sábado, 31 de julho de 2010

O SEGREDO


Entender a lógica de um internato, só vivendo. Não tem outro jeito. É mesmo como nos filmes, cheio de artimanhas, travessuras e segredos. Não tem a fantasia dos filmes, mas guarda um encantamento próprio. Quem soube ser “interno” sabe disso. Mas é preciso “ter sabido” ser interno. Senão, era mesmo um suplício sem fim. Digo isso em nome de muitas de minhas colegas.

Percebi bem cedo que saber adaptar-se é uma arte e uma imperdível opção de aprendizagem. Sou grata à vida também por isso.

Pois então: fui interna. Interna por exatos dez anos, segundo consta na regulamentação da separação de meus pais, declarada e consumada sob o martelo de um juiz. A menina será internada, como deseja o pai, num colégio à escolha do casal, para que tenha uma educação européia esmerada. Não tenho isso registrado, tim-tim por tim-tim, mas era mais ou menos esse o rumo da prosa, segundo soube muitos anos depois. Ter educação européia esmerada, mas num colégio brasileiro, entenda-se, de passagem, já que minha mãe não admitiria minha saída do Brasil. Então foi assim mesmo, um colégio de freiras italianas do mais alto gabarito, na época. Agora não sei como está, mas sei que saí de lá, pronta para ser uma princesa, aos dezoito anos de idade. Uma princesa dessas de contos de fadas: esmeradíssima na etiqueta, bordadeira, pianista, esportista, prendadíssima. Com todos esses superlativos. Dona de casa, com curso de preparação para o casamento, neste caso, PhD completa.

Não saiu como o planejado, mas bem que tentaram... e tentaram assiduamente, honra seja feita. Aqui cabe um sorriso. De graça, de condescendência e de espírito indomável, mas cabe. Um sorriso também benevolente, pela crença que elas tinham de que poderia ser feito. E até foi, sob muitos aspectos. Prendas da vida.

Falar sobre aquele internato dá panos para mangas... e muitas mangas... talvez vestidos inteiros... mil memórias rendem a possibilidade de muitos contos que, com certeza, nascerão. Lembranças de internato, de dez anos em que aquela casa foi, literalmente, a minha casa.

Escolho apresentá-lo, desta vez, em uma de suas facetas mais interessantes – a criação de artimanhas e suspenses. Aqui, é preciso uma pausa para incluir você no clima do que é, ou melhor, do que era um internato, sob os aspectos indispensáveis para entender a trama dessa aventura.

Na época a que quero me referir, década de sessenta, eu pertencia à classe das maiores que era como se intitulava o grupo que pertencia ao atual nível da escola média, antes denominado clássico ou científico. Os grupos eram sempre divididos em classes, de acordo com o ano escolar, cada uma tendo uma mestre e uma assistente, todas freiras, naturalmente.

Conforme a gente ia crescendo, recebia os chamados “privilégios”. Pode imaginar, então, que as maiores tinham os mais altos privilégios do colégio. E há, também, privilégios que vão sendo adquiridos, de acordo com muito esforço e conquistas. Só isso daria uma novela a ser contada, cheia de detalhes, alguns rústicos, outros interessantes. O que vale dizer, aqui, é que as maiores tinham muitos privilégios, em relação às demais.

Esse “muitos” que, ao conhecer, você vai até achar graça, significavam tesouros para nós: mudar o estabelecido, numa sociedade fechadíssima, é muito difícil. Assim, o que parecerá uma brincadeira para você, corresponde a honrarias de deuses para quem vivia lá dentro. Por exemplo: as maiores podiam deitar-se às 21 horas enquanto o resto do colégio dormia entre 19.30 e 20.30, dependendo da idade. Não precisavam andar em fila - visualize um colégio enorme, que mais parece um mosteiro, com mais de cem alunas internas, todas se deslocando em filas por todos os cantos: da sala de estudos para a capela, da capela para o refeitório, do refeitório para o recreio... tudo em fila, o tempo todo, por ordem de tamanho, no mais absoluto silêncio. Pois então: as maiores podiam se deslocar sem fazer fila! Em grupo, em silêncio, mas sem fila! Você não pode imaginar o privilégio que isso significava. Engraçado? Só vivendo.

Ah... um dos melhores: as maiores não precisavam descer para a capela todos os dias, às 17.30 para rezarem o terço e as ladainhas. Isso era considerado um quitute dos deuses. Como a aula de trabalhos manuais tinha de caber em algum horário do dia e as maiores tinham muitas atividades a mais, a aula de bordados e tapeçarias era das 17 às 17.50 e podíamos rezar o terço e as ladainhas dentro da sala de aula, com nossos enxovais se estendendo pelos joelhos, olhos e mãos trabalhando no linho, enquanto nossos lábios moviam-se automaticamente no refrão das preces. Parece engraçado para você? É porque você nunca precisou ter a obrigação de ficar de joelhos na primeira dezena do terço e nem nas ladainhas. Podíamos fazer tudo isso bordando, sem deixar os joelhos empelotados, cheios de cabelos encravados, que é como ficam, com essa postura todos os dias. Bem, é só para dar uns exemplos clássicos. Para você, talvez até grotescos... para nós, vitais.

Mas há um detalhe importante e fundamental para a nossa história: as maiores tinham dormitórios especiais. Todas as turmas tinham dormitórios que mais pareciam enfermarias: dez a vinte camas, dependendo do número de internas por turma, já que éramos divididas por etapa escolar. As maiores dormiam em quartos de três camas, o que dava ares de algo muito especial. Não precisávamos ter a impressão de que dormíamos em bando. No meu quarto, especificamente, éramos apenas duas, pois a terceira cama era da mestre de classe. Ninguém queria dormir ali, claro, junto com a freira. Mas quem era antiga no colégio sabia que era o melhor quarto: a freira só chegava em torno das 22 horas para dormir (nós nos recolhíamos às 21 horas) e saía às 5 horas para a reza matinal. Em outros termos, quem ficasse no quarto da freira tinha apenas uma companheira de quarto, o que era mais que um privilégio, coisa de hotel cinco estrelas. Mas é claro que ninguém sabia disso e, no começo do ano, duas espertinhas, (durante dois anos seguidos, eu e Carmen Lucia) nos “sacrificávamos” e escolhíamos o quarto da irmã que era a mestre de classe.

