sábado, 24 de setembro de 2022

MOSQUITO E CIDADANIA

 

           



    Há coisas que nos perturbam na raiz de nossa essência, no mais inesperado de nossas mentes, nos desavisados passos do cotidiano.

Estava pensando "na morte da bezerra", outro dia, bem distraída, indo a pé para casa. De repente, a intuição: "atravessa!"

Eu não discuto com a intuição. É como não acreditar nas bruxas, sabendo de sobra que elas existem. Atravessei... e mais: entre os carros, imediatamente. Que se dane... “ordens são ordens”.

Já do outro lado é que me virei e olhei o que tinha deixado para trás: três meninos crescidos, que a gente, antigamente, chamava de moleques, sem que isso fosse uma ofensa. Pelo olhar de descrença que eles lançavam em minha direção, percebi: tinha acabado de me safar de um assalto. Estava escurecendo. Entrei numa dessas lojas que só se fecham às 22 horas e fiquei fazendo uma hora lá dentro, mais para pensar na vida do que por medo. Esses iriam buscar outra pessoa. Para eles, tinha perdido a graça da abordagem de surpresa.

Um assalto aqui, muita muita muita fome ali... o descaso e o descalabro andando de mãos dadas nesse mundo de meus deuses. Coisas que viraram pequenas no cotidiano carioca, nessa cidade que não me canso de dizer que é de uma maravilha sem fim.

E enquanto eu passeava olhando as prateleiras da loja, mas com olhos perdidos no nada, pensei na banalização desse caos sem tamanho. Se não dá para não fazer nada, desacreditar tampouco. Não dá para viver sem pensar que há de ter uma saída, olhar só para o próprio umbigo, sem nada fazer.

Acreditar é preciso, mesmo com os olhos cansados de buscar uma luz em um horizonte que se esconde num cinzento de nuvens. Navegar é preciso, mesmo na consciência do caos – ou mesmo por causa disso. Todo tempo é tempo de ser brasileira, de direito e de fato, ser corresponsável pelas graças e desgraças do meu país.

E estarei lá, mesmo um pouco desacreditada de tudo, mas corajosa e cidadã, com meus mais de setenta anos, enrodilhada na rede de meus sossegos e desassossegos. Título na mão. Dedo pronto para a assinatura digital.

Você só se dá conta da grandeza da pequenez quando pensa em um mosquito sozinho com você num quarto escuro...

E, pela primeira vez, sinto o prazer e a empatia de me confundir com esse mosquito.


sábado, 12 de setembro de 2020

AS ÁRVORES FALAM?

 



Caminhando pela Av. Atlântica, como manda o figurino a quem ficou tantos dias bem quietinha em casa, me deparei com essas árvores, quase em posição tombada, praticamente rastejando para o mar.

Será que apenas querem buscar a pureza de suas ondas, ou também tentam deixar para trás as energias avassaladoras da sordidez humana? Não, não posso ser tão cruel. Há milhares e milhares de pessoas de bem nesse planeta. Mas a metáfora povoou minha mente...

Nunca duvidei que as plantas falassem. Tive uma Renda Portuguesa belíssima e frondosa que morreu um mês depois de meu canário, que costumava praticamente morar nela, em todo o tempo em que ficava solto em casa. Eu não tinha o que fazer para agradá-la. Entrou em um luto irreversível e secou em um mês. Talvez hoje, conhecendo melhor as energias, eu conseguisse dissuadi-la de que a vida é bela e perdas não são perdas... mas eu era menos ligada nessas coisas naquela época.

Tive uma avenca enorme, que cobria toda a minha mesinha da sala e ficava zangada comigo se não recebesse um bom dia,  passando minhas mãos por ela, de manhã. Murchava amuada, até que lhe desse atenção. Aceitava que não a regasse todos os dias, mas passar a mão era indispensável. Também não gostava de algumas pessoas que entravam em minha casa. Fazia a mesma coisa até a pessoa ir embora...

Mas minha crença na linguagem das plantas começou bem antes disso.

