sábado, 31 de março de 2012

O CAMINHO É MAIS IMPORTANTE


Março de 1970. Primeiro dia de aula. No mural do corredor do terceiro andar, o quadro com a carga horária do primeiro ano do Curso de Letras.

Segunda-feira, sete e meia da manhã: Professor Renato – Teoria Literária.

Um homem de olhar decidido entrou na sala logo depois que me sentei. Um homem de óculos e barba. Ou seria um bigode? Não me recordo se tinha barba, mas bigode, com certeza, tinha. Sei disso porque me lembro bem de uma das aulas, Renato recitando o poema das Sete Faces, de Drummond:

O homem atrás do bigode
é sério, simples e forte.
Quase não conversa.
Tem poucos, raros amigos
o homem atrás dos óculos e do bigode.


Lembro-me de que, enquanto Renato nos falava a respeito de Drummond, eu divagava comparando a poesia de Drummond à sabedoria daquele professor... ambos escudados pelos óculos e pelo bigode. Lembro-me da sensação que senti, naquele momento: a poesia me reportando aos óculos e ao bigode daquele mestre que, com zelos de pai cuidadoso, mas disciplinador, nos inspirava, ao mesmo tempo, um tremendo respeito e um tremendo carinho.

O que mais me marcou no Renato, no entanto, foi a certeza que ele sentia do que estava fazendo conosco. No primeiro dia, sentado a nossa frente, sua primeira frase foi:

- Estou aqui para fazer vocês entenderem os estilos literários, a base para que possam estudar toda a literatura do curso. Preparem-se, pois não vou refrescar nem um minuto.

E não refrescou mesmo! E aprendemos! Nossa! Quanto!

Renato começou pelo estilo épico. Ele não soube (ou será que soube?), mas a primeira frase que disse, carimbou uma visão de vida fundamental em meu coração. E esta foi apenas uma das lições de vida que tive de Renato, a que destaco para apresentá-lo a você:

- No estilo épico, o caminho é mais importante do que a meta.

Lembro-me de sua voz solene, empunhando um livro que logo descobri qual era:

- Se vocês abrirem a Ilíada, lerão, logo nos primeiros versos: Canta, ó deusa, a cólera de Aquiles, filho de Peleu, cólera funesta que causou inumeráveis dores aos Aqueus...

Renato era envolvente, compenetrado:

- E logo ali, no começo, Homero já nos conta o motivo da cólera de Aquiles e suas consequências! Nos primeiros versos, já sabemos o final da história!!! Aquiles mata Heitor, príncipe de Troia, por ter este matado Pátroclo, seu melhor amigo! Então, não há suspense na trama. No épico, já sabemos o final logo no começo!

E continuava portentoso:

- Por que ler tudo então? Porque, no épico, o caminho é mais importante do que a meta!

Não sei por que as aulas de Renato eram estrondosas em meu coração. Não era amor pelo mestre, embora também existisse. Era fascínio pelo seu conhecimento. Para mim, suas aulas não eram, muitas vezes, apenas aulas de Teoria Literária. Eu lia entrelinhas do impacto que elas quase sempre me causavam. Naquele dia, especialmente, Renato me dava aulas de filosofia de vida!

O caminho é mais importante do que a meta... não resisti:

- Como a morte, professor, todos sabemos que vamos morrer.

Lembro-me de que Renato parou de súbito, olhou para mim, recém saída da adolescência, e não resistiu:

- Sim, menina, somos heróis épicos.

Naquele segundo, naquele olhar de pai para filha, uma nova visão de mundo se compôs para sempre em meu coração, desde então mais consciente e desperto ao ouvi-lo dizer:

- Vamos morrer, é a única certeza que temos. O importante é o que fazemos entre o “agora” e o “lá”.

Sorriu. Eu sorri. Ele voltou a falar da Ilíada. Mas nós dois sabíamos que, apesar de ter sido uma aluna aplicadíssima na disciplina por todo o resto do ano, o melhor de todos os ensinamentos ele me dava assim.