É bom que você saiba o que era uma mestre de classe. Era a freira que se responsabilizava pela turma perante a superiora do colégio. Como as maiores davam menos trabalho, havia uma única mestre de classe para todo o ensino médio (clássico, científico e normalistas, no vocabulário da época), enquanto que todas as outras turmas, das médias e menores, tinham uma mestra de classe por turma. Vale um detalhe: usávamos o termo “freira”, apenas entre nós, pois era considerado desrespeitoso nos dirigirmos a elas com esse jargão. Deveriam ser chamadas pelo título de “irmãs”. O termo freira era usado em momentos descontraídos entre nós ou, também, não amistosos: a “freira” vem aí, como alerta, por exemplo, ou a “freira” me deu nota baixa. Colocando você a par desses detalhes, vamos aos fatos.

Imagine você uma adolescente, namorando, interna. Pode imaginar o que é namorar sendo interna? Um namoro de finais de semana, sem chance para telefonemas no decorrer dos dias, com aquela vida de reclusão em que se vive no internato. Isto é o que era. Mas não éramos o único casal vivendo aos pedaços. Eu e mais umas tantas colegas, inclusive minha colega de quarto. Na ocasião, tínhamos como diretora uma freira italiana, dessas avançadinhas para a época.

Podemos considerar avançadinha uma superiora que, nos finais da década de 60, dá ordem às freiras para que não mais nos acordem aos gritos da Ave Maria, como era o costume, até então, mas com música clássica de fundo, que vai aumentando o volume aos poucos, até que uma freira entre no quarto, dê bom dia em tom compatível com um ouvido que acaba de despertar e, só então, entoe as preces. É só um exemplo, entre outros que poderão ser contados em outras oportunidades. Para nós, ela era um avanço. Parecia que o quartel tinha tomado outro rumo. Para os anais de hoje, continuaria sendo uma clausura, mas, pelo que eu já tinha passado em anos anteriores, era o paraíso.

No início de junho, as maiores procuraram a diretora para pedirem uma saída especial na tarde do dia dos namorados, desde que a família estivesse de acordo. Concedido! Inédito! Esta freira era mesmo um avanço. Se tinham de se casar, que formassem um santo lar, sob a proteção e conselhos perenes dessa ilustre guardiã no futuro. Muito esperta aquela italiana...

Bem, no dia 10 de junho a diretora viajou para São Paulo e se esqueceu de avisar isso à sub-diretora. Se esqueceu ou a sub-diretora disse que esqueceu. Ocorre que ela acabou dizendo que, se nós saíssemos, as meninas do último ano do fundamental (as médias) teriam o mesmo direito e ela suspendeu a saída de todo mundo. Aí tinha coisa... e, é claro, logo descobrimos. As meninas do último ano do fundamental (quarta série ginasial da época) descobriram e queriam o mesmo privilégio. Ora bolas, por que não tiveram a mesma idéia e não pediram isso à diretora antes de sua viagem? Não era problema nosso e queríamos a palavra mantida.

E era mais do que uma palavra a ser mantida para nós e explico por quê: ocorre que sempre houve uma disputa entre as maiores e o último ano do ensino fundamental. Eu tinha passado por isso e também tinha participado da indignação adolescente do “por que elas podem e nós não”. Afinal, eu tinha a experiência de ter percorrido todos os anos do colégio, com todas as características dos dez anos de reclusão e sabia muito bem o que estava acontecendo. E essa disputa era, na verdade, alimentada, e muito, pelas mestras de classe correspondentes, cujos nomes não publico por simples delicadeza: estas duas mestras de classe estavam longe de um convívio amoroso. Quanto mais desentendimentos houvesse entre as adolescentes dos dois grupos, mais cada uma tomava as dores de suas “filhas”. As duas alimentavam esse mútuo rancor através de suas alunas e nós, que bem intuíamos isso, nos protegeríamos por trás dessa disputa constante para resolvermos a questão, se fosse preciso. E foi o que aconteceu: nossa mestra tomou as nossas dores.

Encaramos o desafio como uma questão de honra. Na tarde do dia seguinte, tínhamos um encontro marcado com nossos namorados e eles sabiam disso. Os pais também. Mas não houve jeito. A diretora só voltaria na manhã do dia 12 e seria preciso esperar. Ninguém dormiu direito, é claro, tanto nós quanto as meninas do ano anterior, que exigiam os mesmos direitos que nós, as maiores, havíamos conquistado! E, com certeza, as mestras tampouco pegaram no sono.

A diretora voltou, na manhã do dia seguinte, e encontrou o circo armado. Muito complicado, pois a mestra das meninas da quarta série, além de mestre das adolescentes da última série (do atual ensino fundamental), era também coordenadora geral do colégio. Com certeza colocou todos os seus galardões na arena. Enfim, ninguém saiu. Briga de cachorro grande. A diretora, para consertar a história que tinha virado uma briga política interna entre as “irmãs” da comunidade e, sem saber o que fazer com a palavra empenhada a nós, alunas maiores, nossos namorados e pais, se saiu com uma de mestre: convidou todos os nossos namorados para irem ao colégio, armou um lanche regado a vinho e nos brindou com uma sala toda enfeitada com corações, flores, etc. Levou apenas algumas horas para organizar toda a festa, só para as maiores, naturalmente, pois as turmas não se misturam.

Cabe observar que, sob este aspecto, se eu não tivesse meus próprios princípios naturais internos, teria incorporado a filosofia da divisão por castas. Vivi dentro dela, moldada pela divisão de “classes” imposta pela organização do colégio, mas, felizmente, não as incorporei, em minhas escolhas futuras, na vida real. Sim, vida real, pois aquela não poderia ser considerada nesse nível. O internato é um mundo à parte e só quando saímos dele é que nos deparamos com as cores vivas do bulício da existência humana.

Mas voltemos à história: as outras alunas ficaram chupando o dedo, pois nem que quisessem daria tempo para avisarem namorados, pedirem licença para as famílias e toda a demais burocracia com que também aprendi a conviver desde cedo. Uma lição à parte, um estágio para os futuros enfrentamentos com as burocracias do poder público. Algo mais ou menos no mesmo estilo. Enfim, passamos uma tarde festiva e agradável, só com nossos namorados, sem os olhos espionantes das freiras, em explícito procedimento de confiança em “suas meninas” e, por isso mesmo, não nos arriscamos a nenhum beijinho. Embora soubéssemos o quanto éramos postas à prova no que se refere a princípios de confiança e lealdade, lá no fundo, como desconfiadas adolescentes, não sabíamos se a porta poderia ser aberta a qualquer momento. Assim, mesmo o que considerávamos natural poderia virar um escândalo disciplinar... melhor não arriscar.

