sábado, 20 de novembro de 2010

LUZIA


Dei um pulinho na universidade para pegar documentos antigos, contracheques, etc. Revi amigos e aproveitei para tirar algumas fotos para o blog. Foi aí que me deparei com uma parte da vista do estacionamento. Notei um carro estacionado em frente a uma vaga reservada para cadeirantes. Ver isso da altura do décimo primeiro andar me dava mais a impressão de ser coisa de filme ou de casa de brinquedos do que realidade. Mas era verdade. Em plena universidade, onde sei que há inúmeros projetos extensionistas e um vasto folhetim sobre cotas, direitos sociais e necessidades especiais - que é o que mais caracteriza o lugar em que trabalhei -, a vista disso me parecia coisa fora do lugar. Mas estava lá, o carro azul, em frente à vaga, enfrentando meus princípios.

Para não “entrar nela” desobedecendo ao aviso ostensivo de proibição, ele ou ela simplesmente optou por estacionar em frente! Dava na mesma. Não pude deixar de fotografar. De quebra, fiquei imaginando se os carros estacionados nas vagas reservadas seriam, realmente, de cadeirantes. É certo que os seguranças são logo chamados nesses casos, pois há um número considerável de cadeirantes lá. Não desci para ver. Lembro-me de que fazia isso quando era membro efetivo do Conselho Estadual para Política de Integração da Pessoa Portadora de Deficiência. Naquela época eu tinha mais poder de fogo, me apresentando como membro e mobilizando as autoridades locais. Bons tempos! Ou... maus tempos, como sempre? Para que precisar de carteira, afinal... não deveria ser um direito / dever de cidadania de todos?

O fato é que fiquei com o vicio já meio natural de estar atenta a esses absurdos. Aliás, guardei um arquivo que me mandaram, um dia, pela internet. A piada é boa, embora esconda outro preconceito, que também deveria ser combatido. Falaremos disso, provavelmente, em outro conto. Por ora, lá vai, pela criatividade do autor, para mim, desconhecido:


Outro dia, saindo do carro e andando pelo estacionamento do aeroporto do Galeão, rumo ao elevador, vi um cidadão (cidadão?) estacionando numa vaga dessas. Não resisti, mesmo sabendo que, de vez em quando, a gente se meter numa coisa dessas é furada. Me aproximei e perguntei o mais delicadamente que pude, se ele não tinha visto a placa, já que não via na chapa do carro a marca obrigatória que os cadeirantes tem de ter. Ele simplesmente retrucou:

- Alguém está vendo?

Não agüentei:

- Sua consciência não está?

- Você vai me multar?


- Não, mas deveria, já que sou do Conselho Estadual (já não sou mais, mas dei a cartada). Invisto apenas no seu senso de cidadania. Eu mesma tinha essa vaga à disposição quando passei por aqui, mas estou estacionada há quase cinqüenta metros, bem mais longe dos elevadores. E suas pernas são bem mais jovens que as minhas.

Não quis discutir mais, dei as costas, mas saí dali indignada. Não achei um segurança perto, queria pedir providências. Não vi ninguém.

Fiz o que tinha de fazer no aeroporto e voltei rapidamente. Como era o meu caminho, passei outra vez pela mesma vaga e... estava vazia. Por medo ou por consciência - gostaria mais de acreditar na segunda opção -, o jovem escolhera outro lugar. Resolvi voltar e procurei um segurança que, enfim, colocou um daqueles “cones” de plástico amarelo na vaga. Aquilo não evita a desobediência, mas é mais um empecilho. O problema é que também atrapalha o verdadeiro cadeirante que, vindo sozinho, quer estacionar ali.

Ando muito pela cidade e, volta e meia, me deparo com uma coisa dessas. Nossa educação básica de convívio está mesmo depauperada. Já sabemos disso de sobra. Mas como criticar a violência, se ela começa dentro de nossos corações?

