sábado, 24 de dezembro de 2011

O PRESENTE DE NATAL


Acho que eu tinha 4 ou 5 anos, no máximo, quando vi Papai Noel ao vivo e a cores pela primeira vez. Para quem se lembra, nos anos 50, ele aparecia na Sears, a primeira loja de departamentos de nossa cidade, localizada onde hoje é o Botafogo Praia Shopping. E como era o único Papai Noel a aparecer na cidade, era mais fácil acreditar que era ele mesmo, de verdade verdadeira, vindo assuntar, ou melhor, conferir com certa antecedência, o que seus filhos natalinos iriam querer que ele trouxesse na noite mágica.

Rumo à Sears, então, eu, que morava na Tijuca. Viagem longa e ansiosa até Botafogo, zona sul, outro lado da cidade. A Sears era um encanto para os olhos infantis. Loja grande de teto alto demais para uma menina de 4 anos. Portentosa. Logo no primeiro andar, bem lá no fundo, enfim, Papai Noel. Estava ali, sentado, todo risonho e simpático, com suas barbas brancas de seda a festejar paciente e carinhosamente cada pequenino ou pequenina que viesse sussurrar, em seu colo, seus desejos ansiados, muitas vezes, durante todo o ano.

Eu nunca tinha visto Papai Noel e nunca mais o vi assim, tão de perto, de verdade, único na cidade, só para mim. Era tão real que me levou a ter coragem de me aproximar, um pouco envergonhada, mas convicta.

Eu tinha ensaiado por dias a frase escolhida para o momento especial, a pergunta esperada, a resposta pronta.

Aproximei-me devagar, como quem não quer nada, olhos fitos em sua bondade, seu sorriso doce, seu olhar acolhedor. Lembro-me do beijo acompanhado do roçar macio dos pelos sedosos de sua barba branquinha. Lembro-me de sua voz baixa, calma, tranqüila, suave:

- Que linda menina temos aqui. Qual o seu nome?

Fui surpreendida pela pergunta inesperada. Meu pedido entalado na garganta, decorado dias sem conta. Tinha medo de perder o fio de minha meada, ser enrolada por outros brinquedos. Eu queria por que queria realizar o meu desejo e estava concentrada nisso. Qualquer outra pergunta poderia desviar meu palpitante coração infantil da resposta trazida na ponta da língua. Engoli o fôlego e respondi rápido:

- Eulalia

- Que lindo nome!


Lindo nome. Eu gostava dele, desde que me entendia por gente e o bom velhinho o achava lindo, tão lindo quanto eu mesma achava. Embora tensa, lembro-me de que me senti mais segura e satisfeita. Sorri. Mas, na verdade, o que eu queria mesmo era destravar minha ansiedade e fazer meu pedido.

- Você se comportou bem o ano todo?

Ora bolas, ele era Papai Noel, aquele que vê tudo lá do Polo Norte... ele devia estar cansado de saber que eu era uma santa criatura! Por que tanta enrolação? Acenei rápida com a cabeça. Mas o bom velhinho, com sua falta total de pressa virou-se para minha mãe que espreitava um pouco afastada:

- Ela foi mesmo uma boa menina?

Minha cabeça parecia que ia dar um nó. O velhinho que de tudo sabia, ainda tinha de ter o testemunho da minha mãe? Estava fora de dúvida que eu merecia meu presente! Minha mãe acenou que sim. Pareceu, enfim, que estava convencido. Esperava ansiosa pelo clímax.

- Bem, então, o que você deseja ganhar na noite de Natal?

A tal dúvida sobre a onisciência ensaiou atrapalhar minha concentração, e lembro-me que tive vontade de dizer ao bom velhinho que tudo via e, portanto, que tudo devia saber sobre as crianças, que ele deveria ler, sem esforço, o desejo embutido na alma de cada uma em todo o mundo! Mas não era hora de colocar nada em discussão e, já que eu tinha idade suficiente para falar por mim mesma, não era ali que eu iria perder a oportunidade de externar meu desejo em sua presença e nem questionar nadinha. De jeito nenhum.

- Uma lapiseira.

- Uma lapiseira? Só uma lapiseira? Você não quer uma boneca? Algo mais?

- Não. Eu quero uma lapiseira. Uma... lapiseira... azul...

- Uma lapiseira azul... hum... você já sabe ler e escrever?

- Não, mas vou começar a aprender depressa!

- E o que você vai fazer com uma lapiseira azul?

- Vou escrever, vou escrever muito! Acho que vai ser a coisa que eu mais vou gostar de fazer na minha vida.

- Muito bem... então, se você for realmente uma boa menina até o Natal, terá sua lapiseira azul. Tem certeza de que não quer uma boneca também? Uma pequenina...


O velhinho, por mais doce que fosse, estava me deixando um pouco nervosa. Eu tinha um medaço que ele achasse uma boneca melhor do que uma lapiseira e acabasse me dando uma boneca em vez de minha tão cobiçada lapiseira. Eu queria uma lapiseira azul!

- Não, eu já tenho uma boneca... eu tenho até duas. O que eu quero mesmo é uma lapiseira azul!...

Ganhei a lapiseira azul. Guardo em algum lugar muito especial de minha mente o quanto essa lapiseira me acompanhou. Esteve em meus estojos escolares por muitos anos, mesmo quando já não mais escrevia, pois, naquela época, as lapiseiras enferrujavam, envelheciam e emperravam.

Foi com a minha lapiseira azul que me senti, pela primeira vez, dona do papel, solene, como quem alcança uma caneta tinteiro Parker antes da puberdade. Os que são da minha época e que chegaram a ganhar canetas tinteiro sabem o que significa...

Minha doce e querida lapiseira azul. Sim, querida, através de você eu já sabia, desde então, que escrever seria uma de minhas mais importantes responsabilidades acadêmicas e que seria, também, um de meus mais deliciosos e terapêuticos passatempos.

sábado, 17 de dezembro de 2011

CRIS


Cristina apareceu na minha vida num momento delicado. Tínhamos nos esbarrado em congressos, mas eu sou mesmo um desastre no que se refere a guardar fisionomias. Para você ter idéia, já passei algumas vezes direto por conhecidos bem conhecidos, até por vizinhos. Parece descaso, mas não é mesmo. Já avisava aos meus alunos, no primeiro dia de aula. "Se eu passar sem cumprimentar, não se aborreçam, por favor. Sou cegueta de fisionomia". Além de muito distraída quando ando na rua, sou mesmo uma negação nesse item.

Colegas profissionais de congresso, jamais fizeram exceção. E foi assim que topei com Cris, em plena cidade do Porto, num congresso internacional de Linguistica. Passei direto por ela, claro, e se ela não me travasse o passo, ficaria por isso mesmo. Felizmente, isso não aconteceu, pois foi o início de nossa estreita amizade, que permanece até hoje.

Cris mora em São Paulo e eu no Rio. Mas o milagre da internet faz com que saibamos mais uma da vida da outra do que a maioria de nossos outros amigos que convivem conosco, em nossas cidades. É que nos escrevemos quase todos os dias!

Mas nossa amizade, na verdade, começou meio atropelada. É que coincidiu com meu encontro com um dos casos amorosos mais gostosos da minha vida, que você já conhece, se leu o conto “o gabonês”. Pois então: estar no congresso era ficar ali apenas para as palestras que interessavam. Fora isso, dávamos um jeito de sumirmos, os dois, para curtirmos o tempo livre juntos.

De vez em quando, esbarrava em Cris, que me convidava para almoçar, sairmos juntas. Evidentemente, não tinha com ela a mesma intimidade que tenho hoje e não me sentia à vontade de apenas dizer que meu tempo já estava todo ocupado com uma pessoa muito especial. Assim, resumi nosso contato ao mínimo, educada e formalmente, mas, na verdade, o que eu estava fazendo era fugir de encontra-la.

Não me lembro muito bem como (Cris, com certeza, com sua memória de elefante, saberia descrever passo a passo!), a vida fez com que nos encontrássemos, no Brasil, em outros congressos e nosso contato foi sempre muito ameno e cordial. Passei também a reconhece-la mais e, conseguia - embora raramente, confesso - falar com ela, antes que ela falasse comigo. Ela não sabia, mas reconhece-la, no meio de tanta gente, para mim, já era um fato de destaque para meu apreço pessoal, já que minha memória fisionômica é mesmo um desastre.