Vimos nossos amores, mas, é claro, não foi como planejávamos. Saimos vitoriosas naquela tarde, mas não foi uma vitória completa. Ademais, as nossas colegas, por pura inveja, segundo nossa maneira de ver, tinham estragado nosso privilégio, o que merecia uma revanche.

Mas estou me alongando demais. Conto a revanche na próxima semana e, com ela, o segredo.

sábado, 24 de julho de 2010

BRINDES À CIDADE AMADA

SOB QUALQUER ÂNGULO,


MESMO OS MENOS CONHECIDOS,


O RIO É UMA CIDADE


ONDE O TRABALHO MORA NOS JARDINS,


NO CALOR DA PRAIA,


SOB O AZUL DO CÉU,


OU NAS UNIVERSIDADES,


NOS PRÉDIOS DE ESCRITÓRIOS,


ENFEITADOS PELO ANOITECER,


ESPERANDO A DESCONTRAÇÃO DO FINAL DO DIA.


UMA CIDADE DE DOMINGOS INFESTADOS DE TURISTAS


ONDE QUALQUER BRINCAR


É PERMITIDO,


NA PRAIA,


NO CALÇADÃO,



NA MONTANHA,


POR DENTRO DA FLORESTA,


NO AR,


NOS BARES OU BALADAS NOTURNAS.


UMA CIDADE CHEIA DE SURPRESAS


ONDE A ARTE PODE SER MOLDADA POR UM ARTESÃO


OU PELO VENTO SUAVE NA AREIA.


UMA CIDADE DE RECANTOS COLONIAIS,


QUE AGASALHOU, DESDE ENTÃO, TRABALHADORES DE DIVERSAS ETNIAS,


NAS MAIS DIVERSAS PROFISSÕES.


ONDE ATÉ A SOLIDÃO É BRINDADA


PELO OLHAR DO POETA.


UMA CIDADE DESPIDA DE CUIDADOS,


NOS EXCESSOS DE SUAS BELEZAS NATURAIS.







ESTES SÃO ALGUNS BRINDES DE UM CORAÇÃO CARIOCA. TIM-TIM!!!

FOTOS TIRADAS EM PASSEIOS OU COTIDIANOS DE ENCANTAMENTO: Pão de Açucar(1,2), Aterro do Flamengo(3,4), Copacabana(5,6), UERJ(7), Copacabana(8), Ipanema(9), Copacabana(10 a 15), Pedra da Gávea(16), Floresta da Tijuca(17), Pedra Bonita(18), Confeitaria Colombo,Posto 6(19), Copacabana(20 a 22), Outeiro da Gloria(23), Trabalhadores em horário de almoço(24), Colonia dos pescadores, posto 6(25), Recanto no Aterro do Flamengo(26), Copacabana(27,28), Pão de Açucar e Urca(29), Cristo(30), Floresta da Tijuca(31,32), Copacabana vista do Forte do Leme(33), Urca(34).

sábado, 17 de julho de 2010

MEU CORAÇÃO CARIOCA


Sou uma carioca nascida em São Paulo. Amo São Paulo. Por ser portentosa, magnífica, imponente e, principalmente, por ser o ninho de amigos de vida. Não vivi em Sampa, não voltei em nenhum momento da vida, a não ser para visitar ou, eventualmente, trabalhar, através de congressos e cursos. Assim, embora haja motivos que me impulsionem com alegria para lá, no fundo, apenas tenho a referência de minha certidão de nascimento e a minha mais pura admiração.

O fato é que a vida me fez carioca: ando como carioca, falo como carioca, transito como carioca, me visto como carioca, trabalho como carioca - e carioca trabalha muito, é folclore pensar o contrário.

O Rio é uma cidade pronta para as mais diversas análises. Mas é difícil falar dela, sem cair no lugar comum. Por isso, talvez, tenha adiado tanto falar sobre a cidade do meu coração.

Acho que ser carioca é ser, antes de tudo, um forte. É ir ao trabalho, todos os dias, tendo à volta tanta beleza e atrativos que até dá dó. Creio que é mais difícil ser um bom trabalhador aqui do que na maioria das cidades do mundo com todas essas tentações de cidade linda e cheia de graça. Mas trabalhamos. E muito. Isso nos dá o direito de sairmos do trabalho correndo para um chopinho ou uma água de coco à beira-mar.

Moro num canto de Copa, a três quadras da praia. Isso é um privilégio: aproveito o silêncio a uma quadra do bulício e convivo com beija-flores vindos da montanha ao lado, para curiosarem em minha janela. Agora mesmo passou um por aqui.

Caminhar para a praia é curtir um pedaço especial dessa cidade amada. O flanelinha da rua é conhecido por todos. Não tem casa, mora por aqui mesmo. Seria na rua, não fosse um dos moradores ceder seu carro para que ele tenha onde dormir e guardar suas poucas roupas no porta-malas. Toma banho todos os dias e se barbeia no banheiro dos empregados do prédio ao lado. Conhece a todos nós por apelidos, tratando-nos com toda a atenção. Quando passo pela rua, logo reconheço sua voz:

- Bom dia, minha princesa...

Tem um apelido diferente para cada um, todos gentis e portentosos. Talvez um sorriso diferente também. Sua gentileza nos acolhe e parece estar bem com a nossa acolhida. Um dia, perguntei-lhe o que achava da vida e ele me respondeu:

- Na verdade, sabe, acho que tenho tudo de que preciso.

Estar no Rio é expor-se ao inusitado.

Quando passo pela farmácia, vez por outra, escuto:

- Bom dia, professora!

O mesmo acontece com a padaria. Até hoje não sei como eles descobriram que eu era professora. Uma cidade grande, muitas vezes, com pinta de cidade pequena. Coisas de bairro, embora Copacabana seja cosmopolita e com ares de estrangeirismos...