Muitas, muitas vezes, em momentos singelos ou decisivos de minha vida, aquela frase jogada como semente em meu coração, num segundinho de tempo entre mestre e discípula, despontou forte em minhas decisões: a maior consciência da força do herói épico moldou em mim a guerreira, a mãe, a filha, a mulher, a mestre e uma discípula de vida mais consciente dos próprios passos.

Reencontrei a imagem de Renato muitas vezes, através de minhas leituras, como em Gandhi, por exemplo, quando dizia: “não há um caminho para a paz, a paz é o caminho”...

Hoje, quando vejo pessoas sôfregas por resultados, pulando etapas, engolindo em seco, cortando caminhos de vida, cumprindo “metas”, lembro-me de Renato, lembro-me de Gandhi, lembro-me da menina embevecida pelos ensinamentos do mestre:

- Sim, menina, somos heróis épicos. O caminho é mais importante do que a meta.

Obrigada, Renato. Como gostaria de saber por onde você anda agora...

sábado, 24 de março de 2012

UM QUATRO MEIA


Estava preenchendo a minha declaração anual de imposto de renda, como boa e comportada contribuinte.

Minha declaração é muito simples, mas resolvi fazer a extensa. Motivo óbvio: se fizer a resumida, pago imposto; se fizer a extensa, declarando todos os infinitos absurdos que pagamos ao plano de saúde e mais as consultas que não pertencem ao plano, recebo um monte de grana de volta! Então, vamos ao extenso!!!

Só que emperrei numa bobagem que qualquer contribuinte um pouquinho experiente saberia. O que fazer?

Ora, muito fácil: temos um número “salvador” da Receita: 146.

Peguei o telefone com a confiança do contribuinte que paga seus impostos em dia, faz tudo no figurino e que, portanto, não tem dúvidas sobre a responsabilidade do ou da atendente que, do outro lado da linha, estará super pronto ou pronta para entender sobre todas aquelas linhas que são infinitas (para nós, reles mortais), mas limitadas linhas que cabem dentro de seu treinamento para o atendimento ao contribuinte. Com certeza, ele ou ela deveria ser tão bom ou boa quanto o é o programa super simples e sofisticado que entra em nosso computador com um rápido e singelo “click”.

Preencher o formulário é mesmo quase um brinquedo! Fiz isso tão rápido e com tanta facilidade que eu mesma me surpreendi. Mas faltava só saber como colocar aquela besteira de informação!...

No número 146, encontrei todas as facilidades e apertei, rápido, a opção “falar com um de nossos atendentes”, confiante, feliz, quase achando que eu já estava com o formulário preenchido. Seria uma questão de minutos!

Levei apenas 40 segundos até que ouvisse a voz da atendente do outro lado da linha:

- Em que posso ajudar?

Expliquei meu caso simples.

Resposta singela:

- Tente colocar lá, no montante do que já foi retido.

-"Tentar" colocar lá, no montante, sem especificação?

- É, veja se dá certo.

- Como "veja se dá certo?" Estou ligando para vocês para obter uma informação específica, séria e consistente. Mesmo que "desse certo" e que esse maravilhosíssimo programa que vocês nos mandam não acusasse erro no item "verificação de pendências", não quero deixar de especificar o que e onde paguei o tal imposto!

- Sinto muito. Estou aqui só para atender a solicitações básicas.

- Mas é básico você me dizer em que linha eu devo declarar uma quantia que não se encaixa no primeiro item!

- Não faz parte do nosso treinamento. A senhora procure um posto de atendimento em sua cidade. Posso ajudar em mais alguma coisa?

- Claro que pode!
(e você pode imaginar a indignação que me tomou nesse instante...), claro que pode! Ao menos me diga os endereços dos postos para onde você está me mandando!

- Isso eu não sei não senhora.

- Então procure saber aí, pois eu não vou desligar sem um mínimo de informação possível.

- Um momento, por favor. De que cidade a senhora é?