O fato é que, um dia, resolvemos almoçar juntas. Tínhamos, então, mais intimidade. Nossa forma de pensar sobre aspectos lingüísticos e educacionais é muito parecida e essa companheirice começou a fazer-se cada vez mais evidente nos encontros, simpósios e congresso. Nesse almoço, estávamos falando exatamente sobre isso, quando ela me sapecou uma pergunta bem em cheio. E Cris é Cris! E esta é uma das razões por que gosto dela, para citar apenas essa, é claro. Nesse almoço, ela foi direta e simples:

- Você se lembra de nosso encontro no Porto?

- Não muito bem.

- Tive a impressão de que você não ia com a minha cara. Me evitou o tempo todo. Tentava marcar uma coisa com você, mas você estava sempre desconversando. É engraçado como agora estamos sempre juntas.


Não pude me conter. Dei uma boa risada.

- Cris, você não vai acreditar. Mas é que eu estava de caso com um congressista francês, do Gabão. Fugia de tudo para conseguir ficar só com ele!

- Ora bolas, por que você não me disse logo? E eu achando que você não queria conversa comigo!

- Não queria mesmo, mas era por isso!


Um ano depois, mais ou menos, nos encontramos em Lisboa, para outro congresso. Desta vez, no entanto, sabíamos que nos encontraríamos lá. Mas, logo ao ver-me, Cris perguntou:

- Você está de caso com alguém?

Soltei outra bela risada.

- Não querida, acabei de chegar. Mas dessa vez, juro, se acontecer, você será a primeira a saber.

- Ok, assim eu sei por que você some.


Não conheci ninguém. Aliás, nunca estou deliberadamente a procura de alguém quando viajo. É que, às vezes, acontece...

O fato é que nós duas nos divertimos a valer. Cris tem um faro especial para descobrir lugares interessantes, restaurantes especiais que servem ao nosso delicado paladar. É também dessas companheiras de histórias infindáveis. Se não nos dermos conta, atravessamos a noite. Mas é que queremos aproveitar bem o dia seguinte e ficamos nos vigiando, para dormirmos razoavelmente cedo.

Aliás, o conto dessa semana é uma homenagem a Cris. Veio de São Paulo para passar quatro dias comigo aqui no Rio. Que delícia! Enquanto ela se prepara para dormir, meus dedos inquietos vieram escrever esse conto, para postar amanhã. Uma surpresa, para que ela leia, ainda aqui, ao acordar. Já que ela não perde nenhum dos meus contos, este a surpreenderá.

Haverá outras oportunidades, em que poderei contar algumas de nossas façanhas conjuntas. Por ora, queria apenas fazer-lhe este mimo, uma homenagem a sua visita, coisa rara, mas querida.

sábado, 10 de dezembro de 2011

TORTURA CHINESA



Decididamente, temos de tomar um cuidado redobrado com a escolha de médicos.

Foi-se o tempo, chi... foi-se há muito o tempo, o delicioso e insubstituível tempo do médico da família. Aquele que conhecia a todos e era chamado de tio pelas crianças da casa. Mas não dá para saudosismos... a saída é buscar e buscar, até achar a tal agulha no palheiro, o profissional cuidadoso e competente que entenda o nosso organismo. O problema é que de bons clínicos gerais estamos meio falidos... e, como a bola da vez é a “especialidade clínica”, o jeito é buscar essas agulhas nas tais especialidades.

Por falar em “agulhas”, gosto muito de acupuntura. Como terapeuta complementar, a observação parece óbvia. Mas é que essas agulhas, colocadas nos lugares certos, realmente nos colocam no prumo e, invisivelmente, nos deixam saudáveis a maior parte da vida. A questão é achar o profissional certo.

Se o nariz é bom, a gente acaba acertando, mas, antes disso, estamos expostos a cada armadilha!...

Por razões da vida, eu tinha perdido o meu e comecei a procurar outro, do jeito que todos conhecemos: por indicação e... por tentativa e erro.

Entre os que busquei, destaco um chinês legítimo. Médico e, segundo me disseram, muito conceituado. Quando cheguei lá, constatei que o homem quase não falava português, mas... se fosse dos bons, meus dotes lingüísticos acabariam por contornar a situação.

A anamnese foi rápida, acho até que pela dificuldade de comunicação. Na verdade, um bom acupunturista descobre o que você é pelo tato, pela leitura da energia nos pulsos. Acostumada a isso, já os tinha em cima da mesa. Disse-lhe que não tinha nenhuma queixa específica, mas que buscara a acupuntura como suporte para amenizar minha pressão alta dos olhos, aliás, um problema hereditário: meu pai tinha glaucoma.

Minha pressão era alta, mas não exigia maiores cuidados, apenas atenção. Ainda estava no limite de não precisar medicação. Mas a idade avançava e como já estava na minha década de 40, a tendência a subir começava a se fazer sentir. Vez por outra, o oculista me pegava com ela ligeiramente mais alta. Já estava passando do limite e ele já apontava para a possibilidade de entrar no colírio. Disse ao chinês, portanto, que, por causa dos efeitos colaterais da medicação, estava procurando um jeito de baixar a pressão, se fosse possível.

O médico tinha aquela aparência firme de quem sabe o que está fazendo e de quem não gosta de dar muitas explicações. Aliás, de não ouvir também muitas perguntas. Isso, por si só já me desagradou um pouco, mas, como ele era chinês...

Desde a primeira sessão, percebi o desastre: ele impôs um ar condicionado às alturas – melhor dizendo, às baixuras - e ao lhe pedir que aumentasse a temperatura ou me desse um abrigo, ele apenas retrucou que era indispensável deixar como estava e, sobretudo, manter os pés descobertos. Colocou um finíssimo lençol por cima de mim (com os pés descobertos!), sapecou minhas orelhas com um monte de agulhas e escafedeu-se. Eu literalmente congelei. Minhas orelhas doíam horrores! Eu nunca tinha tido uma sessão de acupuntura com tanta dor. Se resolvesse o problema dos olhos, com certeza, sairia com dor de garganta. Mas ele era chinês, da terra onde nasceu a acupuntura. Agüentei firme. Firme até o pré-congelamento, mas agüentei.

Meia hora depois, ele entrou na sala, eu provavelmente azul de frio e tremendo dos pés à cabeça. Disse-lhe isso e ouvi como única resposta que ele sabia o que estava fazendo e que, provavelmente, com o tratamento, dentro de um mês, mais ou menos, eu estaria com pressão 12 por 12, super normalizada, pois ele já tratara muitas pessoas assim, com excelentes resultados.

Voltei para casa com esta última frase gravada em minha mente e decidi ficar por um mês para ver se teria resultado. Valeria a pena suportar o que comecei a intitular de tortura chinesa, que era, literalmente, o que acontecia.

Um mês depois, corri para o oftalmologista e qual não foi a minha surpresa: a pressão que sempre estivera no limite de 20, tinha subido abruptamente para 25!

Saí com a receita do colírio e uma raiva incontida! Voltei ao chinês para lhe dar a notícia e apenas ouvi, numa voz de poucos amigos:

- É, acho que, no seu caso, será preciso usar colírio.

- Mas eu não precisava usar, até que cheguei aqui!


Ele apenas respondeu:

- É, se não precisava, passou a precisar.

Eu não tinha nem como retrucar, pois como e onde teria argumentos suficientes para processá-lo? Também não dava para avançar no seu pescoço: ele era bem mais alto e mais forte do que eu...

Foi assim que me meti com um colírio e seus efeitos colaterais. Passei assim muitos anos, até achar as pessoas certas, tanto em acupuntura, como em oftalmologia. Hoje, finalmente, tenho os dois, bons profissionais: um médico acupunturista, que aquece a sala, nos dias de inverno e me cobre com um cobertorzinho maneiro, para que eu me sinta num estado pré-celestial. Achei, também, uma oftalmologista que, de brinde, é médica homeopata das boas, que junta ao tratamento uns dois ou três tabletinhos, que tomo diariamente.