As praças por aqui são geralmente sujas, algumas delas não cheiram bem. Muitos falam da falta de higiene dos chamados mendigos, mas poucos lembram que não há banheiros públicos gratuitos, nem chuveiros, nem rios ou lagos onde possam banhar-se. Temos muitos moradores de rua, principalmente na zona sul. É onde eles conseguem sustento, vendendo frutas, balas e trecos ou fazendo malabarismos circenses nos sinais de trânsito. Alguns roubam, mas muitos não farão isso, se você for delicado ou delicada com eles. Tente. Ofereça um lanche. Você sempre terá algum no bolso para ajudá-los a se sentirem gente. Não estou falando de dinheiro, estou falando de convidá-los a tomarem um suco, mesmo que você esteja com alguma pressa. Se você encontrasse um amigo na rua, não pararia por alguns momentos? Pense nisso, pare um pouco, leve seu suposto ladrão para um minuto de convívio. Converse com ele. Provavelmente, se surpreenderá. Faço isso, sempre que posso, enquanto não vejo a ordem pública fazer algo que realmente os ajude e lhes dê o apoio que necessitam para terem uma vida e uma educação decentes. E você nem imagina que lições de vida poderá ter com isso...

O Rio é uma cidade perigosa como outra qualquer, mas a propaganda a faz parecer tremendamente pior. Já cansei de caminhar pelo calçadão de Copacabana, às onze horas da noite, voltando a pé para casa. Chego de carro de madrugada sem as preocupações do que dizem por aí. Não sou invisível, mas nunca me aconteceu nadica de nada. Não me meto em cantos desconhecidos. Os malucos é que fazem isso, pedindo para saírem nos jornais do dia seguinte. Talvez não saibam ser cariocas. Não sei. Acho que isso acontece em qualquer cidade grande. Se você não é carioca não pode ignorar a cultura do lugar ou agir como se estivesse morando em sua própria cidade. Cada uma tem seus costumes e é preciso estar atento a isso. Desmerecer esses cuidados é mancada, na certa, em qualquer lugar do mundo.

Estar no Rio é estar na praia e de repente querer estar no mato. A distância é mínima e você pode fazer isso num passe de mágica. Se desejar, conseguirá trocar os 38 graus da praia pelo fresquinho do Alto da Boa Vista, sem sair de dentro da própria cidade. Em meia hora, talvez, você estará caminhando pelas trilhas da Floresta da Tijuca. Puro luxo.

Ser carioca é chegar à praia ou a muitos dos lugares comuns com a roupa que quiser. Tanto faz ser com a bolsinha da moda a tiracolo e salto alto, quanto com uma bermuda esfarrapada. Ninguém nota, ninguém sequer presta atenção. A regra é cada um fazer como se sente melhor.

Morar no Rio é andar pela zona sul ouvindo mil línguas distintas, muitas não identificáveis, nessa cidade de milhares de turistas de todas as cores e tons. É ir ao subúrbio e encontrar uma cidade que você nunca viu, reconhecer a pobreza, mas também o aconchego de gente humilde e cheia de luz.

Ser carioca é conhecer os caminhos da camaradagem, o sorriso fácil, combinando com manhãs e tardes ensolaradas. É conversar com quem você não conhece, como se convivessem há séculos, no mínimo tempo contido entre o primeiro e o nono andar de um prédio qualquer.

Blusas sem mangas, bermudas, paletós não vestidos pendurados nos ombros, ar condicionado a mil nos bancos e nos taxis. Contraponto.

Ser carioca é não precisar pedir cidadania. É ser muita coisa e, ao mesmo tempo, quase nada. É deixar que o Rio possua você, sem precisar fazer força para isso. É ir ficando e deixar que o milagre se faça por si mesmo.

Foi assim que aconteceu comigo e, quando me dei conta, meu coração já falava com sotaque puxado a ‘ch’.

sábado, 10 de julho de 2010

O MALA


Havia uma urgência em dar espaço ao coração. Nada acontecia. Parece que há fases na vida da gente em que os amores simplesmente desaparecem. Pois então... era isso. Um dos que me apareceu, no entanto, se tornou um desafio à descrição. Caiu de um site de relacionamento que eu, como curiosa, havia entrado para ver como funcionava, dada a insistência quase irritante de amigos mais chegados:

- Você se nega a experiências.

Ok, então, vamos lá. Foi fácil, foi rápido, foi interessante e, depois de algum tempo, me arrisquei a conhecê-lo, de fato. Cinco dias, não ininterruptos, naturalmente, pois eu não teria agüentado tanto. Mas foram dias de convívio que trouxeram pérolas de experiência.

Nos encontramos pela primeira vez, na saída do metrô. O cavalheiro (ou cavaleiro?), de saída, fez a gentileza de me fazer esperar por 50 minutos, embora eu o tivesse tranqüilizado a respeito da minha pontualidade britânica (homens não gostam de esperar, mas se esquecem que mulheres também não). Após suar em bicas em dia de intenso calor carioca, sentada na praça em frente, pois não havia outro lugar onde ficar, me apareceu a prenda. Estávamos em torno de pouco menos de 11 horas da manhã, com encontro marcado para as 10. Após dizer-se encantado com a minha aparência (que bom!), começou o meu suplício. O homem não parava de falar. Mesmo! Um assunto depois do outro, como se tivesse "engolido uma agulha de vitrola", como se dizia antigamente. Esta foi a primeira impressão que tive, numa caminhada sugerida até a Avenida Atlântica. Poderia ser nervosismo. Dei o desconto. Sentamos num desses bancos do calçadão e o homem emendando um assunto no outro, muitas vezes pegando o último fio para pular para outra coisa completamente diferente, mas provavelmente semelhante dentro da lógica de seus pensamentos. Definitivamente, monologava muito bem. Isso durou até quase às 13 horas e, é preciso ratificar: ininterruptas. Eu não precisava responder, aliás, nem tinha chance: ele fazia o contraponto de suas perguntas e suas próprias respostas, como se fossem as respostas que eu estava dando e pronto, emendava os seus mecanismos cerebrais em seu monólogo interior. De exterior só tinha mesmo a compulsão. Coisa de descrição literária, se é que posso dizer assim. Eu tinha resolvido dar trela, para ver onde ia chegar. Não chegava. Sequer sentia sede, eu pensava, depois de falar tanto e com aquele calor. Não tinha fome? Tampouco... a fome era ter um ouvido que servisse de depósito, foi o que eu podia concluir.