Dei-lhe a informação e esperei uns minutos (felizmente não muitos). A singela moça veio com os endereços dos postos no Rio de Janeiro. Pedi o protocolo de atendimento.

- Infelizmente, não podemos fornecer o protocolo. O sistema não está disponível no momento.

Pois é... aquele fantástico sistema que nos oferece um programa super hiper sofisticado que faz com que preenchamos com facilidade e total segurança nossas declarações (diga-se de passagem que é um dos programas mais competentes e simples que eu conheço, falando sério!), não estava funcionando para me fornecer o protocolo necessário para eu fazer a maior reclamação que um contribuinte poderia fazer ao sac da Receita Federal(se é que isso existe).

Desliguei o telefone atônita...

Com certeza, era uma coisa simples, mas não queria importunar um amigo ou uma amiga por causa dessa bobagem. Era tão simples que não valia a pena sequer pagar um profissional para obter uma mínima informação sobre uma linha, provavelmente, a mais óbvia possível, que eu não enxergava só por ser uma completa inexperiente...

Escrevi um mail para uma amiga, cheia de embaraços, por estar ocupando o seu tempo.

Realmente, era uma idiotice muito simples. Resolvi o problema e mandei meu formulário pela perfeita, corretíssima, simplérrima receitanet.

Incrível. Não perca tempo ligando para o 146. Você vai-se arrepender. O formulário é mesmo auto-explicativo. Se não for e se sua declaração é tão simples como a minha, confie na boa vontade dos amigos: quem tem um tem tudo... mesmo acima da desilusão com o direito conferido pela cidadania...

domingo, 18 de março de 2012

UNIFORME


Gosto de caminhar. Quilômetros impensados. Nos finais de semana, pelo menos uma vez, quase sempre chego aos 16 quilômetros. Umas duas vezes por semana, faço a praia de Copacabana ida e volta: 8 quilômetros.

Sinto prazer em caminhar e, de quebra, controlo o colesterol, que é alto por herança genética e não por abuso de alimentação.

Caminhar traz muitas alegrias, além de fazer bem à saúde. Nos dá um tempo interior indispensável para pensar ao ar livre, nos deixa mais dispostos para observar a natureza, buscar novas trilhas e rumos, enfeitar a vida... e... descobrir coisas novas do convívio nesta cidade.

Hoje, fiz daquelas caminhadas de 16 quilômetros... caminhava comigo e com a cidade, com as pessoas passando por mim. Foi quando reparei em algo que já acontece há anos e não tinha notado tão conscientemente: há pessoas que a gente cumprimenta, outras não... há lugares em que a gente cumprimenta as pessoas, outros não.

Por exemplo, nas trilhas da floresta da Tijuca, os passantes sempre se cumprimentam... e sorriem! Na trilha da Urca, a da Gago Coutinho, uns cumprimentam, outros não. Passo, digo bom-dia e fico apostando comigo mesma: esse vai cumprimentar, esse não vai... e, quase sempre, acerto. Treino de estudos sociais...

No calçadão, na zona sul, não se cumprimenta. Fazer isso é cantada quase certa. Se for um gato, talvez valha a pena, mas, se for do mesmo sexo, também se corre o risco. Nada contra o homosexualismo, sou simpatizante, mas... como sou hetero, já tive de me desincumbir de situações embaraçosas. Assim, por via das dúvidas, se o objetivo é mesmo caminhar, não se cumprimenta.

Lembro-me pequenina, dando bons-dias para as pessoas e minha mãe me ensinando que não se fala com desconhecidos... acho que não adiantou. Tenho a impressão de que nasci com a alma de cidade do interior. As pessoas, em torno de mim, são pessoas, não bonecos, não “coisas andantes” a quem não se dá atenção...

Mas, nesta grande cidade, descobri que uma coisa é certa: os policiais civis e militares, os bombeiros, os garis, os militares das forças armadas, os seguranças (de qualquer empresa), todos, todos cumprimentam. Qualquer cidadão que esteja uniformizado, em pleno exercício de suas funções, já percebi, responde gentilmente a qualquer cumprimento. E a maioria com um ligeiro sorriso.