E tem o Reiki, florais e outras coisas que a maioria das pessoas chamaria de “místicas”. Na verdade, eu as considero terapias complementares.

O fato é que minha pressão baixou, depois de quase dez anos de escravidão: agora sustento 16 por 16, muito menos do que tinha, quando era jovem.

O que aprendi com tudo isso e o que me fez escrever este conto, foi, na verdade, o convívio com essa experiência e, também, com as incontáveis histórias de maus atendimentos clínicos que, muitas vezes, tenho ouvido, diariamente, de meus clientes de Reiki e florais. Só nesta semana, por exemplo, recebi dois casos exacerbados como este meu.

Não dispenso o atendimento clínico em quaisquer dos casos, pois sei que as terapias complementares (Reiki, etc.), como o próprio nome diz, são “complementares”. Mas as pessoas não precisam passar por torturas chinesas, por causa disso. E muito menos serem mal atendidas, como eu fui. Menos ainda, saírem pior do que entraram.

Aprendi que, ao primeiro sinal de descontentamento bem fundamentado, devemos mudar. Aprendi a desconfiar da frase “sei o que estou fazendo”, quando eu não sei se tenho certeza disso. Principalmente, aprendi que quem tem de saber o que está fazendo somos nós, não eles.

A tortura chinesa fez um mal quase irrecuperável aos meus olhos físicos, mas aguçou meu olhar interior. Passei a enxergar melhor, a buscar melhor, a escolher melhor.

Quem sabe, minha experiência possa inspirar você também...

sábado, 3 de dezembro de 2011

O QUEIJO


Passei anos de minha vida esperando ir a Paris. Na verdade, acho que começou no dia em que me dei conta de que Paris existia. Sem saber explicar racionalmente por que, algo indescritível fala francês dentro de mim desde que me conheço por gente.

Em 1975 realizei meu sonho pela primeira vez. Digo primeira vez, pois o sonho se renova a cada vez que ponho os pés lá. A última foi em 2001 e, se demorar muito mais, quem sabe eu tenha um treco.

Mas voltemos a 1975. Quatro dias apenas, mas quatro dias vividos com quase volúpia. Respirava cada detalhe por dentro e por fora, meus olhos encharcados de luz e sonho.


A cidade, a todo momento, registrava o descompassado ritmo do meu coração. Paris, afinal, fala por si mesma. Não há como descrevê-la. Não há como dizer qual lugar é mais intenso do que outro. Tenho pensado nela por esses dias... quem sabe, hora de fazer uma loucura... uma saudável loucura... vou começar a tramar melhor isso.

Mas hoje vim para casa com um queijo tipo Camemberg nas mãos. Me deu saudades do gosto e, por extensão, da lembrança de queijos e vinhos... por associação... Torre Eiffel. A memória é fantástica e nos enreda por cheiros ou gostos já vividos. É como um raio de luz que abre um espaço em recordações escondidas. Mas desta vez, voltei para casa inquieta e só consegui me sentir acomodada quando meus dedos começaram a digitar essa lembrança.

Torre Eiffel, depois de uma manhã inteira de muita caminhada. Um percurso de muitos quilômetros de encantamento e as pernas pediam repouso. Uma fila imensa aguardava os visitantes. Entrei nela e inventei de esquecer que minhas pernas existiam. Por um bom tempo, meu corpo resumiu-se aos meus olhos que filmavam, centímetro por centímetro, aquela harmoniosa ferragem engendrada em forma de Torre.



Quantas e quantas vezes eu a tinha visto apenas corporificada pelo papel de fotos e postais. Mas estava ali, a minha frente, mais um precioso tesouro para os olhos do meu coração.

Subir ao seu topo significaria para mim conquistar a cidade, fincar minha bandeira no cume e dizer: “Paris, no teu topo, aqui estou eu!” E faria isso. Poucos passos me separavam dessa conquista.

Foi quando percebi que o avançado da hora exigia cuidados alimentares. Claro, não abri mão de almoçar lá em cima. A subida deu-se harmoniosa só no que tocava ao bondinho, que ganhava as alturas suave e firme.


Meu coração é que subia aos trancos, em trilhos internos desencontrados, talvez um pouco enferrujados por tantos anos de espera. Meus olhos precisavam de lubrificantes, pois negavam-se a piscar. Até hoje, sinto as sensações físicas esquisitas do momento, contrastando com minha alma em festa.

Chegamos ao segundo, dos três andares que compõem a estrutura. A vista maravilhosa era, para mim, o ponto central da festa, mas meu ex-marido me puxava impaciente para o restaurante. Entramos. Meu delicadíssimo estômago pediu o prato mais simples que existia. Meu ex, ao contrário, boa boca, pediu o que encontrou de mais sofisticado. Muito justo: em terra de franceses, seja francês.

Colesterol à parte, adoro queijo! Ao final da refeição, portanto, me animei a participar com ele do ritual do prato de queijos. O garçon, como todo francês que se preza, trouxe, vaidoso, o que havia de melhor em Paris. Cuidadosa, pedi o queijo mais simples que encontrei. Ele, ao contrário, para honrar a festa, solicitou que o garçon apontasse o que seria recomendado. Não me lembro que queijo era, mas a aparência era das mais “sofisticadas”, para não dizer, por puro respeito, das “mais esquisitas”. Mas foi esse mesmo que ele escolheu e eu tratei de fixar minha atenção apenas para a simplicidade atraente do meu prato.

O queijo era tão magnífico que me esqueci do que estava à volta. Por isso levei algum tempo para me dar conta do que acontecia ao meu companheiro de jornada. Quando o fiz, notei que ele estava congelado, como se fosse uma estátua. Apenas olhava para mim, sem mexer um músculo. Sua expressão era, no mínimo, muito engraçada. Notei que seu prato havia sido tocado, mas eu não podia imaginar o que ele sentia. Estava adorando o que tinha em sua boca ou detestando? Ele não se mexia.

- O que foi?

Ele, mudo, olhos fitos em mim, sem mexer um músculo.

- Bom demais?

Ele quieto.

- Ruim demais?

Ele acenou muito ligeiramente com a cabeça.

- Engole de uma vez!

Ele quieto, olhando para mim.

- Não pode ser tão ruim assim.

Ele acenava que sim.

- Vai ao banheiro e joga fora.

Ele não se movia. Olhei-o, incrédula:

- Não é possível.

Disse isso e, discretamente, avancei com meu garfo e peguei um tiquinho de nada do queijo dele, pois não queria me arriscar. Experimentei. Imediatamente senti o mesmo congelamento que percebera ao fitar meu companheiro. Não era ruim. Era tão insuportavelmente intragável que me senti a última das francesas. Os músculos de minha boca reagiram imediatamente, a possibilidade de engolir não existia. Minha garganta trancou. A agudeza do sabor agredia o meu íntimo. O impulso era o de descarta-lo imediatamente. Não consegui engolir, mas, no meu caso, não me apertei. Me levantei e fui ao toalete, joguei o tal tiquinho fora e lavei bem minha boca. E o pior: uma crise de riso me invadia. Explodia em mim, a cada segundo que me lembrava da expressão inusitada do semblante de meu comparsa. Queria sentir pena, mas não conseguia!

Mas precisava voltar. Afinal, eu tinha um queijo maravilhoso em meu prato para honrar a minha prudente covardia na escolha, uma escolha talvez considerada desastrosa para um gosto francês mais apurado. Para mim, no entanto, era o queijo mais simples e, ao mesmo tempo, o mais delicioso que jamais provara.

Ao voltar, para minha surpresa, não havia mais queijo nenhum no prato de meu ex.

- Você comeu?

- Não.


Ele conseguira colocar o queijo num pedaço de papel que tinha no bolso para descarta-lo quando saíssemos. É óbvio que sentiu uma vergonha inusitada de deixa-lo no prato, depois de ter sido tão elogiado pelo garçon, por sua escolha.

A parte ruim é que dividi meu maravilhoso queijo com ele. Mas, tudo bem... ninguém conseguiria sair com aquele gosto horrível na boca. Só um francês, talvez, desses que comem daqueles queijos desde pequenininho...

