conquistas junto a Reginaldo, mas o amargor que este fato me custou marcou um aprendizado de ética que me custou bem caro em todas as outras oportunidades futuras, às quais fiquei duplamente atenta. Às vezes, é mesmo preciso errar para aprender. Se é que aquilo teria sido um erro. Mas eu o via como tal.

Depois do episódio do sapo, no entanto, só faltou mais um fato para a conquista definitiva de Reginaldo. Na semana seguinte, quando estava ainda no corredor, caminhando em direção à sala, um dos alunos veio me avisar que Reginaldo estava completamente bêbado. Meus deuses, e agora? Um marginal bêbado dentro de sala, como seria? O que eu estava fazendo ali! Entrei pronta para sair, caso a coisa estivesse feia. Que se danasse a psicologia, eu não ficaria com um marginal bêbado dentro de sala. Era coisa para a diretora resolver. Felizmente, no entanto, não sou precipitada. Entrei. Reginaldo estava completamente caído da cadeira, recostado na parede, não sei como. Paulo César me disse que ele tinha tido um confronto com o chefe de outro grupo. Disputaram quem conseguiria beber mais sem cair. Era, portanto, uma disputa de fortaleza e liderança. Reginaldo tinha vencido, pois conseguiu sair e andar até a escola sozinho. Mas, ali, ele estava imprestável. Senti, no ato, que ele estava completamente incapacitado a fazer qualquer algazarra, tal o estado de prostração. E eu estava ficando mais espertinha. Cheguei perto dele e falei:

- Ok, sei que você não está bem. Vamos fazer um acordo: eu não digo nada na diretoria e você não atrapalha minha aula.

Eu estava em vantagem. Ele sequer conseguia abrir o olho quanto mais me responder! Paulo César tomou a liderança da turma e mandou todo mundo calar a boca e ai de quem falasse qualquer coisa na secretaria. Foi o primeiro dia em que dei aula tranquilamente. A turma estava meio em choque. Realmente, eu estava em vantagem. Ademais, Paulo César mandava todo mundo ficar quieto, provavelmente, para não chamar a atenção do inspetor de alunos para a sala. Pegar Reginaldo naquele estado, com certeza, daria confusão.

Dali por diante, fui conquistando a turma aos poucos e não me lembro bem como, no mês de maio (lembro-me disso por causa do meu aniversário), era a turma em que eu conseguia dar as melhores aulas. Na entrada da sala eu já dizia:

- Reginaldo, cheguei.

Nunca foi verbalmente combinado, mas eu não olhava para a turma até ele me dizer:

- Pode começar professora.

Era como se eu não estivesse lá. O que ele fazia, eu não sei. Só sei que eu me virava de costas, apagando o quadro negro, enquanto ele punha ordem no caos. Às vezes eu ouvia o som de caderno voando ou coisa assim. Turma sentada, todos nos lugares e em silêncio:

- Pode começar professora.

Se, no meio da aula a bagunça começava a aparecer ou havia muito bulício e dispersão, eu apenas dizia:

- Reginaldo, dá um jeito na turma pra mim?

Quando aquele negro, alto, de porte altaneiro, de bigode, começava a se levantar, todo mundo sentava. Mas seus olhos, no fundo, eram muito doces. Daí para ficarmos amigos não demorou muito. E, se no primeiro mês ele teve conceito “E”, posso orgulhosamente dizer que em setembro, ele ostentava um belíssimo “B” na minha disciplina. E, posso garantir que foi às próprias custas, pois nunca dei refresco a ninguém.

Se há um aluno de quem sinto especial saudade é o Reginaldo. Chegamos a conversar algumas vezes, em alguns intervalos. Seu sonho era ser médico, mas, segundo ele dizia, era tarde demais.

- Eu não vou poder estudar pra medico. Eu sei disso. Não é pra mim. Estou velho, vou fazer 18 anos e aí, não poderei estudar mais. Vou servir o exercito no ano que vem. Acho que é o máximo que vou poder fazer da minha vida. Quem sabe, eu acabe um bom soldado.

Tenho lágrimas nos olhos ao escrever isso, ao me lembrar de seus olhos negros e profundos. Eu nem sei se ele iria querer mesmo ser médico, se foi um sonho de momento. Mas a dor de ver alguém tão precioso e de olhar tão doce, perdido num canto qualquer do mundo, se vendo sem chance, multiplicou em mim, a consciência de como vivemos tão longe da realidade social. Olhar de fora e de longe é muito diferente do que sentir, na pele, a vida dessas pessoas.

Nunca mais soube do Reginaldo. Na verdade o tremendo esforço de me despencar da universidade para Campo Grande, debaixo de sol ou chuva, colocando botas para subir a Estrada do Comari, tendo almoçado apenas um biscoito na viagem entre a zona sul e a rural, e ficando sem comer até as 22 horas, custou-me um preço muito alto e tive de abandonar o Município e ficar só com a universidade, após uma licença de três meses para cuidar da saúde.

Hoje Reginaldo estaria com 52 anos, provavelmente. Gostaria de reencontra-lo para saber de sua vida. É mais provável que eu tenha me apagado nos rastros de seu passado. Para mim, no entanto, ele foi um grande marco de amizade, de pacto, de aprendizado e de amor incondicional sincero. Amei-o como se ama a um “filho emprestado”, encontrado, sem querer, à beira da estrada da vida. E do mesmo modo que nos encontramos, de repente, seguimos, cada um, o seu caminho. Mas, para mim, ele estará guardado no meu coração para sempre.

2 comentários:

Carmen disse...

Lembro dessa estória,de como eu achava você corajosa.Agora lendo os detalhes,fiquei comovida e emocionada.Abençoada seja a profissão de professor,abençoada seja você que sempre soube honrar e dignificá-la.B3eijos,Carmen.

Celina disse...

fiquei emocionada! Comecei na profissão com 14 anos e sei bem o pânico que dá encarar uma turma. mas a sua estória é mesmo uma superação.
bjs