Em torno das 13 (estávamos em frente a um desses relógios de rua) eu resolvi dizer a mim mesma que eu iria falar. Não que sentisse tanta necessidade, mas porque eu precisava urgentemente descansar os meus ouvidos! Dor de cabeça, minha completa desconhecida na vida cotidiana começava a despontar, acredita? Esperei a deixa e, entre uma frase sobre cultura românica (o cara era culto, reconheçamos) e uma tomada de ar, eu disse que tinha começado a minha vida como professora de cultura clássica. "É mesmo?" respondeu, e continuou falando como se não tivesse escutado. Interrompi, pela segunda vez, dizendo que gostaria de contar como tinha começado minha carreira. Ele pediu para terminar o que estava falando para não ser interrompido. Quando ia emendar um assunto no outro, completamente diferente, eu o interrompi e disse que, antes que mudasse de assunto eu queria contar como tinha começado a minha vida acadêmica e emendei, forçando a entrada:

- Assim que eu me formei...

Nesse momento, uma motocicleta rugiu no sinal de trânsito, a nossa frente. Ele apontou a moto e, me interrompendo (ele nem deve ter notado que eu tinha começado a falar...) discursou sobre marcas e encontros de motoqueiros. Quando ia emendar em outro assunto, eu o interrompi, forçando novamente a entrada, não sem esforço, e disse que iria acabar a minha história e acrescentei, num sorriso temperado:

- Ou melhor, começar, né? E voltei a dizer:

- Quando me formei...

Ele estendeu o olhar para longe e achou uma bandeira de um partido político passando dentro de um carro (estávamos em época de eleições) e falou:

- Olha lá a bandeira do (nome do partido).

Eu sussurrei, perplexa pelo absurdo da coisa, mais para mim do que para ele:

- Não acredito...

Ele, imediatamente, respondeu, interpretando que era um comentário sobre a bandeira:

- Acredite, é verdade!

E passou a falar sobre o tal partido político e suas incursões partidárias na juventude.

Definitivamente, o cara tinha algo esquisito, só podia ser. Eu estava embasbacada. Como um cara daqueles podia escrever mails tão legais e parecer alguém que valesse a pena encontrar? Ali mesmo, decidi que seria o último encontro, pois não conseguiria fôlego para duplicar a dose. Ele, em contrapartida, estava encantado. Pudera: tinha encontrado um ouvido quieto. Sequer se dava conta que era um ouvido perplexo! Eu me conservava a perfeição da educação, mas por dentro tinha impulsos compulsivos de simplesmente me levantar e sair, fugir sem dar satisfações. Fiquei. Ele tinha um compromisso às 14 horas e, para quem tinha agüentado desde as 11horas, faltava pouco.

O encontro acabou e ele insistiu por me encontrar, de novo, naquele mesmo dia, depois do compromisso. O “não” nasceu feliz na minha boca. Mas não saiu. Eu não costumo decidir nada de impulso e, afinal, poderia ser o nervoso da primeira vez. Vamos dar mais uma chance.

Vim para casa pensando em como solucionar o problema, caso achasse que poderia ser um defeito contornável. Sou tolerante, para essas coisas, não acredito em arquétipos de perfeição. "Vamos dar uma nova olhada nessa coisa que se apresenta a minha vida. Nada é por acaso", insisti eu. Ele não conhecia bem a zona sul, pelo que pude supor e coube a mim escolher onde seria. Elegi um barzinho simpático e tranqüilo da Urca, com aquela vista maravilhosa de um bairro que poucos cariocas sabem saborear. Na pior das hipóteses, valeria pela vista e pelo sossego local.

Assim que nos encontramos, a matraca ligou. Caramba! Felizmente, no início do papo, não sei por que ele disse que as pessoas o achavam arrogante, mas ele não era. Foi aí que, como um raio, eu consegui interromper e disse:

- Eu sei por quê!

Frase curta, de impacto. Até porque eu sabia que não daria tempo para falar uma frase mais longa. Ele parou. Pela primeira vez, parou! Ufa! Tive vontade de permanecer um pouco em silêncio, oportunidade para ouvir as ondas deliciosas batendo mansas nas pedras da murada. Mas não... não poderia perder a chance, tive de dizer de um só fôlego:

- Você não dá chance de diálogo, você não pára de falar.

Foi uma bomba, mas necessária. Acho que ficou lívido. Não, não acho, tenho certeza. Eu me achei grosseira, mas ao mesmo tempo aliviada. Minha cabeça latejava. Se ouvidos ficassem inflamados por uso, os meus precisariam de uma emergência hospitalar!!! Mas ele parou, ou melhor, melhorou. Consegui falar sobre amenidades, não toquei no desastroso evento da manhã. Se ele se tocasse, talvez alguma coisa se salvasse e eu pudesse achar, desenterrar, descortinar as qualidades ocultas que tinha encontrado nas correspondências, através dos mails.

Marcamos novo encontro, dois dias depois. Eu fui disposta a nova tentativa. O cara falava muito mesmo e melhor seria, pelo menos, que fossem coisas interessantes. Eram cultas, sem dúvida, mas daí a serem interessantes, havia um passo a ser dado. Mas fui tocando, o encontro foi mais curto. Deu para levar.