Depois dessa experiência, a tarde voltou-se para o puro encantamento de fazer com que minha alma alçasse vôo rumo ao terceiro andar e vislumbrasse a bela, magnífica, indescritível Paris.


Os dias seguintes também me brindaram à altura de todo o sonho esperado por tantos anos. Lembro-me, vez ou outra, a troco de tudo ou de nada, de tantos recantos, aventuras e deslumbramentos.

Mas toda vez que compro um queijo francês não posso deixar de me lembrar do restaurante da Torre.


Preciso voltar lá. Mas, com certeza, na hora do prato de queijos, meu pedido se repetirá certo, simples e fagueiro, sem cair na conversa de nenhum glamoroso garçon!...

sábado, 26 de novembro de 2011

RADAR


Radar era um cão fila que mais parecia um filhote de leão sem juba. Feroz. Tão feroz que seus donos tiveram de aumentar a altura dos muros de sua casa para que ele não se incomodasse tanto com os transeuntes. Uma casa suntuosa que se espalhava, em seus jardins e seus dois andares, numa esquina despreocupada de Pendotiba.

Eu conhecera Radar bem filhote e já era bem grandinho para que eu conseguisse coloca-lo em meu colo. Depois de crescido, soube, por acaso, que apenas quatro pessoas conseguiam colocar as mãos nele despreocupadamente: os donos, o veterinário e eu. Não conseguia ter medo dele. Era mesmo uma amizade sem cuidados. Confiança mútua, eu diria. Os familiares o temiam e eu não conseguia entender por quê. Quando eu chegava, era uma festa só! Remexia-se todo de contentamento e não saia de perto de mim o tempo todo da visita. Aliás, só ele chegava perto de mim, pois rosnava para todos que se aproximavam. Eu não conseguia fazer festa nem na fêmea, uma fila linda, delicada e gentil. Ele se interpunha entre mim e ela e não tinha jeito de eu conseguir afaga-la sequer.

Às vezes, eu ficava pensando se não seria exagero das pessoas pinta-lo de forma tão feroz: diziam que o entregador de pizza já mostrava certo receio quando anotava o endereço: é da casa do Radar? Ele sequer vira o cão, mas só os latidos o faziam tremer. Posso imaginar o que diriam do carteiro...

Embora Radar não tivesse acesso aos transeuntes, pois até o portão de entrada era indevassável, diziam que seu instinto fazia com que viesse latindo furioso batendo-se contra o portão ao primeiro estalar da campainha. Eu nunca presenciara esses desacatos e para mim, Radar era um amigo querido e sempre bem acolhido.

Veio o divórcio e todas as conseqüências que isso traz à vida da gente. Até que tudo se estabilize, você fica mesmo um pouco distante de muitas coisas, mesmo das que gosta. O meu, especialmente, com tantas dívidas advindas depois, me fez ficar imersa em trabalhos e compromissos por longo tempo.

Quando a vida começou a estabilizar-se, comecei a freqüentar meus amigos novamente. A casa de Radar era distante e ir lá exigia uma disponibilidade que eu não tivera até então. Estava com saudades de todos, mas, confesso, Radar tomou meus pensamentos a maior parte do trajeto entre minha casa e Pendotiba.

Toquei a campainha. Seria uma bela oportunidade de testar a fúria de meu amigo, pois, afinal, já havia uns dois anos que eu não ia lá... um pouco pensativa, temia, na verdade, que já tivesse se esquecido de mim. Ao ouvir os latidos furiosos que vieram de longe, dos fundos da casa em direção ao portão, tão logo toquei a campainha, lembrei-me do entregador de pizzas e sorri. Naquele instante, passei a acreditar em todas as histórias. Nenhum entregador poderia se esquecer daquele rugido que de cão pouco parecia... mas usufruí desse episódio por muito pouco tempo: no meio do caminho, os latidos pararam abruptamente. Radar ganiu, baixinho a princípio, depois mais alto e desapareceu. Soube depois que fora como uma flecha buscar meus amigos, agoniado, acompanhando-os, empurrando-os para o portão. Ele havia sentido a minha presença.

Quando entrei nem pude cumprimenta-los. Meu olhar estarrecido, contemplou aquele animal enorme, indócil, nervoso, me empurrando contra a parede com o focinho. Ele não se esquecera! Pelo contrário, mostrava a falta que eu tinha feito durante todo aquele tempo. O ritual completava-se como antigamente: ele sabia que eu não poderia conter seu peso e nunca pulou sobre mim, quando eu chegava. Pelo contrário, empurrava-me para a parede e, como parte da brincadeira, eu sempre me fazia de difícil, até que ele conseguia me encurralar com o focinho. Uma vez encostada contra um muro ou parede da casa, ele levantava suas patas dianteiras e as colocava uma em cada lado do meu corpo. Significava que elas ficavam mais ou menos acima da minha cabeça, de modo que, ali presa, eu não tivesse outra opção senão coçar o seu peito, como carinho. Radar era muito inquieto e não permitia que ninguém o abraçasse, nem seus donos. Mas fazer carinho, coçar suas costas, cabeça ou peito, era tudo de bom. E o peito era a parte em que ele mais gostava de receber minhas coçadinhas. Ficava assim por um tempo e não havia meios de alguém o arredar de seu ensejo. Rosnava até para os donos, se fosse necessário. Confesso que me sentia uma princesa, ali, dona da situação. A fera domada pelo suave toque de minha mão.

Este ritual sempre impressionara muito as outras visitas da casa:

- Você não tem medo?

- Como posso ter medo diante de tanto carinho?


Eles não percebiam o cuidado de Radar de me empurrar para a parede por saber que eu não agüentaria que ele se apoiasse em meu ombro. Sequer percebiam o movimento de levantar a cabeça para que eu pudesse acariciar o seu peito. Eles só viam os dentes, não o pelo, as garras, não a atitude... coisas que só o amor pode compreender. E amor era o que ocorria ali. Um amor bem possessivo, mas que eu sabia contornar, embora, muitas vezes, um pouco exagerado. Radar não permitia que ninguém chegasse muito perto.

Lembro-me de uma vez em que fui com um namorado. Discretamente, ele logo entendeu que era mais conveniente se sentar um pouco mais distante de mim, melhor dizendo, do outro lado da mesa do jardim. Menos do que isso, não foi permitido pelo meu ilustre cão companheiro.

Eu tenho a impressão de que para Radar eu não era propriamente uma amiga, era uma posse. Ele era o meu dono, um dono sem espaço para meio termo. Ao me sentar, deitava-se ao meu lado o tempo quase todo. Sua cabeça repousava tranqüila em um dos meus pés. Quando não era a cabeça, era uma das patas. Não era para ter dúvidas: eu pertencia a ele, desde a hora da entrada, até a despedida. Leva-lo para o canil, quando eu estava lá, era quase uma injúria e ele reclamava disso a altos brados, quero dizer, a altos latidos e muitos ganidos. Melhor deixa-lo solto e ao meu lado. Aliás, no fundo, eu adorava o escândalo ele que fazia e solicitava “condescendente” (na verdade, suplicante), que ele ficasse por ali. Era mais confortável para todos e melhor para nós dois. Confesso que me agradava muito ter ao meu lado, como se fosse um gatinho, um “filhote de leão”.

Essas visitas, embora não freqüentes, povoam até hoje, com alegria, minhas lembranças. Até mesmo a última vez em que vi Radar foi gratificante, embora extremamente comovente.

Aconteceu que ele ficou gravemente doente. Câncer ósseo, sem cura. Cuidado com carinho e desvelo por seus donos, foi tratado para usufruir do melhor conforto durante a doença. Não me disseram nada, até bem perto do fim. Mas este, um dia, chegou, pois o veterinário aconselhou um término para a dor. Ele estava muito mal.

Eu estava sem ir lá há uns três meses e não sabia o que estava acontecendo, até que eles me ligaram e contaram, de uma vez só, toda a história. Senti uma facada no peito:

- Acho melhor você vir para se despedir, pois ele não consegue mais sequer se levantar e achamos que devemos dar um fim a esse sofrimento.