E é engraçado. Depois que descobri isso, sempre passo por um, cumprimentando. Faço porque gosto e, também (por que não?), para conferir.

Eu sei que cumprimento a pessoa por trás do uniforme, já sabendo que terei um cumprimento de volta.

Mas fico pensando: quem será que me responde? A pessoa por trás do uniforme ou o uniforme?

sábado, 10 de março de 2012

SÓ PARA GARANTIR


Tive uma violeta linda. Uma violeta africana, dessas “comuns” mesmo. Pelo menos, eu pensava que ela era “comum”.

A única foto que tenho é uma de quando ela era bebê. Pensei que já era uma violeta adulta, mas não. Ela era grande assim mesmo, só que bebê. Não fiz nada de especial senão coloca-la no lugar de honra da sala: a mesinha de centro. Bem... pelo menos, eu pensei que não estava fazendo nada de especial. Eu a achava linda linda, embora eu nem seja assim tão fã de violetas. A prova é que nunca mais pensei em comprar outra.

Foi um caso atípico de conquista. Ela me envolvendo pouco a pouco, dia a dia. Eu regava, cuidava dela normalmente, sem nenhuma atenção especial e ela lá, desabrochando para mim, sorridente, cúmplice, amiga. Foi um presente de uma aluna. Professores ganham (ou ganhavam?) flores com freqüência e, vez por outra, minha sala estava enfeitada: aniversário, dia dos professores, festa de fim de semestre... enfim, desta vez, o presente estava teimosamente me mostrando que tinha chegado para ficar.

E começou a crescer, crescer, e a dar flores, flores, flores... tão insistentemente que acabou conquistando, de verdade, o meu coração.

As visitas entravam e a olhavam imediatamente perguntando:

- Que planta é essa?

- Uma violeta.

- Desse tamanho? Não pode ser!


Podia. Ela era prova disso.

D. Djanira, esposa do Sr. Aluisio que, com certeza, um dia, terão um conto só para eles, tinha mãos de fada com as plantas. Nordestina, da Paraíba, morando no Rio desde os 17, já estava enturmada com nossos falares, nossos costumes, nossas mandingas, mas tinha lá seus palpites da terra:

- Menina, põe uma figa nessa planta, Deus seja louvado!

Não pus, mas... por via das dúvidas, arranjei um berçário de violetas na área de serviço. Tinha sempre mudinhas crescendo por ali. A visita entrava, punha os olhos na planta, elogiava e eu imediatamente ia ao berçário, pegava uma muda e presenteava a visita. Assim, com uma filha direta só para ela, deixaria a energia da minha em paz. Era o que eu pensava e parecia que dava certo. Superstição ou não, mal não fazia.

Um dia ouvi um barulhinho diferente na sala. Corri para ver. Era a violeta. Tinha crescido tanto que se partira em dois e, tombada, metade uma para cada lado, me deixou estarrecida. Corri para comprar outro vaso, não tinha jeito: para salva-la tinha de replantar. Deixei as duas na mesma mesinha, mas aí ficou meio desajeitado. Esperei uns dias para recuperação e procurei outro canto para a que comecei a chamar de “irmã mais nova”, já que era um pouquinho menor.

Levei-a para o quarto de estudos, contíguo à sala. Não tinha muito onde ficar e a coloquei, meio torta mesmo, na prateleira perto da janela. Estava nítido que ela estava “sobrando” ali, mas não achei um lugar melhor.

Os dias se passaram, talvez umas semanas. E... as duas crescendo, crescendo de novo. De vez em quando, levava a irmã mais nova para visitar a irmã mais velha, deixando-as tão perto que pudessem se tocar. Mas, realmente, não cabiam muito bem ali e, após a visita quase dominical, a mais nova voltava para o quarto.

Com o tempo, a mais nova, já muito encorpada, começou a sentir a falta de espaço. E também o calor maior da janela, pois tinha chegado o verão. Eu não sabia muito o que fazer, pois a área de serviço não tinha claridade suficiente para uma violeta adulta e, fora isso, só o quarto de dormir que também não era lá essas coisas para acolhe-la como deveria.