Nas décadas de oitenta e noventa, fui várias vezes à Alemanha. Aproveitava minha estadia para visitar cidades vizinhas. Ia e voltava no mesmo dia, com o maior conforto e praticidade, organização e desempenho das cidades europeias, em todos os níveis, não só nos transportes. Um dia, seremos assim. Não podemos nos esquecer de que a Europa está séculos a nossa frente e que, na Idade Média, era tão corrupta quanto nosso país é hoje. Não adianta atropelar e dizer que não tem jeito. E cabe-nos agir, quando nos couber a competência. Desde a Idade Média, a Europa teve de amadurecer muito, entre Reis, Estados e Religiões. Já pensaram nisso? Igualzinho! Então, há esperança.

Mas voltemos às árvores. Naquela manhã de 1990, o mapa me atraiu, mesmo sem ter nada de especial na descrição da cidade: Bad Homburg. Eu estava hospedada em Frankfurt, cidade que já conhecia bem, então, ficava num vai e volta, sem pressa.  Seria meia hora de metrô. Por que não? Foi fácil achar em minhas anotações de viagem: 27 de setembro - Tomei um vinho gostosíssimo no almoço da Hertie (uma das grandes lojas alemãs), comi o pedaço da torta de chocolate mais gostoso de toda a minha vida, numa doçaria fundada em 1886. Consigo me lembrar do sabor até hoje, eu, que nem sou assim tão chegada a comer...

Conheci lugares preciosos por toda a Alemanha desse jeitinho mesmo, mas... por que Bad Homburg? Nada me atraia especialmente para lá. Nada da descrição me chamava a atenção especificamente! Mas logo que cheguei, ao visitar um pequeno jardim, descobri, como que por encanto, o motivo de minha ida: aquela árvore!

Um Cedro do Líbano. Foi quando eu descobri que não tinha ido “porque era perto”. Eu tinha ido porque ali estava a árvore da minha vida!

A imagem me hipnotizou logo na entrada. Como usava filmadora, na época, e por praticidade não tinha levado também a câmera (seria muito peso), não tenho sua foto. Mas foi fácil achar pela busca na internet: Bad Homburg – Cedro do Líbano em Schlossgarten.



Eu não sei quanto tempo fiquei ali. Só sei que, a não ser para almoçar e comer aquela torta deliciosa e inesquecível, que ficava na pequena rua principal, não conheci mais nada da cidade. Eu tinha ido ali por causa daquela árvore!

Impossível descrever momentos místicos...

No final da tarde, não havia outro jeito senão ir embora. Fui me aproximando devagar daquela imagem forte e, ao mesmo tempo, tão doce e pura. Não tinha sequer pensado em tocá-la, mas ela me atraiu como um ímã. Não sei se ela me abraçou ou foi o contrário. Um abraço quase sem tocá-la, tão enlevado e envolvente. Mas... na palma de minha mão direita se soltou um pedacinho de seu tronco. Minúsculo. De pura e generosa doação que só as mães podem ter. Eu não sabia como tinha se soltado, eu quase não encostara nela, tão respeitoso fora meu ato.



Mas estava lá, em minha mão. Senti a generosidade da Terra, de seus cuidados curadores com seus filhos. Essa árvore-mãe generosa, dando uma parte de si mesma para sua filha embevecida. Nunca senti vontade de voltar para visita-la, pois sua imagem se fez presente em meu coração para sempre.

E nunca mais fui a mesma pessoa, desde então.

 


Referências: Foto do Cedro do Jardim de Schlosspark – Bad Homburg

https://www.google.com/search?rlz=1C1SQJL_pt-BRBR823BR823&source=univ&tbm=isch&q=Bad+Homburg+Cedro+do+L%C3%ADbano&sa=X&ved=2ahUKEwjwoqec5NbrAhWiB9QKHd2NCxoQ7Al6BAgKEB4&biw=1796&bih=903#imgrc=RoDn8yUIJ82itM

https://www.monumentaltrees.com/es/fotos/72586/


sábado, 22 de agosto de 2020

UMA GOTA


Depois de dois meses, ainda achei uma gota de sangue escondida num canto do meu corredor. Explico: no meio dessa pandemia, arranjei um jeito de levar um tremendo susto. Escorreguei do "nada", dentro de casa, bati com a cabeça e sangrei muito. Muito.

Vou pular o que se seguiu. Transformaria esse conto em novela e não é esse o meu objetivo.