Fui no dia seguinte, não deixei para depois. Ao tocar a campainha, não fui saldada com os latidos de sempre. Ele deveria estar lá nos fundos. Ao abrir a porta me disseram que seria melhor eu me preparar, pois ele estava deitado e quieto, que eu me aproximasse devagar a falasse com ele.

Ao entrar na parte interna do jardim, vislumbrei seu vulto ao fundo. Sua cabeça levantou-se, ele, a custo, levantou-se e caminhou meio rastejante em minha direção. A cena, em si comovente, surpreendeu os donos e a mim. Corri para evitar que ele fizesse mais esforço. Meu ímpeto foi o de abraça-lo. Com certeza, não teria forças para reagir e evitar o movimento. Mas me contive. Quis respeitar seus princípios. Apenas afaguei-o e ele, imponente, empertigou-se. Magro, fraco, abatido, mas altaneiro. Foi assim que tiramos nossas fotos. Ele se sustentando em pé o mais que podia. E foi a última vez que se pôs em pé.


Enfim, deitou-se, colocou como sempre sua cabeça em um dos meus pés e não mais se levantou, mesmo na minha saída.

Ficamos ali, por muito tempo e conversamos muito. Eu lhe falei de todos os momentos incríveis que ele me proporcionou e ele me respondia, vez ou outra, com pequenos ganidos baixinhos, quase suspiros - doces, embora doloridos suspiros. Nós dois sabíamos que seria a última vez. Mas também sabíamos que seria eterno.

Lembro-me que se queixou quando me levantei para ir embora. Apoiou com mais força sua cabeça, tentando me reter ali. Ao mesmo tempo, sabíamos, ambos, que era esforço demasiado. E foi por isso que me despedi.

Afaguei-o com todo o carinho de uma vida a dois. Sua testa enorme na palma da minha mão. Seus olhos fechados internalizando o momento. Eu sabia. Ele sabia. Minhas lágrimas pingavam em sua face. Nós sabíamos.

Radar, meu querido, doce e meigo amigo, aquela estrela lá no céu, eu bem sei, te pertence. Sei reconhece-la onde quer que eu esteja...

domingo, 20 de novembro de 2011

FERNANDO DE NORONHA (2)


Como prometi, na semana passada, continuação do meu encantamento por Fernando de Noronha.

Entre os passeios que fiz, destaco o de barco. Este, fiz em excursão, pois seria a única forma de dar uma volta pela ilha pelo mar, com direito e um mergulhinho para ver peixes por ali. O barco tinha dois andares e o dono deixou bem claro que, em cima, só caberiam seis pessoas de cada vez e que poderíamos revezar. Éramos cerca de quinze pessoas e a vista, no segundo andar, era das melhores. Esperei que as pessoas resolvessem quem gostaria de ir, mas notei que todas, sem exceção, se esparramaram pelo piso de baixo, sem nenhuma intenção de subir. Conversavam, entre elas, animadamente, sobre suas aventuras de férias, sobre assuntos gerais e até sobre capítulos de novela, em alto e bom som. Notei que, na verdade, não estavam dando muita atenção à maravilhosa vista que se estendia por todos os lados. Não entendi nadinha o que eles estavam fazendo ali, mas não me fiz de rogada: me encarapitei no segundo piso e fiquei soberana da vista o tempo todo, desfrutando sozinha alguns dos recantos marítimos mais bonitos de nosso país.




Estava assim, embevecida com o lugar, quando o dono do barco, um marinheiro simpático, veio me fazer companhia. Brinquei com ele sobre minha soberania local e, ele, sorridente, disse que eu era uma exceção.


Geralmente, os turistas só pegavam o barco por causa do mergulho e para verem se tinham sorte de filmarem alguns golfinhos. Mas como ele notara que eu estava mesmo interessada pelo passeio, resolvera subir para me dar “umas lições sobre a ilha”.


Assim, de mão beijada, fui orientada a buscar os melhores recantos, onde ver o melhor por-do-sol e também a buscar um nativo para o tal passeio pelo mar, que já contei na semana passada.

Aproveitei e perguntei se valia a pena pegar a excursão para ver a entrada dos golfinhos na chamada enseada dos golfinhos, cuja propaganda, aliás, muito badalada, eu vira na portaria da pensão. A excursão saía às 4 horas da manhã e se dirigia para a enseada dos golfinhos, a 70 metros de altura sobre o mar, para esperar o cardume que deveria chegar às 5 horas. Não era permitido ir sem excursão, pois é zona protegida pelo IBAMA e cada dia conta com um número determinado de visitantes. A empresa responsável nos pegava nas pensões, já com o aval do IBAMA estabelecido para o dia e, depois, nos trazia de volta, às 7 da manhã. Os turistas tinham permissão para permanecerem no local das 5 às 6 horas. Após esse horário, o mirante era fechado para dar espaço aos pesquisadores. O preço era bem salgado e eu queria estar certa de que valeria a pena. Perguntei-lhe, portanto, se a 70 metros acima do mar, no mirante, poderíamos ter uma boa vista dos animais.

Nosso ilustre marinheiro, em sua simplicidade, apenas respondeu:

- Valer vale, se os golfinhos resolverem aparecer. Os pesquisadores dizem que eles entram entre cinco e seis da manhã, mas... a senhora sabe... os golfinhos não usam relógio nem para chegar, nem para ir embora...

Resolvi trocar, ali mesmo, meus planos de excursão ao mirante dos golfinhos pelo passeio pelo mar com um nativo, segundo as prescrições desse simpático marinheiro e não me arrependi, é claro... até porque uma grande e maravilhosa surpresa me esperava naquela tarde mesmo. Continuamos a conversar e perguntei se ele achava que este passeio nos brindaria com a vista de golfinhos. Ele disse que seria pouco provável, segundo os biólogos, pois já eram quase duas horas da tarde e eles dizem que os golfinhos voltavam para o mar alto lá pelas 13 horas... mas ele disse isso com um sorriso matreiro, logo acompanhado por mim.

E não deu outra... assim que o barco deu meia volta, meu novo amigo me alertou:

- Prepare sua máquina, vamos ter um belo espetáculo! Apontou para o horizonte. Eu, naturalmente, nada vi. Mas os olhos acostumados do pescador me sorriram e ele disse;

- Lá vem os golfinhos! Estão saindo agora.


Em seguida, alertou os demais turistas para que ficassem quietos. Seria a melhor maneira de manter os animais mais próximos do barco por mais tempo. O que se seguiu foi puro encantamento. Como ninguém subiu, continuei sozinha com o dono do barco que sussurrando em meu ouvido e apontando os lugares mais exatos com sua experiência, me permitiu antever onde os animais iriam aparecer e, portanto, tirar as melhores fotos. Cheguei a ter tempo de filmá-los, além das fotos e também de abandonar os apetrechos fotográficos para apenas admirar suas acrobacias. De brinde, como estava acima da linha direta do mar, pude ver, mais um pouco afastadas do barco, movimentos de tartarugas, aqui e ali, sempre sob a supervisão de tão gentil cavalheiro. Que presente!!!



Depois da visita de tão brilhantes e graciosas personagens marinhas, o barco parou e pudemos nos fartar com mergulhos com snorkel em pleno mar. Que coisa magnífica! Um mundo de encantamento e sedução. Eu já tinha visto, no dia anterior, um barco parado no mar com turistas nadando em volta. Mal sabia eu que seria uma dessas privilegiadas no dia seguinte.


Voltar desses passeios era garantir deliciosas visões em sonhos noturnos e o despertar visualizando peixes soltos no mar, como se fossem em um aquário gigantesco no interior da mente. Que maravilha! Depois de voltar ao Rio, acordei várias vezes com essa sensação pelo menos por uns 10 dias.




O sol tórrido era a única preocupação, mesmo para mim que adora o calor. Em dezembro é simplesmente escaldante e você não consegue transitar pela ilha sem muita proteção solar e tendo o corpo coberto por uma canga. Foi o que fiz, todo o tempo. Mesmo assim, voltei bem queimada, aliás, com uma cor belíssima.