Enquanto eu estava nessa dúvida, apareceu D. Djanira, de novo. Sentou –se na sala e logo perguntou:

- Você podou sua planta?

Expliquei-lhe o ocorrido e também o meu problema. Foi quando tive a idéia:

- Sabe, a senhora seria a única pessoa a quem eu daria a irmã gêmea dessa, sem preocupações, quer?

- É você tem razão... a outra não é muda desta. Do jeito que foi, são mais para irmãs gêmeas mesmo. Será uma honra leva-la comigo. Já sei até onde coloca-la, num lugar bem parecido com essa sua daqui.


E me descreveu o local de sua casa, que eu conhecia muito bem. Concordei e ela levou toda cuidadosa, a irmã mais nova, depois, evidentemente, de as deixarmos juntas uma boa parte da tarde.

Os dias se passaram. Não sabia explicar o que estava acontecendo, mas minha violeta, pela primeira vez ficou adoentada. Apareceram uns fungos que eu nunca tinha visto e, também, umas folhas pareciam melar. No princípio, não liguei muito, mas, logo depois, comecei a ficar preocupada.

Fiz de tudo: extratos com anti-fungos, água com fortificantes especiais específicos para violetas. De nada adiantou. Um mês depois ela morreu. Peguei as mudas e dei um bom trato nelas. Alguma iria desabrochar com mais força e a colocaria no lugar. Mas, nenhuma se desenvolveu. Viraram violetas normais. Pouco depois, eu não tinha mais violetas em casa.

Liguei para D. Djanira:

- Minha querida, a senhora vai rir... mas preciso de uma muda daquela violeta. Imagine, depois desses anos (acho que eu já a possuía há uns dois anos) ela simplesmente morreu. Ela e suas mudas! O que terá sido?

A voz de minha amiga soou tristonha:

- Não queria lhe dizer porque você me deu aquela com tanto carinho e foi também com todo o carinho que eu cuidei dela, mas... deu fungo, melou e depois de mais ou menos um mês, morreu. Acho que não deveríamos te-las separado. É a única explicação que eu tenho.

Pois é... vai entender...

Passei um tempo muito triste.

A partir daí, mais atenta, passei a ouvir mil e uma histórias de plantas e suas reações. Jamais as coloquei em dúvida.

Hoje tenho uma avenca enorme, no mesmo lugar. Também veio pequenina. Digo que é minha secretária energética, já que dizem que avenca, dentro de casa, só se dá bem em ambientes de paz e harmonia. É uma planta muito sensível. Fico atenta a suas reações. Mas ela está lá, felizmente, muito bem.

Dou-lhe bons-dias, boas-tardes e boas-noites. Não a rego com tanto esmero, todos os dias, como dizem os livros que as avencas precisam, mas a rego com respeito, amor e dedicação. Está lindinha e fofa. E se espalha abusada por toda a mesa, quase como se fosse uma samambaia.

A história se repete. As visitas entram e comentam:

- Que samambaia delicada você conseguiu achar!

- É avenca.

- Desse tamanho? Não pode ser!


Às vezes, fico pensando que aquela mesa de centro da sala tem lá seus poderes...

De qualquer modo, cresça o que crescer, minha avenca vai ficar inteirinha ali, sem separações. E, me lembrando de D. Djanira e sem poder tirar mudas da delicadíssima planta, não pus figa, mas tem lá uma turmalina e uma ametista por perto do vaso... só para garantir.

sábado, 3 de março de 2012

ERA PARA SER UM CONTO

Fiquei olhando para a lista de contos já publicados. Pensei que jamais passaria do vigésimo...

Tenho um arquivo onde guardo todos. Hoje, passo para a casa dos três dígitos: uma centena.

Ué... em que canto da mente e do coração estavam guardadas tantas histórias?

Uma foto antiga, um momento vivido, quanta coisa para se viver no dia-a-dia.