Conto, apenas, que caí, me machuquei bastante e custei a me recuperar. Mas acabou tudo bem, felizmente.

De sequela, apesar de dois meses passados, ainda tenho um edema em andamento de cura e, de vantagem, o carinho sempre pronto de amigos queridos que, mesmo de longe, me deram toda assistência possível nessas circunstâncias, além de suporte e, principalmente, a atenção necessária para passar por esse sufoco.

Mas ficou o trauma, claro, pois ninguém é de ferro. Eu, pelo menos, sou bem de carne e osso, assinado e comprovado pelos resquícios do acidente, como  essa pequena gota de sangue teimosa, assanhada, se expondo, despudorada, no meu corredor. 

Custei a conseguir limpar a casa toda, pois onde quer que eu tenha ido, na hora do acidente, carimbei a casa com o resultado do sangramento. Duas semanas depois, mais restabelecida, fiz uma limpeza do chão, buscando os resquícios do acidente. Mas, até hoje, encontro gotas aqui e ali. 

Ontem, ao achar essa preciosidade histórica no meu corredor, me lembrei de filmes de suspense, de detetives com suas lentes, procurando digitais e, principalmente, resquícios vivos. Pois este está lá, acusando que houve sangue neste apartamento.

Brinquei com a ideia, imaginando quantas coisas deixamos como rastros, em nossas vidas. 

Se mexessem nas minhas gavetas, encontrariam, por certo, uma fonte de muitas investigações: uma caixinha com um anel e uma flor, por exemplo. Mas já escrevi o conto “O anel e a flor”, então, esse seria fácil de desvendar. Passeio, no entanto, minha mente pelas coisas não tão decifráveis e sorrio... Como alguém interessado reconstruiria o romance, o drama e o suspense de minha vida, só pelas pistas deixadas nas estantes e nas gavetas? Do jeito que tenho minhas coisas, um trequinho jogado no canto de minha mesa, com certeza, não está ali por acaso. Não sou do tipo acumulador de coisas, muito pelo contrário. E vivo refazendo limpezas para jogar “excessos” fora, doar, etc. Mas, se você encontrar um trequinho ali, naquele canto, não estará por acaso. Tenha certeza de que, se está ali, está por uma razão. Sorrio novamente... e me lembro das coisas que tenho e o que podem inspirar a quem não conhece a minha história... 

Tento olhar em volta, como se fosse uma desconhecida... abro minha imaginação para a imaginação das pessoas. E invento histórias absurdas para coisas simples. De fato, os interessados teriam muito com que se divertir. 

Volto minha atenção para a pequena gota de sangue do corredor, desafiadora de uma história agora desvendada.

Basta uma gota para um investigador atento. Uma gota. 

Como basta uma mensagem esquecida, um pequeno pedaço de papel rasgado, um número de telefone, uma fatura atirada no fundo de uma gaveta para desvendar tanta corrupção que temos tido oportunidade de testemunhar. Bastaria uma atitude, nem precisam de lupa, tão óbvios são os traços deixados em cada corrupção. Bastaria vontade de limpar o mal feito, limpar o fruto de nossa indignação diante dos fatos que nos ofendem e nos aviltam, como uma desonra a nossa crença de cidadãos. Sempre há uma gota esquecida como rastro de um crime contra esta nossa cidadania devastada. Uma gota de fel, muitas vezes empurrada com a barriga por interesses políticos os mais diversos, em vez de usarem logo um bom pano de chão, para uma limpeza completa. Não fazem isso quando lhes interessa? 

Observo minha gota inocente no canto do corredor, resultado do crime de uma distração de momento, com resultados catastróficos, mas sem causar mal a não ser a mim mesma. 

Apenas uma gota, que cuidadosamente busco limpar com respeito de boa cidadã, no convívio simples das coisas que compõem nosso cotidiano.

 

 


sábado, 8 de agosto de 2020

APRENDI




Nesta pandemia (pandemônio para muitos) tive tempo suficiente para me dar conta de que aprendi muitas coisas.

