sábado, 6 de novembro de 2010

O AEROPORTO


Morei em aeroporto por três dias, seis horas e incontáveis minutos, quando tive a oportunidade de conviver com a casta da antipatia, da petulância e da prepotência americanas.

Voltava de uma viagem a Jacksonville, em visita a Katia, uma grande amiga que estava em Paradise Point, acompanhando o marido. Passei dois dias em Chicago para visitar um amigo e parti direto para a base militar, por cerca de uma semana, apenas para conferir a amizade, já que o trabalho aqui é muito e não pode esperar.

A ida fora sem problemas, apesar dos inúmeros interrogatórios na entrada do país. Não tivesse eu um passaporte da União Européia, então, não saberia por quantos outros questionamentos passaria.

Eu tenho a impressão que os americanos se acham mesmo donos do mundo. Nada contra isso, cada um acha de si o que quiser, o sistema político-administrativo tem todo o direito a todos os cuidados que deve ter e não coloco nada disso em questão. Mas sistema é sistema e gente é gente. O funcionário, seja lá do que for, tem o dever de cumprir o seu dever. Mas não precisa ser tão antipático, tão arrogante e tão petulante quanto a lei. Parece, no entanto, que eles não estão falando com outra pessoa igualzinha a eles, com cabeça, tronco e membros iguais, sem contar com alma e espírito. Não. Acho que isso não passa pela cabeça da maioria de cada ser americano, pelo menos daqueles com quem convivi, nesses trânsitos administrativos. Ali, pelo que parece, eles não são gente ou acham lindo imitarem maquinas a serviço de uma máquina. Uma pena eu ter tido essa impressão de um país que poderia ter um pouco de açúcar. Ou será que eles gastam todo o açúcar que têm em comidas e guloseimas e não sobra nada para a alma?

Estou sendo rigorosa demais? Logo veremos.

Por uma semana, apenas convivi com as delícias de uma família brasileira em país estrangeiro. Uma espécie de consulado brasileiro no meio de uma cidade sem calçadas e sem ônibus. Sem calçadas. Significa que o sonho americano se concretiza ali: cabeça, tronco e rodas. Literalmente. Não fosse a gentileza de meus anfitriões, eu estaria simplesmente presa em casa, a não ser que alugasse um veículo. E ir para onde? Para os shoppings, naturalmente. Desconfio que, se tirarmos os shoppings dos americanos, eles perdem a identidade. Para quem não se sente atraída por montes de compras, eu estava mesmo perdida. Mas havia o espaço da base militar e os passeios a outras cidades com que meus amigos muito gentilmente me brindaram. Na base, eu podia andar a pé, quanto quisesse. Não se vai a lugar algum, mas era lindo caminhar entre as filas de casas para famílias dos mais variados países, jardins sem muros e muito espaço. E esquilos soltos por toda parte... e pássaros beliscando aqui e ali pelos jardins.


Seres humanos, enfurnados em suas casas. Lembro-me que eu andava todos os dias por cerca de um quilômetro para ver o lindíssimo pôr-do-sol. E não encontrava ninguém no caminho. Até hoje não consegui entender o que essas pessoas faziam enfiadas em suas casas, com um espaço tão lindo a seu dispor.



Eu caminhava em direção ao vastíssimo lago onde o sol se punha. Um lago rodeado de um gramado aconchegante, árvores encantadoras e muitos bancos voltados para ele. Todos sempre impecavelmente vazios.



Eu era a única transeunte, exceção feita a um ou outro morador que fazia sua caminhada apressada com algum cachorro. Mas isso era muito raro e eles sequer se davam ao trabalho de responderem ao meu cumprimento.

A semana passou rápido e lá estava eu, me despedindo de meus amigos, no aeroporto. Um bom livro, passagem pela polícia federal e os bancos de espera para o voo intermediário entre Jacksonville e Chicago, de onde viria para o Brasil. Vinte minutos para o embarque e... nada. Nem sinal de chamada. Em suma, o avião doméstico atrasou e isso significava que eu perderia a conexão.

Falo pouco inglês. Com os americanos, então, complica. Em Londres me viro muito melhor. Entender eu entendia e sabia que estava correndo o risco de ter uma boa encrenca nas mãos. Não deu outra. Eles não queriam se responsabilizar de jeito nenhum pelo meu voo internacional. E eu, com meu péssimo inglês, exigindo meus direitos. Era quase meia-noite e nada resolvido. Dormi no chão, pois os responsáveis por qualquer providência não estavam mais no aeroporto. Se estavam, não apareceram.