Agradeço à vida pelos altos, médios e baixos. Aliás, por tocar no assunto, isso me chama a atenção: já notou que ninguém fala dos médios? Minto. Ninguém, não. Mas é muito raro.

- Como vai a vida?

- Médio.

O mais comum é mesmo não dar crédito ao “médio” :

- Como vai a vida?

- “Entre” altos e baixos.

Outros, completam:

- “Entre” altos e baixos, vai tudo bem...

O que seria esse “entre”? Seria igual ao momento do “médio”, onde, de forma geral, tudo fica meio que no “vai tudo bem” igual a com cheiro de rotina? Ou seriam os pulos que se dá de um alto para um baixo, ou vice-versa? Acho que tem mais cara desse último...

Me parece ser como se a vida só tivesse vibração nos altos e baixos, como se os médios não importassem, como se não fizessem uma parte saudável também intrínseca de nossas vidas.

Fiquei pensando um pouco sobre isso, quando me sentei para escrever o conto de hoje. Pensava nos altos e baixos de minha vida... foi quando parei para pensar nos... “médios”! Por que não?

Vivi tanto... vida de altos e baixos... e os médios? Mas observei também que, talvez, muitas vezes, eles se escondam nas respostas quase automáticas:

- Como vai a vida?

- “Assim assim”.

Não sei se é resposta tipicamente carioca. Vale também por “mais ou menos”. Mas, na verdade, para mim, esse “assim assim” me soa como “médio” e me parece dar uma impressão de algo que deixa a pessoa “meio sem luz”. Médio. Nem alto, nem baixo. Nada, afinal, que mexa com as emoções de modo ativo e, às vezes, avassalador.

Os ditos populares revelam tudo: “os altos e baixos da vida”...

Não me lembro de um dito popular com "médio”, assim assim” ou “mais ou menos” para definir um estado num momento de vida.

Médio.

Não é quente, nem frio... é o quase insensível, porque talvez pareça estar na “temperatura do corpo” e, por causa disso, vivido como “temperatura rotineira da cabeça e do coração”.

Embora todos digam que anseiam pela tranqüilidade e paz, uma vida amena, esse “médio” soa quase como que “sem graça”!

O médio mexe pouco com a emoção, seja ela qual for. Não estimula os hormônios, não põe o coração para bater apressado, seja de angústia ou de júbilo, de guerra ou de paz. O médio é morno, nem quente, nem frio. Não desperta os sentidos. Médio.

Mas o médio frutifica a vida, se sentido em sua integridade. Não vivemos de altos e baixos. Vivemos do todo, seja ele qual for. E o médio, embora “médio” , pode ser tão intenso quanto qualquer alto ou baixo, pois também nos impõe a criatividade, a ação em busca de... ah... claro... de um alto, naturalmente...

Me faz pensar no I Ching... a linha média - que estabiliza o momento – se prepara para a linha do alto que é quase a transformação para um novo ciclo que, por sua vez começa lá na linha de baixo, de novo...

Médio. O que seria “dos altos e dos baixos” se não fosse o médio? O que seria sentir o coração pulsar mais forte, se não conhecêssemos o seu descanso?

O que seria das luzes e das trevas, não fosse a penumbra?

Nem noite nem dia: justamente o alvorecer e o anoitecer. Momentos mágicos.

É a estabilidade que não permanece, mesmo que você esteja “plantado” nela. A vida dá voltas e voltas e voltas, quer você queira quer não e... passando sempre pelo médio, pela tomada de fôlego.

O médio é como o fiel da balança, o equilíbrio, o que nos coloca no prumo, nos preparando para as vivências mais fortes das linhas extremas: alto e baixo. Amar e vivenciar o “médio” é semear para colher. É preparar-se, equilibrar-se para subir ou descer. É aprender a viver cada vez melhor e mais sabiamente.

I Ching.

Fiquei pensando nisso e meus dedos, no teclado, foram acompanhando meu pensamento...

É... era para ser um conto... o conto “cem”.


Obs.: Foto de Hiroto Yoshioka