Saí do estacionamento cabisbaixa, pensando nessas coisas, e me parece que aquele era mesmo um dia de me encontrar com a representação de pessoas muito especiais, que já trilharam a minha vida, me ensinando coisas da mente e do coração. Estava chegando em casa quando vi Luzia, uma antiga colega de faculdade. Ocorre que Luzia é cega. Andava devagar, com sua bengala. Me deu vontade de fazer uma meninice, como nos antigos tempos. Me aproximei sem falar uma palavra e lhe dei meu braço. Luzia parou e estranhou. É muito difícil um vidente dar o próprio braço para um cego na rua, para ajudá-lo. Geralmente, pegamos o seu braço, seu ombro, pois não fomos preparados para isso. A maioria das pessoas não sabe, mas essa atitude provoca uma total insegurança, pois a pessoa se sente monitorada e não guiada, como deveria. Se alguém se aproxima e, de saída, sem essa ou mais aquela, oferece o próprio braço, a pessoa cega já desconfia de que há noventa e nove por cento de chance de que o tal sujeito ou sujeita já andou aprendendo isso com cegos por aí.

- Quem é?

Minha meninice, dando o braço e caminhando, conservou silêncio.

- É Rita?

- Não.

- Fala mais um pouco. Você já andou com muitos cegos, não?

- Muitos.
Sorri.

- Ora, Eulalia! Você por aqui!

- Essa não vale Luzia, como você descobriu?


Ela me respondeu, com aquela cara de marota, bem minha conhecida:

-Se você já andou com cego, querida, está marcada para sempre... depois, é só aguçar para as características: pelo riso (e eu que pensei que apenas tinha sorrido!) e, logo depois, pela maneira de andar e pelo braço. Pela voz, fiquei um pouco na dúvida, porque você está um pouco resfriada, isso mascarou pouco, mas eu já tinha quase certeza. Então, chutei.

- Luzia, faz cerca de 30 anos que não nos vemos!

- Ver nunca te vi, mesmo, zombou ela,
lembrando-me de pronto de seu irrefutável bom humor. Mas o jeito, depois de termos convivido tão proximamente durante quatro anos... ah...não dá para esquecer.

Pois é... quem de nós, sem ver outra pessoa e praticamente sem falar com ela – e, ainda por cima, com resfriado -, poderia reconhecer um amigo, na rua, depois de trinta anos? Os cegos, quase sempre, podem.

Perguntei para onde ela queria ir.

- A um ponto de ônibus da Princesa Isabel.

Andamos conversando animadas, ela já habituada com o tipo de guia que eu sou, descendo e subindo as calçadas sem prévio aviso. É tão fácil guiar um cego com segurança... basta dar o braço e se conservar um passo adiante. Ele nota que você vai descer e subir, desviar de buraco... nem precisa falar. É incrível o senso de percepção que eles tem!

Fomos assim conversando rumo à Princesa Isabel. Soube que era seu caminho quase diário. Incrível, ela trabalhava numa escola ao lado do meu edifício, há dez anos, e nunca nos vimos. E justamente agora que nos tínhamos encontrado ela estava sendo transferida. Seguindo, assim, de papo, atravessamos a avenida e, como há vários pontos de ônibus, apenas fui caminhado, pois eu já sabia que ela iria reconhecer quando chegássemos ao dela. Não deu outra: num determinado momento, ela deu aquela “travadinha básica” bem minha conhecida. Era ali. Não resisti:

- Qual é o sinal, Luzia? Estava me referindo a como ela reconhecia o ponto.

- O cheiro da farmácia.


É preciso ressaltar que a farmácia não fica em frente ao tal ponto, fica duas lojas à frente. Significa que não tínhamos passado por ela. Pois é... nós temos um olfato tão aguçado? Uma percepção de contato tão aguçada? O que fazemos com nossos sentidos? Não dá para chamar uma pessoa assim de deficiente... é mesmo mais para pessoa especial...

E, talvez, quem sabe, foi com esse espírito de perceber o quanto são especiais que, muito mais tarde, por caminhos da vida, acabei trabalhando com surdos, aprendendo sua língua, lutando academicamente por uma educação especial melhor.

Só tenho a agradecer, por esses presentes da vida, me preparando, com antecedência programada para vários dos embates de minhas futuras escolhas.

Um dia, quem sabe, eu fale mais de Luzia e de surdos em outro conto. Vale a pena.

2 comentários:

Celina disse...

São especiais sim, querida. Pessoas que superam a falta de um dos sentidos, dificuldade ou impossibilidade de locomoção, merecem nossa admiração total. Mas o que mais vemos são os privados de consciência e de um mínimo de educação espalharem seus "des Feitos" . um bjnho!

Virgínia Bravo disse...

me lembrei de nossos tempos de faculdade!!!!bjs querida