A alguns meses de completar 70 anos, percebi, sobretudo, que estava vivendo muito pouco para mim mesma e em excesso para o cotidiano que me engolia. Tenho certeza de que o mesmo deve estar acontecendo com muitas pessoas. Não é um privilégio meu. Parece óbvio, mas, se algum item servir para você, quem sabe, também faça você repensar em algumas coisas.

Aprendi que, quieta, no silêncio do isolamento, o aprendizado se torna, muitas vezes, mais perene. Eu tinha me esquecido disso, embora tenha feito, no passado, algumas reclusões espontâneas, mas acho que não foi o suficiente para ter aprendido tanto ou, quem sabe, a sabedoria da idade me fez mais esperta e consciente.

Então, nesta reclusão que também é uma escolha consciente - embora irrefutável pelas circunstância - aprendi melhor, aproveitando as vantagens do isolamento.

Aprendi que certas dores físicas que a velhice nos traz são inevitáveis, mas que temos o direito de evitar ou saber cuidar melhor das dores emocionais.

Aprendi que há, de verdade, pessoas que realmente se preocupam comigo. Muito mais do que eu imaginava! E sou muito grata a elas e à vida por isso. Eu já sabia que tinha amigos de verdade. Isso eu não aprendi, mas aprendi quais, de fato, são meus melhores amigos.

Aprendi que tenho tempo para sorrir para o meu espelho e não apenas para as pessoas. Preciso fazer mais isso. Na minha idade, é uma descoberta de ouro! Com essa descoberta, aprendi que as dores da alma são para serem, primeiro, vividas, depois digeridas e transmutadas para que não apaguem o sorriso interior.

Aprendi a me dar tempo de voltar a ler pelo menos um pouquinho todos os dias, em vez de engolir um livro todo, num final de semana, por falta de tempo. Assim, aprendi que chegou a hora de trabalhar menos e respirar mais.

Aprendi que é melhor, muito melhor comer em casa do que na rua e que cozinhar não dá tanto trabalho quanto parece.

Aprendi a varrer a casa logo de manhã, enquanto a poeira está assentada... e passei a fazer isso também com meus problemas.

Aprendi a voltar a ouvir música, enquanto limpo a casa ou cozinho.

Aprendi a planejar cada dia, logo que acordo, só para ficar mais divertido ter de mudar o roteiro mil vezes, no decorrer das horas.

Aprendi, sobretudo, que me divirto muito comigo mesma e isso é incrível.

Eu sabia que as pessoas não devem ser “consertadas”, mas a novidade é que aprendi que, se eu tenho de “consertar” alguma coisa em mim mesma, é preciso ter meu coração como mestre e não pessoas ou circunstâncias. Eu já sabia disso, mas tinha me esquecido e foi bom me lembrar. De brinde, aprendi que não cabe apenas a mim aceitar as pessoas como elas são: a recíproca também é verdadeira.

De repente, percebi que foram precisos mais de 100 dias para me dar conta de que existe uma fila enorme de coisas que aprendi, mas principalmente, aprendi que a vida é bela justamente porque é para ser vivida por dentro e não em decorrência da pandemia ou do pandemônio de coisas ou de pessoas que nos cercam.

 


sábado, 25 de fevereiro de 2017

REFLEXÕES DE CARNAVAL



Está esquisito.

Meu cantinho de rua sempre foi calmo, no carnaval. Mas... está tudo meio esquisito.

Tem bloco na rua? Tem.

Tem reportagem dizendo que o carnaval está bombando? Tem.

Como observadora incontestável de minha cidade amada, no entanto, posso dizer de cadeira: está esquisito.

Menos bulício, menos carioquices... menos tudo.

Tiro pelo cotidiano.

Ontem, sexta-feira, fiquei na dúvida se iria ao centro da cidade, mais especificamente, no Saara. Para quem não é carioca, o Saara é o lugar onde quase todo mundo acaba indo, de um jeito ou de outro. Lá tem a maior variedade de artigos possíveis e... bem mais barato. Você pode comprar de tudo um pouco ou de tudo um “muito”. Queria ir pelos descartáveis para o consultório e por um tapete emborrachado para fazer exercícios em casa. Quase não fui. Me lembrei que era sexta de carnaval e, para piorar, hora do almoço. O Saara fica insuportável, pois os apetrechos de carnaval são comprados assim, às pressas, pelos foliões de última hora e, claro, o Saara é pródigo nesse quesito. Tem mesmo de tudo: desde máscaras, como confetes, serpentinas, colares, fantasias dessas que você faz a folia e pode jogar fora depois. Praticamente não se pode andar por lá, na semana que antecede o carnaval. Na sexta, então, nem se fala.