Sair desse paraíso só mesmo com promessa de volta. E voltarei, estou bem certa, pois as sensações de descanso e paz nos marcam para sempre. Quem foi, sabe disso.

Ali, acompanhada de meu cicerone do mar, vi um belíssimo por-de-sol, de um recanto pouco conhecido pelos turistas, uma pedra a qual você chega, se embrenhando com cuidado pelas ruínas do forte. É preciso conhecer o caminho para chegar lá e ficar colada ao paredão para ver no ângulo certo.


Finalmente, na véspera de voltar, recebi meu último presente da natureza: estávamos em lua cheia. Eu queria ver a lua de uma das praias, já que a ilha não é iluminada a não ser em alguns pontos bem específicos, como o Bar do Cachorro, por exemplo. O pescador nativo prontificou-se a me levar e combinamos estar a postos logo depois da “escola”.

Assim que saí do centro cultural, lá estava ele a minha espera. Tomamos uma das vans e descemos no centro da cidade. De lá, fomos a pé. Achei estranho sermos os únicos. Pensei que seria óbvio que os visitantes quisessem ver a lua em praias, nos espaços magníficos da ilha, junto ao som natural do mar. Mas não: ou vão para o Bar do Cachorro ou talvez para a cama. O fato é que me vi completamente sozinha, na praia mais próxima do centro e, portanto, a mais accessível àquela hora da noite. Perguntei ao meu guia se as pessoas costumavam escolher outra praia. Ele apenas respondeu que não era hábito os turistas fazerem esse tipo de pedido. Ele mesmo não se lembrava de ter levado ninguém para esse tipo de passeio. Mas que eu ficasse tranqüila, a ilha era segura e ele estava comigo. Confesso que fiquei estarrecida. Como as pessoas, numa ilha paradisíaca como aquela, iriam preferir o Bar do Cachorro a curtir uma lua quase cheia enorme, refletida sobre a água, numa praia imensa, ao som do mar, sem luzes da cidade? Pois é... ninguém.

O guia postou-se no início da praia e me disse que eu poderia ficar quanto tempo quisesse. Ele estaria ali, a minha espera. Eu poderia caminhar sem susto pela areia, curtindo a lua como bem entendesse. Assim fiz e não me lembro de outro lugar ou outro momento em minha vida em que tivesse podido ficar entre o mar e a montanha, com o som das ondas calmas em meus ouvidos e a companhia daquela lua enorme, cheia de luz e de paz... esta foi a minha despedida dessa ilha colocada no meio do nada, nesse mundão dos meus deuses... uma ilha que fala por si mesma, por seu povo, por seu porte, por seu encantamento e aconchego.

Parti da ilha no dia seguinte. Na saída, ainda uma última delicadeza: ao acertar as contas com a dona da pensão, perguntei pela taxa extra por ter usado a cozinha do filho, incluindo o gás utilizado. A prestativa senhora apenas respondeu:

- Imagine, foi um prazer para nós. Eu nem sei como iria lhe cobrar isso! Que bobagem!

Não adiantou insistir. Notei que seria uma ofensa a sua hospitalidade. Agradeci, prometendo voltar. E, claro, como boa moça, não vou poder morrer sem cumprir a promessa...

sábado, 12 de novembro de 2011

FERNANDO DE NORONHA (1)


Andar pelas estradas da vida, sem eira nem beira, como quem não quer nada, querendo tudo. Foi o que me levou a Fernando de Noronha.

Tudo começou por causa de Dani, uma amiga que fora passar uma semana por lá com o marido. Veio literalmente enfeitiçada pela ilha. Não sabia descrevê-la, apenas dizia que eu teria de ir lá.

Fiquei com a informação na cabeça e marcar a passagem se deu sem que eu notasse. Caminhava para o consultório, algumas semanas depois e, quando me dei conta, estava dentro do loja da VARIG que existia perto do Copacabana Palace. Passava por lá no meu caminho e quando percebi, estava com a senha nas mãos. Ah, o inconsciente...

Já que estava ali, não me custava assuntar. Tinha milhas sobrando, a coisa era ver se havia voos para a época desejada, fazer a marcação e deixar a vida correr, se fosse o caso. Havia para quase oito meses depois, exatamente em pleno verão, consultório na baixa estação. Reservei as passagens e deixei os meses passarem tranquilamente. De vez em quando me lembrava das férias programadas.

Os meses passaram depressa, como acontece, principalmente, nas cidades grandes. Muito bulício, muitas coisas a fazer. Muito trabalho, felizmente. Mas dezembro chegou e com ele, o sol tórrido. Estávamos perto do Natal, época fantástica para sair da cidade e passar uns dias tranqüilos numa ilha qualquer.

Ilha qualquer? Eu não tinha a mínima idéia do encantamento que me esperava!!!

Naida, irmã da vida de anos e profunda conhecedora dos encantos da natureza brasileira, em suas viagens sem fim, me emprestou pés de pato, um snorkel e os óculos para mergulhos de superfície. Eu nunca tinha feito nenhum, mas ela me garantia que era só colocar o rosto na água que a natureza faria o resto, tal a sensação de encantamento que a vista sob a superfície me causaria. Enfiei os apetrechos na pequena mala, que só precisaria de roupas de banho, bermudas ou shorts, blusas de verão e, para conferir, um pequeno agasalho que só usei no avião.

Desembarquei na ilha, acolhida por uma espécie de “alfândega” para ingresso na natureza. O passaporte é uma taxa cobrada pelo governo federal para manutenção da ilha e também para limitar o número de turistas, com dia de chegada e partida, pois a ilha só suporta um número específico de visitantes por dia. Quanto mais tempo você fica, mais alta é a taxa, em progressão quase geométrica.

Uma boa medida é mesmo uma semana. Não é necessário mais do que isso para conhecer toda a ilha e curtir tudo o que se tem direito. Uma semana por vez, é claro, pois quem vai fica cativo do feitiço do lugar. Posso garantir isso aos amantes das belezas naturais, como eu.

Dani estava certíssima. Eu já estava encantada só no percurso da “alfândega” para a pensão. Quando fui, praticamente não havia hotéis ou eram mais do que caríssimos. Há um estímulo especial para que os visitantes fiquem em pousadas que são adaptações de antigas moradias do lugar. Assim, os nativos ganham seu sustento, diversificando atividades. As reservas tem de ser feitas antes da chegada e os donos das pensões nos vão buscar no aeroporto, assinando um termo de compromisso pela hospedagem. Se você não tem hospedagem previamente reservada, não entra.

Pois bem... lá estava eu, na Pensão da Tia Zete. Logo de saída a primeira delicadeza, tendo em vista minha dificuldade com a alimentação. A pensão oferecia o café da manhã e saí em busca de um lugar que me desse a alimentação adequada. Na época, não achei um lugar em que pudesse comer a meu modo por uma semana. Voltei para a pensão e a própria tia Zete me indicou supermercados e lugares onde poderia me alimentar com algo mais suave. Depois, imediatamente, mudou de idéia. Pediu que esperasse um minuto, embrenhou-se por dentro da pensão e voltou com uma chave. Colocou-a em minhas mãos e disse que pertencia à cozinha de seu filho, da casa quase ao lado. Eles estavam em Recife e eu poderia me servir da cozinha do casal para cozinhar minha própria comida, se quisesse. Melhor que isso, só se fosse igualzinho!


Nem sabia como agradecer, mas ela tratou o caso como a coisa mais natural do mundo. Então, eu mesma passei a fazer minha comidinha quentinha e gostosa a qualquer hora que chegasse, quando não quisesse comer na rua, tendo a chave da casa de seu filho nas mãos! Incrível.

Dali, me mandei para a aventura. E é aqui é que este conto empaca. Não dá para descrever. Não mesmo, sem as fotos que contem a história por si mesma. Na verdade, muitas vezes, elas são o texto, por cima e por dentro do mar:



Uma caminhada pela ilha de apenas 17 quilômetros foi feita, palmo a palmo, no decorrer da semana. Os dias foram exatamente iguais e totalmente diferentes, cada um. Descobri desde o primeiro momento que poderia fazer o que quisesse sozinha, entrando em uma ou duas excursões no máximo. O resto era só colocar o pé na estrada e andar. Os turistas começavam a aparecer nos passeios só depois das 9 horas. Se eu acordasse cedo, teria a ilha só para mim até essa hora, podendo caminhar sozinha pelas praias e recantos, aproveitando os sons da natureza sem o bulício das pessoas espantando os animais. Assim fiz, deixando que a paisagem, os animais e os sons naturais se misturassem comigo nas primeiras horas da manhã.