No terceiro encontro, descobri que, de brinde, ele queria consertar a minha vida: eu tinha de entrar para um curso de inglês. Imagine você, a essa altura da minha vida, um curso de inglês. Mas como ele dominava a língua, acho que deveria ser um valor de honra para ele, quem sabe. Gentilmente, disse que eu não tinha mais interesse em aprender mais uma língua. Mas ele fazia questão de frisar que eu não poderia viver no mundo atual, sem um curso de inglês. Parecia propaganda de mídia. Esclareci que tinha um inglês suficiente para leitura e, se precisasse sobreviver em um país anglofone, não morreria de fome. Mas não era suficiente às vistas dele. Eu tinha de fazer um curso decente de inglês. Ele nem sabia quanto de inglês eu dominava e, na verdade, nem me perguntou ou procurou saber! Só naquele dia, ele voltou à carga, várias vezes. Lembro-me que, na quarta vez, eu apenas disse que era a quarta vez que ele me dizia aquilo naquele dia e que, definitivamente, eu não tinha interesse e não precisava de um curso de inglês nesta etapa da vida. Ele insistia em dizer que o inglês faz parte integrante do sucesso de uma pessoa. Por uma questão de educação, não quis esfregar meu currículo vitae de vinte e seis páginas, com títulos de doutorado e pós-doutorado, inumeráveis publicações (também em língua estrangeira), vários congressos no exterior, livros de sucesso publicados, carreira acadêmica impecável e bem sucedida e uma aposentadoria decente. Não quis mostrar que morava em casa própria, consultório idem, tinha carro e podia me dar ao luxo de escolher os cursos que me dessem na veneta, inclusive de inglês, se quisesse perder meu precioso tempo com algo que para nada mais me serviria. Não fiz. O que dizer a alguém que nem casa própria ou emprego permanente conseguira na vida? Não quis feri-lo com meu estrondoso sucesso profissional e pessoal. Não tinha interesse nisso. Tenho desses cuidados. Ele que se mancasse. Mas volta e meia a tecla estava lá: eu precisava fazer um curso de inglês. Passei a nem responder mais. Eu tinha definitivamente, embarcado numa canoa furada... me deu ânsias de dar uma boneca de borracha bonitinha, do tamanho de gente, para ele conversar e, simplesmente, cair fora. Acho que ele nem notaria...

Por um descuido impensado, convidei-o a me visitar. Desnecessário dizer que configurou meu computador à maneira dele, sem me pedir permissão, sem sequer me consultar. Com certeza, ele estava convencido de que sabia sobre tudo o que seria essencial e melhor para minha vida. Quando me aproximei para dizer que o delicioso jantar que eu havia preparado estava pronto, lá estava o meu computador configurado do jeito que ele gostava, com uma barra de ferramentas suplementar no rodapé atravessando o meu caminho e outras coisas mais. Uma droga. Sem contar com o fato de que sua “deliciosa” mão escorregava com muita intimidade sobre a minha tela de cristal líquido, a tela que gosto de ver sem impressões digitais e riscos de dedos engordurados. Disse, o mais gentil que pude, que não encostasse o dedo na tela. Ele, muito “entendido”, me explicou que não tinha problema algum, que não fazia mal à tela e que isso era “frescura”.

- Sim, obtemperei, uma frescura que gostaria que fosse respeitada.

Ele aproveitou a deixa para me dar uma lição de coisas sobre computador, e continuou colocando o dedo lá mesmo, desta vez, propositadamente, mostrando para mim que, afinal, “não tinha problema algum” e, que se eu tinha essa frescura, que não me preocupasse, ele limparia depois. Você limpou? Ele tampouco. Uma frescura, por certo, pensei, mas no meu computador, ora bolas. Não teria eu direito de ter frescuras com as minhas coisas? Não, não teria.

Sem contar com a porcaria que ele acha ser colocar pratos dentro da pia, antes de lavar a louça. Para quem conhece o cuidado que tenho com as minhas coisas, parece até piada. “Aprendi” com ele que a louça toda deve ficar espalhada em cima da pia e não dentro. Sei das bactérias que se acumulam se a louça fica dormindo ali, mas ele se referia à louça do dia que saía da mesa para o banho. O cara não era apenas chato. Era, definitivamente, doido! E eu precisava me livrar dele o mais urgente possível. Não tinha simancol na própria higiene, mas era rigorosíssimo com o que via: ele não achava nada demais sentar-se diretamente nos meus limpíssimos lençóis com seu jeans acabado de chegar da rua, exposto a assentos de ônibus, metrô e sei mais lá que lugares sujos e poeirentos. Ele sequer notava que fazia isso e eu, tampouco, chamei sua atenção. Desnecessário gastar minha energia com isso. Ele não voltaria a minha casa e tudo iria diretamente para a máquina de lavar. Definitivamente, seus conceitos próprios de higiene e bem-estar só se aplicavam às outras pessoas.

O problema virou, portanto, como me descartar da peça, de modo gentil e discreto, como faz o meu feitio. Consegui. Jamais pessoalmente, já que ele não dava muita chance de diálogo e seria difícil entrar em seus monólogos. Consegui por mail, no meio de muita poesia, do tipo eu não sou a mulher dos seus sonhos. Com certeza, não disse que ele era o homem dos meus pesadelos.

Investi em mais alguns parceiros, sem relevante sucesso, antes de tirar o link do site de relacionamentos da minha lista de favoritos, no browser de meu computador.

Fosse o que fosse, posso dizer que não fugi à experiência. Fez parte da vida. E esperei a fase de carestia fazer seu trânsito completo, dedicando-me a outras artes de viver.

sábado, 3 de julho de 2010

TRÂNSITO CARIOCA


Não conheço um trânsito igual ou parecido com o do Rio. Pode haver pior, melhor, mais engraçado, mais certinho, mais bagunçado, mas o do Rio, para mim, é único.

Prefiro definir a diferença entre o nosso trânsito e os demais que conheço dizendo que, nos outros lugares, sinto que as pessoas se vestem e saem de carro. No Rio, as pessoas vestem o carro e saem. E com esta “pele” de metal, nos sentimos tão em casa como no próprio corpo. Um corpo carioca, cheio de gingas, meneios e mandingas, um doce balanço a caminho do mar de avenidas, ruas, trilhas e estradas que compõem nossa cidade e seus arredores.

Ser motorista carioca, como o próprio povo, é um estado de espírito, não apenas ter uma carteira de motorista aprovada. O exame clínico completo, incluindo a minuciosidade do exame de vista está longe da aprovação concedida pelos golpes de vista, visão consentida pela cidadania carioca. Isso nos liberta, ao mesmo tempo que confunde os menos avisados, denominando-nos, às vezes, de irresponsáveis e inconseqüentes. Digo isso por ter vários amigos de outros Estados me visitando de vez em quando e sendo brindados com passeios para lá e para cá, no meio do bulício citadino.

Andei pensando nisso, vez por outra, pois faço parte da possível tropa de inconsequentes e irresponsáveis, com licença oficial tirada e sempre renovada com o carimbo dos Órgãos Oficiais do Estado. Mas deduzo com segurança que, se fôssemos realmente inconseqüentes e irresponsáveis, nossas ruas estariam atoladas de batidas, trombadas, desastres, atropelamentos. Ando muito de carro e, confesso, é muito raro eu ver acidentes por onde ando. O que vejo é uma dança coordenada de meneios e mesuras, onde se misturam delicadezas e xingamentos, como uma troca de sentimentos que se somam e se completam em nosso transitar cotidiano.