Vou, não vou... vou! Não tenho outro dia, quero o tapetinho para minha casa, aproveitando os feriados para bombar nos exercícios. Ademais, os copos descartáveis para o consultório acabaram. Vou ter a tarde livre para isso, só preciso estar no consultório às 17 horas. Era meio-dia. Mesmo enfrentando mil filas, daria tempo.

Peguei o metrô. Teria me benzido, se fosse religiosa. Que os deuses me ajudem. E me preparei para enfrentar o trânsito dos pedestres, com mil bolsas transbordando pluminhas, purpurinas e máscaras. 

Desci na estação da Uruguaiana, atravessei a Rua Senhor dos Passos e me enfurnei pela Rua da Alfândega. Espaço para andar. Não havia os pregões de sempre, anunciando que “nesta loja é mais barato!”. Nada. Silêncio. Entrei onde queria, comprei o necessário. Funcionários sobrando, solícitos e sem pressa para atenderem. Rua vazia. Não havia fila no Caixa. Seria mesmo sexta de carnaval? Era.

Aproveitei o tempo ganho e, já que a rua estava vazia, fiz outras compras. Comprei o tapete, os descartáveis, entrei no “Palácio das Ferramentas” e comprei uma tesoura para jardinagem. É que estou cuidando dos jardins do prédio. Pura terapia. Se você quer que alguém faça alguma coisa, peça para quem não tem tempo. Deve ter sido por isso que me pediram para dar uma olhada nas plantas. Estão ficando lindas... sempre há um tempinho para dar uma olhada nelas.

Fiz tudo em menos de uma hora. Peguei o metrô. Não vi bolsas com colares, máscaras ou enfeites. O trem estava cheio, nem tive onde me sentar. Pessoas enfiadas nos seus pensamentos e nos seus celulares. Sexta de carnaval? 

Pensei no que foi minha semana. Nos elevadores, tira-se a temperatura do cotidiano. Carioca adora falar nos elevadores. Não importa se são desconhecidos. Se eles têm ascensorista, então... Mas não me lembro de ninguém falando do carnaval, como era o natural de todos os anos:

- Já comprou a fantasia?

- Vai sair em que Escola este ano?

- Saiu no bloco do pré (pré-carnavalesco), no domingo?

- Vai sair do Rio?

Nada disso. E olha que fico num entra e sai o dia todo. Atendo aos clientes, saio para almoçar, volto, saio para o banco, volto...

Nada.

O povo está triste. Não digo o povo que a mídia apregoa, com seus microfones e entrevistas. Digo o povo cotidiano, com quem me deparo todos os dias. O povo verdadeiro.

E têm menos turistas. Ah... não me enganem: têm menos turistas! No calçadão, posso constatar. Meus olhos acostumados sabem o que estou dizendo. E também pelo número de aptos de temporada alugados no prédio do consultório. Nem a metade de sempre. No supermercado, não ouvi aquela tagarelice multilíngue de todos os anos e nem as filas estavam triplicadas. Ouvi algum inglês e um espanhol aqui e ali, mas foi tudo. Estava acostumada a ouvir, também, os sotaques de vários cantos do país, numa paleta de tons entre o gaúcho e o nordestino. Nada disso. Na volta das compras, na sexta, me surpreendi com uma mesinha na esquina do Hotel entre a Rua Siqueira Campos e a Tonelero: Vendia ingressos para o desfile das Escolas de Samba. Parei para perguntar:

- Ainda têm ingressos?

- Para qual dia a senhora quer comprar? Domingo ou segunda?
 
Na sexta de carnaval? Pois é... eu podia escolher. Incrível. 

Aqui, esse meu cantinho é silencioso. Mas confesso que está silencioso demais.

No fundo, no fundo, por mais que se fale em crise, acho que é mais do que isso.