Você deve imaginar que um país de primeiro mundo só tem aeroportos super fantásticos. Engano seu. Se você se lembra de como era o aeroporto Santos Dummond antes da reforma, diria que ele seria um paraíso perto daquele. Para comer? Só uma birosca que abria das 8 às 18 horas vendendo biscoitos esquisitos que só os americanos conseguem engolir. Tinha pão, mas era para ser comido puro, pois eu nem conseguia olhar para aqueles recheios gordurentos. Máquina de refrigerantes e água. Mas fechados, dentro da loja, depois das seis da tarde. Assim, sem nada para comer ou beber, com um ar condicionado de polo norte e sem nada para me cobrir, eu e mais umas duas pessoas que falavam uma língua indecifrável perambulamos por ali até o amanhecer. Telefonei para meus amigos para que avisassem a quem iria me buscar no aeroporto no Brasil. Acalmei-os, dizendo que estava tudo bem e que voaria na manhã seguinte.

No dia seguinte, a companhia aérea responsável pela minha passagem, a United Airlines (nunca mais viajo nela, se os deuses me permitirem!), me enrolou o dia todo, dizendo procurar alguma vaga em outro voo. Parece que conseguiram, mas a outra companhia, American Airlines, não quis fazer o check in. Voltei para a companhia de origem e me fiz acompanhar por um funcionário ao check in da companhia a que me estavam transferindo. Mas quando a funcionária da United apresentou a passagem no check in da American, o funcionário do balcão olhou a passagem e simplesmente a rasgou, sem a mínima cerimônia. Fiquei perplexa: a falta de respeito se estendia ao colega de trabalho, assim, numa boa, sem explicações!

Estávamos no início de agosto e até entendo que arranjar uma vaga em qualquer voo para o Brasil era uma tarefa hercúlea. Mas a responsabilidade era deles e eu estava lá, morrendo de cansaço, sem banho e comendo pessimamente. Os tickets para alimentação que me ofereciam davam direito às bombas americanas da tal birosca das quais meu estômago não conseguia chegar nem perto. Assim me enrolaram por todo o dia e não saí de lá. Banho? Nada. Reclamava pelos meus direitos e eles apenas diziam que estavam tentando um hotel. Uma droga de língua na qual eu não sabia xingar me atrapalhava a comunicação à altura do que eles mereciam. Não conseguiram acomodações, pois a cidade, que dista quase dez quilômetros do aeroporto, era pequena e estava atolada com uma convenção internacional sem tamanho. Isso era o que eles diziam. Sempre frios e secos, diante desta latina sul americana. E me enrolando o dia todo, passei mais um dia ali, sem saber o que fazer, mas achando que voaria no final da tarde, como me haviam assegurado. Era pura embromação.

Meus amigos iriam para Disney, dois dias depois, com as crianças e eu não queria mobilizá-los. Afinal, o aeroporto ficava quatro horas distante de sua casa e seria uma viagem enorme de ida e volta. E para quê? Ligava para eles duas vezes por dia, dizendo que estava esperando e que estava tudo bem.

Evidentemente, não estava nada bem. Mas fiz o melhor que pude. Naquele saguão sem recursos, dei uma de barraqueira. Juntei minha mala grande, coloquei a de mão em cima, puxei uma mesa deles para perto do telefone publico, que passei a considerar meu centro de informação com meus amigos, e usei uma daquelas cadeiras presas ao chão. Nem sei como não me impediram. Talvez a determinação das atitudes. Os seguranças apenas me olharam. Tentaram se aproximar, mas não dei pelota. Estava montando meu escritório provisório. Mesa, telefone, cadeira, malas como estante. Livro aberto e leitura. Não havia mais nada a fazer. Felizmente, eu tinha mais de um livro na mala e tudo que não tinha lido durante a semana foi engolido ali mesmo.

Quando soube que não voaria naquele dia, perdi, finalmente, as estribeiras. Perguntei indignada se alguém ali falava francês, espanhol ou português. Ninguém. Eu falava três línguas e todos ali só sabiam falar uma droga de única língua. Exigi uma intérprete. A comissária, com cara de máquina, solicitou meu passaporte, disse para esperar e sumiu! Sumiu com meu passaporte por longos quarenta minutos! Eu queria ser presa, eu queria qualquer coisa, algum treco tinha de acontecer! Enfim, ela voltou e solicitou (eles não pedem, eles mandam ou solicitam, com uma falta de gentileza espantosa!) que a acompanhasse. Lá estava a minha intérprete. Ao telefone, lógico. Peguei o aparelho e, do outro lado, uma brasileira, com sotaque carioca. Contei tudo que estava acontecendo, exigi um hotel, um banho, uma cama e, principalmente, providências imediatas para que eu voltasse ao meu país. Foi tudo ouvido, anotado e providências seriam tomadas imediatamente. Que eu me acalmasse e que, em breve tudo estaria bem. Depois disso, me levaram para o saguão de novo e pediram que aguardasse. Eles estariam tomando providências.