Decididamente, a maioria de nós é do time que veste o carro e sai. E assim como pedestres dão passagem a alguém com quem quase trombam na rua, damos também passagem ao carro do lado que atravessa a nossa frente para pegar a rua do outro lado, como ocorre com os pedestres, em passadas consentidas, no meio da calçada.
Saber entender a linguagem dos motoristas é de vital importância para o bom desempenho desse bailado não ensaiado, mas rigorosamente previsível. Se um taxi (principalmente os taxis) piscam um pouco ao lado e atrás de você pode significar duas coisas: pedir passagem ou dar passagem. Pode contar que, se você está ligeiramente à frente, há espaço e ele está um pouco ao lado, dá uma freadinha quase imperceptível e pisca, o motorista provavelmente estará dizendo:

- Vai, vai.

Se você não for, não faz parte integrante do corpo de motoristas atentos e cotidianos, perdendo a oportunidade de usufruir das delicadezas do ritual. Mas se ele estiver só um pouquinho de nada atrás, mas quase emparelhado com você, não dá a tal quase imperceptível paradinha e pisca, dê passagem, pois ele está realmente com pressa, mesmo que seja psicológica, e será a sua vez de bancar o cavalheiro (dama), correndo o risco, se fizer o contrário, de levar uma fechada mais adiante, acompanhada de um bom xingamento pela falta de delicadeza.

Se um ônibus funga às suas costas, não tenha dúvidas: o motorista, que não pode usufruir do beneplácito da buzina, se sentiu ultrajado por alguma barbeiragem, diga-se, fechada não consentida que você lhe deu lá atrás. É melhor não ficar brigando, pois, já que foi você que errou, é de bom tom resgatar-se da falha deixando que ele passe a sua frente, e, é lógico, se você não é de briga, dê-lhe o direito de devolver a fechada. Se você não tem alma para fazer isso, então, é melhor dar uma boa arrancada e se mandar para bem longe, pois ele vai te perseguir, vai sim. Não se pode ser indelicado com um monstro desses, ora vejam só. E, se você é um carioca de bom coração, pense um pouquinho: esses caras ralam prá caramba, tendo de fazer um monte de idas e vindas por dia, surfando nesse transito entupido o dia inteiro para conseguirem o seu pão. Ganham uma miséria. Sejamos mais condencendentes com eles. Se for verão, então, a maioria deles passa o dia inteiro pingando de suor, para cima, para baixo, num mito de Sísifo sem fim. Há de se levar isso em consideração.

Por falar em ônibus é rigorosamente proibido levar a sério suas setas de sinalização. Sinalização de ônibus não pode ser levada em conta em nossa cidade! Se o pisca-pisca está para a direita, não significa que ele vá manter-se encostado na pista não. Ele pode virar à esquerda a qualquer momento, desde que haja um tráfego esquisito à frente. O pisca-pisca à esquerda, na grande maioria das vezes, também não faz sentido ou ele apenas quer manter os mais medrosos que o seguem nos seus lugares, alimentando, assim, a possibilidade de uma driblada para a esquerda a qualquer momento. É fácil você perceber, no entanto, se esse pisca-pisca está valendo ou não. Embique o carro como quem vai avançar. Se ele mantiver a linha reta, o pisca-pisca está ali só para enfeite. Siga em frente e ultrapasse, mas sempre alerta, claro. Deduz-se que pisca-pisca de ônibus é mesmo uma enganação. Não o considere. Siga mais sua acuidade, sua carioquice e mantenha um pouquinho mais de atenção, ao estar ao lado deles. Um amigo me alertou que pisca-pisca de ônibus serve mais para eles usarem em caso de acidente. Já viu algum ônibus batido sem o pisca-pisca ligado, justamente, na direção da batida, como a dizer que ele tinha avisado e você é que avançou perigosamente? Qualquer perito sabe disso, mas, é claro, malandragem é malandragem. Enfim, com o devido cuidado e sabendo das manobras, esses monstros não são tão perigosos quanto parecem. Pelo contrário, escondem gentilezas inusitadas. Sair de minha rua e pegar a Av. Princesa Isabel é deparar-me com eles, diretamente, na curva da Filipe de Oliveira. Quando o trânsito está para lá de ruim, quase sempre, são eles que dão uma freadinha amiga, numa hora de aperto, permitindo que eu faça uma manobra mais avançadinha. Não são os carros, não são as vans, não são os caminhões. São mesmo os ônibus os donos dessa gentileza. Ah, se isso acontece com você e se você é carioca, com certeza, já sabe: é de mau tom, terrível mau tom não dar uma acenada em agradecimento, mesmo que você esteja com o vidro fechado por causa do ar condicionado. Abri-lo e colocar a mão como polegar para cima é alta etiqueta que não deve ser esquecida jamais por um carioca da gema ou mesmo de coração, como eu.

Ah, motoristas homens e mulheres são assexuados no que se refere a educação e etiquetas. Antigamente, os homens deixavam que nós, mulheres, passássemos à frente, saíssemos das garagens, nos davam prioridade nos estacionamentos. Isso acabou. Todos somos iguais perante nossos automotivos. Mas isso é bom. Só acho que, em compensação, deveríamos ser mais respeitadas, já que somos “iguais”. As mulheres, no entanto, continuam sendo discriminadas no quesito saber dirigir bem. E dirigem! Ainda fico um pouco constrangida quando vou estacionar em vaga pequena e ouço aquele gracejo chato: “não vai dar não”. Ou, então, simplesmente param e ficam contemplando a manobra. Cheguei à conclusão de que o melhor é ignorar, fingir que não ouvi ou vi e fazer a manobra como se nada estivesse acontecendo à volta. Afinal, vaga não se encontra sobrando por aí. Aconselho às cariocas fazerem o mesmo. Não desprezem sua auto-estima. Para mim, no entanto, quando entro numa dessas, estaciono e ouço outro gracejo: “é, mandou bem”, longe de ser um elogio, me chateia um pouco. Com certeza, esses “fofos” não falariam nada se fosse um macho que estivesse na direção... mas nada é perfeito e os cariocas não poderiam fugir á regra, é claro. O melhor é tentar aceitar com bom humor, se puder, e seguir em frente, com cara de parede, como se nada tivesse acontecido. Mas isso acho que não é quesito carioca... esse item já vi em quase todos os Estados que visitei.