O povo está mais triste, mesmo sabendo que costuma, sempre, afogar as mágoas e curtir o carnaval. Afinal, aqui no Rio, qualquer calção ou biquíni, com umas purpurinas serve para sair sambando por aí. Põe um apetrecho qualquer na cabeça e pronto. Tudo baratinho. Mas nem vi os camelôs de sempre nas calçadas da Nossa Senhora de Copacabana, vendendo acessórios para enfeites de ultima hora. A gente nem podia andar direito pela calçada! Sumiram. Vi só uns mirrados, aqui e ali. Este ano está diferente.

Fantasio minha imaginação, visto a máscara de investigadora, mas... acho que nem precisa. O povo está pensando.

Tirada a catástrofe da falta de emprego, da crise, das dívidas, da corrupção e da profunda desilusão que afoga nossos corações brasileiros, mesmo assim, a tragédia não traz apenas um preço. A meu ver, traz certas vantagens também. 

Sou pura esperança. Sempre tem uma luz no final do túnel. E eu acho que esta é uma luz diferente das outras. Talvez seja a luz de uma conscientização mais plena.

Demora. Não se pode ter pressa, não adianta. Somos um país muito jovem. Quinhentos anos é nada, perto da milenar civilização que grassa o continente europeu, por exemplo.

Confesso que fico um pouco atônita quando tentam nos comparar com o continente ancião:

- Na França não é assim, na Inglaterra isso não aconteceria, mirem-se no espelho sueco da civilização, a Alemanha... 

Não que eu não admire o povo europeu. Sou metade europeia, com passaporte e tudo. Adoro a Europa. Ponho os pés lá e me deslumbro a cada passo. Nem precisa enumerar um país ou outro... não, a questão não é essa. É que são maduros. As pessoas se esquecem de que também foram crianças e adolescentes!!! Quantos séculos tem a civilização europeia? Por quantos revezes passou, quantas guerras, quanto sofrimento, quantas perseguições durante séculos, quantas barbáries, roubos entre reis e impérios, até chegar onde chegou? Isso ninguém leva em conta. Não são séculos... são milênios!

Temos apenas quinhentos anos. Acho que estamos entrando na adolescência agora, com ares ainda de crianças que querem agir como adultos e batem o pé porque não estão gostando do jeito com que foram criadas, aprisionadas em princípios que as levaram ao caos.

Não adianta me dizer que nossos irmãos do hemisfério norte também tem quinhentos anos e são donos do mundo. Para mim, não adianta. Primeiro, porque foram criados por “pais” diferentes. Segundo, porque foram criados por pais ricos, desses que ensinam os filhos a serem arrogantes...

Nós crescemos jogando futebol de rua com bolas feitas de meia. Não tínhamos condições de comprar bolas de verdade. Vejo nossos irmãos do norte como aquele menino, cujos pais compram a bola e dizem que eles são os donos da rua. Desses meninos que saem de casa e emprestam a bola para os colegas de rua, mas escolhem em que time querem jogar, em que posição querem ficar e, mesmo que não seja a posição mais adequada, se as outras crianças querem ter o privilégio de tocar em uma bola de verdade, têm de se sujeitar. Caso contrário, eles levam a bola embora e ninguém joga...

Não vejo diferença entre a infantilidade de nossos irmãos do norte, os mais poderosos do mundo, e nós. Poder não significa discernimento, nem maturidade. Não significa bom senso. Podem ter conquistado poder sobre os outros, mas e daí? Fazem guerras fora de casa, impõem condições que apenas lhes dê vantagens, são poderosos, porque seus pais lhes ensinaram a serem “donos da bola”. Isso não é maturidade. E também ponho em dúvida que tipo de poder e sucesso econômico é esse. Tiro pelo que está acontecendo: um chefe de Estado que tem discurso para os trabalhadores, mas funciona como um capitalista. Isso é sucesso?

Prefiro jogar futebol com minha bolinha de meia. Pelo menos, por enquanto. Prefiro não me vender a esse “riquinho dono da bola” e muito menos admirá-lo.

Mas é carnaval. E apenas reflito: o que está acontecendo com nosso povo de apenas quinhentos anos, recém saindo da infância? Que adolescentes estamos nos criando? Que indignações justas nos assolam?