Depois, que aparecessem as pessoas, mas eu já tinha aproveitado boa parte do paraíso. Uma bolsa leve com o essencial e muita água me faziam voltar apenas ao entardecer.


O resto era curtição. Eu fui na época mais árida, sem flores e relva. E já achei linda!





De brinde, uma aula de ecologia, em plena medição rotineira de tartarugas por um cientista do IBAMA.



Na volta, um banho, uma boa comidinha e ir para o que comecei a chamar de “escola”, que começava exatamente às 20 horas, no centro cultural: um filme sobre a natureza da ilha e uma palestra de um dos pesquisadores do IBAMA. Naquele dia da foto da tartaruga, por coincidência, o palestrante era o mesmo das fotos acima.



Isso acabava às 22 horas. Depois disso, as vans nos levavam de volta à pensão ou... ao “Bar dos Cachorros” , assim chamado por estar perto da praia de mesmo nome, por conta dos inúmeros cachorros do lugar. Este bar era a única atividade noturna da cidade. Os turistas para lá se dirigiam para chopinhos, farrinhas e bagunças até a madrugada. Não tenho uma foto do bar, mas de um outro botequinho, onde se comia uma espécie de panqueca doce prá ninguém botar defeito. Só que todo mundo ia mesmo para o bar dos cachorros, que era a cara desse aí, só que na rua de baixo.


Para mim, o programa não estava combinando em nada com a proposta do lugar e, então, eu preferia mesmo me retirar, para acordar bem cedinho e recomeçar minhas excursões. Eu, que caminhara o dia todo, desde cedo, e disposta a aproveitar a ilha ao máximo, ia direto para a cama. Natural que já estivesse despertinha às 6 da manhã para mais uma aventura.

Esse desprendimento de excursões faz você viver melhor a cultura local. Você deixa de ser turista para entrar para a classe dos... “visitantes” . Aliás, fiz isso em todas as minhas viagens, quer no Brasil, quer no exterior. A vantagem é que você convive com as pessoas mais naturalmente e também com os lugares ficando mais ou menos de acordo com sua vontade, o que nem sempre é permitido a um simples turista que se coloca de passagem, geralmente, aos bandos. Nada contra quem prefere, mas esta minha opção me garantiu, sempre, umas vivências locais diferentes e interessantes.

No primeiro dia, por exemplo, andei tanto tanto tanto que, ao voltar para a pensão, na subida final e numa das inúmeras ladeiras, me senti completamente sem pernas. Esperei o primeiro ônibus e perguntei se passava perto da pensão. Foi quando descobri que havia só uma estrada, só uma linha, só dois ônibus: um indo e outro vindo. Não havia o que errar. Se você estiver na estrada, está no caminho certo, no decorrer dos únicos 17 quilômetros de extensão. Andei apenas dois pontos e, na hora de descer, ao pagar, ouvi a prenda:

- Por dois pontos? Como vou cobrar? Fica como carona! Bom descanso.

Coisas de cidade do interior!

Dali tive forças para atravessas a rua em busca de um dos únicos pontos de internet da cidade. Queria noticiar os amigos, dizendo que fizera boa viagem e estava tudo bem. Entrei e pedi uma ficha para conexão. Foi quando escutei uma deliciosa resposta:

- Chi, hoje o satélite está com preguiça, está tão lento que você vai gastar dinheiro à toa. Melhor voltar amanhã.

Pois é... que cidade grande faria isso?

Descobri bem depressa que o dinheiro local tinha uma peculiaridade. Quase tudo valia um “noronho”.

- Um “noronho”?

- É, dois reais... já notou que a nota traz a foto de nossa tartaruga marinha?


Não, eu não tinha notado, mas nunca mais me esqueci. E usei “noronhos” para cima e para baixo, durante toda a semana, completamente integrada ao jargão.


Numa das caminhadas, conheci um nativo. Um jovem pescador que logo se ofereceu para me levar para um bom mergulho no mar de dentro. Isso significa que você põe um snorkel, um pé de pato, óculos de proteção e praticamente caminha (a nado, naturalmente) por dentro do mar, com uma mão dada ao seu guia, olhando os peixes, com uma máquina à prova d’água na outra mão, completamente despreocupada de por onde está indo. Os nativos sabem muito bem os caminhos e levam você para ver as tartarugas, nadar atrás delas sem assustá-las,


ver pequenos filhotes de tubarões inofensivos e a mais variada fauna e flora marinha da região.




Quando ele me orientou com um gesto a olhar na superfície para ver onde estávamos, percebi que a praia estava a mais de um quilômetro de distância! Eu tinha nadado assim durante quase uma hora sem perceber! E mais: como voltar?

- Agora é fácil. Até aqui, eu tive de trazer você. Agora, a maré nos leva de volta!

Mas o que mais me chamou a atenção, neste passeio, foi que, ao sair da água, meu guia trazia, na mão supostamente livre, uma caixa vazia de suco, encontrada no mar. Eu tinha notado que, logo no início do passeio, ele a tinha colhido, mas não prestei mais atenção. A partir daí, no entanto, ele a levou por todo o percurso, uma das mãos ocupada comigo e a outra, levando o entulho até voltarmos para que ela fosse colocada numa cesta de lixo da praia. A conscientização dos moradores da ilha, no que se refere ao ecossistema é fantástica. Eles recolhem o lixo deixado pelos turistas onde quer que o encontrem e, sem uma palavra sequer, apenas o direcionam para as caixas de lixo locais. É mesmo incrível.

Mas está ficando longo demais. Conto o resto na semana que vem.

sábado, 5 de novembro de 2011

LEO


Já andei falando do tal anjo que me socorre nas horas mais inesperadas e também me apronta mil aventuras. Pois então, ele me apareceu para me tirar de um aperto que mal posso acreditar.

Tudo começou com um porteiro que tivemos, ou melhor, vigia da noite. Depois da aposentadoria do Geraldo, aquele tal do conto “O vigia”, muitos porteiros da noite rodaram pelo meu prédio. E um tal nordestino, cujo nome me esqueço, graças aos deuses, foi um deles.

Ocorre que o homem bebia. E muito. Dormia de roncar no sofá do fundo da portaria. E eu, que muitas vezes não tinha hora para chegar em casa, ficava presa do lado de fora, carro aberto, quase arrebentando a campainha para acordá-lo. Teve uma vez que precisei telefonar para um vizinho descer e abrir a porta para mim. Naquela época, tínhamos uma síndica muito condescendente. Vivia tendo pena do rapaz, tentando “ajeita-lo”. Descobri, mais tarde, que ele era parente de uma faxineira sua ou coisa assim e ela queria ajudar. Não tenho nada contra isso, pelo contrário, mas alcoolismo não é coisa que se ajeite colocando os moradores em risco. E conto por quê:

O homem era irritadiço. Além disso, mal educado e bem grosseiro, mesmo quando não estava bêbado. O edifício estava passando por um período complicado. Na verdade, faltava um mês para a assembléia geral e a síndica não queria convocar uma extraordinária para tratar de assuntos financeiros. Eu e mais outros moradores insistimos um pouco nisso, mas sem efeito. A maioria se acomodou. Bem, o fato é que o homem acumulava dois cargos: era faxineiro de dia e acumulava as folgas do vigia da noite, que eram duas, não me lembro mais por quê.

Um dia, meio alto, ele já tinha ameaçado uma moradora com uma vassoura. Eu fui com a moradora à síndica, dizendo que o menino podia ter jeito, mas não podia chegar a esse ponto. Ele estava ficando sem limites! A síndica benevolente, pediu que esperássemos pela assembléia. Não sei o que ela tinha para protege-lo, mas, temporariamente, aceitamos.