Não é muito comum deixar que quem está saindo da garagem tenha a vez. Parar para alguém entrar na rua não é comum e não é considerado como indelicadeza nem por quem está na rua, nem por quem está querendo entrar no trânsito. Muitas vezes, estamos mesmo com pressa, outras, nem percebemos. Isto porque, como o nosso trânsito exige muita concentração para não perder o passo da contradança, quem está na calçada não faz parte do perímetro de nossas atenções. Aliás, é bom que os pedestres saibam disso. Vez por outra, no entanto, essa gentileza ocorre e é rigorosamente de praxe um agradecimento especial por parte do motorista (ou do pedestre) que está ganhando as ruas. Como num passe de samba, ter essa licença equivale a dar a volta na bandeira da Escola e não se faz isso sem a mesura própria de um mestre-sala. Se você é carioca, sorria, meneie com a mão e, principalmente, ganhe a rua com rapidez para não atrasar mais quem lhe fez essa delicadeza.

Colocar a mão para fora do carro, juntar e afastar as pontas dos dedos várias vezes e rapidamente, é um aviso ao carro de trás de que ele manteve os faróis acesos, depois que saiu de um túnel. Essa tem sido uma delicadeza um pouco mais rara atualmente, por causa do ar condicionado. Isso era usual, já que temos tantos túneis. Mas ainda se vê um ou outro motorista abrir o vidro para fazer o sinal de pisca-pisca com as mãos. Tal esforço exige do motorista de trás um piscar de faróis em agradecimento. Não fazê-lo é uma tremenda grosseria. Aliás, muitos pedestres também fazem o mesmo sinal para os motoristas, quando os vêem com os faróis ligados. Essa gentileza é muito importante para nós, pois é comum estacionarmos sem nos darmos conta disso e nos custa uma bateria descarregada com mais freqüência do que você pode imaginar.

Se algum motorista, em algum sinal, buzina “tan taran tan”, provavelmente, encontrará um outro, também de bom humor, que responderá “tan tan”. Não é tão incomum o motorista que respondeu iniciar um outro “tan taran tan”. Se o fizer, é de praxe que o primeiro responda “tan tan”. É uma carioquice e, geralmente, a coisa pára por aí. É apenas um cumprimento de dois desconhecidos que, naquele emaranhado de carros aguardando o sinal, jamais se descobrirão um ao outro. Mas não é isso que importa e, sim, o espírito carioca em si, uma graça, um passo de samba perdido no bulício das ruas. Esse gracejo tem-se tornado mais raro, provavelmente, por causa do sonoro já tão poluído que nos invade. Quanto menos, melhor. Mas, vez por outra, você ainda encontra. Não se irrite. Leve em conta, como resquício do nosso espírito brincalhão.

Xingamentos são permitidos. Com certeza, você infringiu alguma regra da lista de barbeiragens consentidas. O melhor é ouvir com humildade. Faz parte do show. Pode ser, também, que o barbeiro seja o próprio xingador. Nesse caso, ele está tão estressado que o melhor é deixar passar, senão, quem perde o bom humor é você.

Motocicletas são, de modo geral, bem-vindas. Não fuçam, não trombam, não perturbam. Pelo menos, nunca as senti assim. Nasceram com o objetivo de chegarem ao destino antes de nós, nos trânsitos engarrafados. Leve isso em consideração e, se você se sente mesmo irritado ou irritada ao ver o bailado ao lado ou à frente de seu carro, lembre-se de que não estão fazendo concorrência com você. Na verdade, seguem apenas sua própria natureza. Não costumam agredir, pelo contrário, apenas existem. São percebidas principalmente nos sinais fechados. Nestes casos, vem furando ou pedindo passagem. Costumo sorrir quando eu mesma faço ou vejo algum motorista fazer o favorzinho de dar uma chegadinha para o lado ou um avancinho de nada para que elas possam passar e ficarem bem lá na frente, para saírem desabaladas mal abre o sinal. Cordialidade bem carioca. E vejo isso com freqüência.

Algumas avenidas com muitas pistas e maior velocidade permitem finos, furos e ultrapassagem pelos dois lados, não apenas pela esquerda, como manda o figurino. Até agora não entendi como dá tão certo. Acho que é porque nosso trânsito exige uma atenção redobrada, uma espécie de intuição ou instinto sobre o que seu companheiro pretende fazer. Já estamos acostumados a isso. E dá tudo certinho. Ir para a Barra, atravessar a Ponte Rio-Niterói, o Aterro do Flamengo é dar-se uma oportunidade de conferir bons exemplos disso.

Já notei que a pista mais rápida, na maioria das vezes, não é a da esquerda, ao contrário do que reza a lógica que aprendemos nas escolas de direção. Em certas ruas, os que já estão habituados já sabem. Na Pinheiro Machado, por exemplo, é sempre a da direita, pode contar com isso. Passei por ela todos os dias durante quase 15 anos. Até hoje a uso com freqüência e é sempre assim. Pode contar: vá pela pista da direita. Essa mesmo, a dos ônibus. Ainda não entendi por que, mas faz uma diferença perceptível. Na Barata Ribeiro, como são quatro pistas, pegue a segunda da direita. Essa mesmo, a que serve para os ônibus passarem uns pelos outros. Não dá outra. É muito raro não ser assim. Havia um tempo em que não era permitido andar por ali, mas agora já pode, na maioria dos trechos como, por exemplo, na entrada da Figueiredo de Magalhães.

Não há nada demais em estar em um lado da pista e ir pegando o outro lado, furando os carros, cortando um aqui, outro ali. Isso feito com a ginga carioca bem medida, faz parte do balé e é até aprovado pelos motoristas em volta, com piscadinhas aqui, acenos ali. Tudo certo.

Os finos são sempre permitidos, desde que não coloque em risco os espelhinhos retrovisores externos dos outros carros.

Haverá, com certeza, mil outros detalhes que minha observação, embora feminina, não conseguiu captar. Mas, no geral, acho que trânsito carioca é isso, pelo menos, sob o meu olhar embevecido e apaixonado por essa cidade amada, cheia de dengos e detalhes. Uma cidade que vale um conto à parte. Quem sabe, um dia escrevo.