É preciso sofrer para amadurecer? Deixarmos de nos alimentar de pão e circo? Considero como hipótese verdadeira: acho que sim.

Leva tempo, mas, pelo que tenho visto nas ruas, no silêncio dos elevadores, nas faces cansadas, tenho esperanças. Muitas.

Há carnaval? Há.

Há blocos nas ruas? Sim.

Muitos? Talvez, mas... me parece que as pessoas estão outras por dentro.

Por aqui, percebo o silêncio como sinal de vida.

Uma vida nova nascendo, uma criança adolescente que ainda apenas bate o pé, sem saber muito o que fazer. Mas... bate o pé com novos argumentos. Alguns meio doidos, outros transformadores.

Mas... está crescendo. Talvez muitos não estejam vendo, mas eu acho que está. Se tivermos olhos mais observadores e menos críticos, dá para se notar.

Que os deuses nos protejam.


sábado, 16 de janeiro de 2016

AS MEIAS


Ao escrever "O melhor presente", na semana passada, 'as meias' vieram imediatamente a minha mente. E não sosseguei, enquanto não escrevi sobre elas também.

Com certeza, Denise não imaginaria que eu fosse escrever apenas sobre elas. De fato, outro dia, quando me perguntou se eu ainda as tinha, não sabia que já estavam 'escritas e fotografadas' para serem as atrizes principais de meu próximo conto.

Conto como foi:

Em 2002, tive uma intempérie pessoal que fez com que me afastasse das aulas por um mês. Estávamos em agosto, volta das férias, mas, por razões de saúde, não pude voltar imediatamente. 

Décio, meu amigo-irmão de luta, fez questão de tomar minhas aulas da graduação para que nada fosse mexido em minha vida acadêmica. Assim, por um mês, não precisaria pedir licença. Tudo nos conformes, é claro, com a Diretoria do Instituto, na Universidade. Combinei com os colegas que não deixaria de dar as aulas de pós graduação. Como eram poucos alunos e como já tinha o hábito de trazê-los a minha casa, pois os livros que necessitavam para pesquisar não existiam na biblioteca, em princípio, não acharam nada demais.

Mas, ao me verem, com certeza, notaram que eu não estava lá "essas coisas". Não falaram nada, no entanto, e marquei os encontros do mês em minha casa.

Denise, além de aluna, era uma de minhas orientandas, na época. Reservada, aplicada, compenetrada, séria. Na verdade, sempre me chamara uma atenção especial, mas sua quietude não inspirava muita intimidade.

Saiu como os outros, sem nada dizer. Na verdade, pedi que ficasse mais um pouco, pois aproveitaria o dia para uma orientação de sua dissertação, do mestrado em curso. Afinal, como orientadora, não poderia deixar de cumprir também este papel. 

Falei-lhe rapidamente sobre meu estado de saúde, mas garanti-lhe que não se preocupasse. Era coisa de um tempo e tudo estaria bem.

Não notei que ela notara a necessidade de agasalho. Eu sempre fui muito friorenta e, mesmo no inverno carioca, eu sinto muito frio. Mas, naquele dia, estava especialmente agasalhada.

Na semana seguinte, após nosso encontro, Denise pediu para ficar mais um pouco, pois queria falar comigo.

Quando todos foram embora, tirou um pequeno pacotinho de sua bolsa e me entregou. Quando abri, achei um par de meias de lã:

- Eu mesma fiz, nesta semana, para que aqueça seus pés.

Eu tenho esse par até hoje e o uso com parcimônia. Felizmente, o inverno do Rio não é mesmo rigoroso e tenho certeza de que, com o cuidado com que o trato, este par vai durar o resto da minha vida.

Uso sempre com muito carinho e gratidão, pois, afinal, não há como descrever a emoção que senti no momento e nem a que sinto, até hoje, a cada vez que o uso.

Após a brilhante defesa de dissertação, Denise transformou-se em professora universitária, com todos os louros que lhe convieram. 

Mas, o melhor de tudo, é que somos amigas até hoje!

Obrigada, Denise, por ter aquecido de modo tão especial o meu coração.

Ah... já ia me esquecendo:

Por essa, eu sei, você não esperava... mas... poderia ser diferente?