O imediatamente deles simplesmente não existe e nada foi providenciado, a não ser um prato de comida que não consegui tocar. Banho? Não havia acomodações no aeroporto, sentiam muito. Não conseguiam hotel. O voo sairia na manhã seguinte e qualquer distancia maior do que a tal cidadezinha me faria perder a hora.

Quando contei que achava que ainda dormiria mais uma noite no aeroporto, meus amigos não aguentaram e se despencaram para lá. Não havia outra coisa a fazer senão concordar. Aceitei e aguardei, sentada em meu escritório, embutida nos meus livros, para passar o tempo da melhor forma possível. Felizmente, livros ótimos. Tão bons que meus amigos chegaram e nem me dei conta deles.

Katia tinha sido minha aluna e, ao me ver ali, daquele jeito, não resistiu ao flagrante. Hoje, ao rever a foto que coloquei lá no título desse conto é que acredito que aquilo realmente me aconteceu.

O bom da história é que eles conseguiram um hotel, às 22 horas da noite. O suficiente para eu poder tomar um banho, trocar de roupa, comer um sanduíche saudável e me atirar na cama por umas duas horas. Nem sei se dormi. Meu voo saia, finalmente, às seis horas da manhã, rumo ao aeroporto de Chicago, onde passaria o dia até que o voo internacional me trouxesse de volta ao lar, partindo às 23 horas.

Agradeço a cada mimo com que este casal me brindou naquela noite. Fico imaginando o esforço de ir e vir, numa viagem de quatro horas para cá, quatro de volta, às vésperas de uma longa viagem para as férias das crianças, só para me oferecerem um banho e um pouco de conforto. Foi mesmo um esforço a mais, inesperado e acolhedor. A vida me brindou com amigos assim e jamais deixarei de dar o devido valor a cada vez que ela me mostra esses requintes...

Voltei ao aeroporto para o susto final: uma fila incomensurável para a passagem pela polícia federal. Como chegamos bem cedo, no início, não dei muita importância. Mas eu não tinha me lembrado de como a revista era rigorosa, passageiro a passageiro. Faltando vinte minutos para a saída do meu voo, falamos com seguranças do aeroporto. Completamente insensíveis, apenas disseram que deveríamos ter chegado mais cedo e que eu me conservasse na fila. Aí é que veio o jeito carioca. Não havia saída. Fomos falando com cada pessoa na fila pedindo para passar a frente e, muitas vezes, quase sem ouvirmos a resposta de sim ou não, já estávamos falando com o passageiro da frente. Nem sei como consegui me adiantar cerca de cinquenta pessoas para me colocar diante da passagem pela segurança. Contando, assim, você não pode imaginar o desespero!

O longo caminho entre a ala de segurança e a entrada no avião foi percorrido correndo, com o fôlego na boca. Se eu perdesse o voo, desta vez, a responsabilidade seria minha. E... do jeito que eu tinha sido tratada, tinha medo de que nada me garantisse que eles esperariam um último passageiro. Me passou pela cabeça que haveria outros na mesma situação, mas eu não via ninguém. Soube, muito depois, por um dos passageiros, que o avião pousara ali em escala, que muitos haviam descido, mas apenas uns dois ou três tinham entrado. Talvez, conexão interna, eu é que vinha de fora. O fato é que consegui entrar e, logo atrás de mim, a porta do avião se fechou.

Eu estava simplesmente exausta, de corpo e de espírito. Jurava a mim mesma nunca mais colocar os pés naquele país. Que os deuses me livrassem de tal castigo! Cheguei a Chicago, naquele aeroporto de sonhos, onde me alimentei à altura e adormeci naqueles magníficos sofás. Dormi quase o dia todo e fui uma das primeiras a entrar no avião com destino certo: Rio de Janeiro. Colocando os pés em solo pátrio, tive ímpetos de beijá-lo. Mas senti-lo sob meus pés, o cheiro do Rio, o sol do Rio, a delicadeza e o sorriso das pessoas do Rio foram suficientes para me sentir em casa, aconchegada e feliz.

Quem sabe, um dia, o destino me faça voltar aos Estados Unidos, só para eu perder a péssima impressão que esse povo me causou. Na verdade, lá no fundo, gostaria de acreditar nisso.

2 comentários:

Celina disse...

Minha querida, eu ficaria com a mesma péssima impressão. Em pensar que agora está tudo muito pior! Que roubada! Eu só fui a Nova York, que cá entre nós não é bem Estados Unidos. E mesmo sendo louca por viagens, não é meu destino de consumo. bjs

pblower disse...

Essa foi uma das maiores aventuras que vc teve. Ainda bem que já passou.
Um dia vamos voltar aos USA juntas e para visitar a California, pegar um sol por lá. Quem sabe a impressão não melhora? beijocas muitas pois já estou quase indo embora novamente e dessa vez com parada em miami!!!!!!! Espero que tudo corra bem.