Na noite seguinte, cheguei tarde. Pelo vidro da porta, vi que ele estava estatelado no sofá, dormindo. Toquei várias vezes a campainha, bati com a chave na porta de vidro. Nada. A síndica acabara de se mudar para o prédio ao lado e eu não sabia qual era o seu número de telefone. Eram duas horas da manhã. Não iria acordar meu vizinho, outra vez. Já estava sem graça. Não tinha outros números para ligar e na rua não queria ficar. Bati continuamente e com força até que ele, estonteante, acordou. Levantou-se para abrir a porta da garagem. Entrei com o carro, bem irritada. Não era possível, deveria repreende-lo. Naquele dia e para sempre aprendi que não se repreende, não se fala, não se olha para quem está bêbado. Mas tive de aprender...

-(nome),você não pode chegar ao cúmulo de dormir e me deixar presa na rua!

O homem enfureceu-se e avançou em minha direção, dizendo mil palavrões e levantando a mão. Disse que tinha uma peixeira e ia enfiar em mim. Ele ia mesmo me bater! Não sei que forças ou que proteção eu tive. Só sei que coloquei o dedo em riste e apenas disse:

- Não se atreva a avançar. Você não sabe com quem está falando.

E entrei imediatamente no elevador que, felizmente, estava no térreo! Meu coração batia. Estava em pânico. Eu não sabia nem como eu tinha reagido, pois o que eu tinha dito não teria valor algum, diante de um homem naquele estado. Acho que ele reteve o passo apenas porque não esperava uma reação e eu aproveitara para escafeder-me pelo elevador, antes que ele, bamboleante, pudesse me alcançar.

Entrei em casa achando que iria ter um troço. Tranquei todas as portas com todas as trancas que eu tinha, com todos os ferrolhos. Mantive a sensação de estar sendo posta em perigo durante o resto de toda a noite. Não conseguia me imaginar saindo de casa nunca mais!

Esperei dar as 7 horas da manhã e liguei por interfone para o sobrinho da síndica, que também morava no prédio. Expliquei o caso em prantos e disse que precisava falar imediatamente com ela. Disse que não arredaria pé de casa. Sentia-me em perigo. Ele avisou a tia e desceu para minha casa para me fazer companhia. Ficou preocupado, pois eu estava mesmo em pânico. Conversamos um pouco, me acalmei. A tal síndica era casada com um advogado e foi ele quem me ligou, em seguida.

- Não saia de casa. Vamos falar com ele agora, dizendo que fizemos queixa na delegacia. Que ele fique muito atento e reze para que nada aconteça a você, pois qualquer coisa que aconteça, ele será o primeiro suspeito. Isso o assustará.

- Eu exijo que ele seja mandado embora! Me sinto em perigo. Não precisa ser por justa causa para ele não se enfurecer mais ainda e me pegar numa esquina qualquer. Mas não arredo pé da minha casa enquanto esse cara estiver trabalhando aqui! Tudo isso em prantos, você pode imaginar.

- Sim, já disse para (nome da síndica) que ele precisa ser afastado, imediatamente, sem cumprir aviso prévio. Ele estava muito bêbado, diz que não se lembra de ter feito isso.

- Seja como for, para mim, chega. Com assembléia ou sem, preciso chegar e sair de casa em segurança. Nem eu nem qualquer pessoa do prédio merece espancar a porta, à noite, para poder entrar em sua casa.


Eu tremia, não tinha como me controlar. Nunca tinha sido exposta a uma situação de tão tremenda ameaça.

- O homem ameaçou me furar com uma peixeira. Onde vocês acharam um sujeito dessa laia para contratar como funcionário? Vocês ignoraram que ele quase avançou com uma vassoura em outro morador, outro dia. É muito fácil por não morarem mais aqui. Vocês não estão correndo o risco que nós estamos!

Eu não costumava agir assim, mas estava mesmo em pânico. Não tinha coragem de sair de casa. Olhei pela janela, ele estava lá embaixo, de papo com os colegas. Soube, depois, que contava vantagem, metido a dono do mundo.

Fiquei em casa, avisei à Universidade que não iria naquele dia. Precisava me acalmar.

Às duas horas da tarde, o interfone tocou.

- O Sr. Leonardo está aqui.

- Pode subir.


Eu até tinha me esquecido. Era o corretor de seguros do meu carro. Tínhamos ficado amigos. Na primeira vez que o vira, ele era o mensageiro de uma firma de seguros e trazia os contratos. Olhei-o de terno, tão compenetrado que havia dito: você vai subir, menino, terá sua própria firma.

- Tomara, luto por isso.

E foi o que aconteceu. Em três anos, ele estava bancando a corretagem. Hoje, tem sua própria firma, com credenciais e tudo. Brincamos sobre o primeiro encontro, cada vez que nos falamos. Muitas vezes, nos primeiros anos de firma, era ele mesmo que vinha trazer os contratos, tomar um café, curtirmos seu sucesso. Hoje em dia, é tudo automático, via internet, não se visitam mais os clientes. Modernidades... mas, naquela época, ele ainda vinha em casa.

Abri a porta para o Leo. De terno, pasta, compenetrado. Entrou e me viu consternada. Tomamos um café juntos e foi ótimo conversar com ele. Teve a paciência de ficar por mais tempo, me fazendo companhia. Me disse que planejava vir no final da semana, mas deu na veneta e decidiu, de repente, vir naquele dia mesmo e resolver logo esse contrato. Que bom, pois acabou por me ajudar e me confortar. Na verdade, até então, eu não estava tendo idéia de que isso já era uma artimanha bem montada do meu anjo da guarda...

Leo saiu. Mais uma hora ou duas, um dos porteiros tocou a campainha. Queria que eu repensasse o caso do tal funcionário, que ele tinha perdido a cabeça, mas que estava muito arrependido. Não precisava ter chamado um advogado, ele não faria mais nada contra mim.

Foi aí que reconheci o anjo. Leo estava vestido de tal forma e ficara tanto tempo comigo que todos pensaram que ele era um a advogado e que eu estava tomando providências jurídicas. Sorri por dentro e, imediatamente, agradeci ao meu protetor de asas. Por fora, mantive a pose:

- Sim, tomei as providências necessárias. Não sei o que ele contou para vocês, mas sei que andou se gabando. O que ele fez foi imperdoável (e vomitei todos os palavrões que ouvi – pode imaginar a cara do porteiro me ouvindo repetir os palavrões?) e não dá para deixar como está a não ser que ele suma daqui e eu não o veja nem de longe, nem na outra esquina.

- Pode deixar, ele vai sumir daqui sim senhora. Vou dizer isso a ele agora mesmo.

- Então tá, vou deixar minhas providências em suspenso, mas darei prosseguimento caso o veja em qualquer momento ou me sinta ameaçada.


Liguei para o Leo. Contei o que se tinha passado. Rimos, juntos, ao telefone. Ele ficou feliz por ter ajudado alguém que tinha torcido tanto por ele. Prontificou-se a dar uma de advogado, de novo, se precisasse. Não foi preciso. Mas ter amigos assim, enfeita a vida! Leo é uma parte linda de minhas aventuras. Alguém que sempre faz sorrir meu coração. Um menino que se transformou em homem, casou-se, teve filhos, criou sua própria empresa, e soube preservar a alma de quem sabe viver a vida e conservar seus principais valores, entre eles, o da amizade.

Nunca mais vi o tal homem. Mas não me atrevia a sair à noite. Um mês depois, soube que ele tinha pegado o dinheiro da demissão e voltado para o nordeste. Fiz uma noitada por conta e a vida voltou ao normal.

Volta e meia, sempre agradeço ao tal anjo que me apronta aventuras e me resguarda de intempéries. E agradeço ao Leo, por ter sido o mensageiro de minha segurança.

sábado, 29 de outubro de 2011

CONTO UNIVERSAL


Encontrar o desamor - desarmá-lo.

(setembro de 1976)

domingo, 23 de outubro de 2011

UMA FLOR NO DESERTO


Noite dessas voltava a pé para casa. Costumo caminhar tanto na ida quanto na volta, já que apenas umas 15 quadras separam meu apto do consultório. Pois então: geralmente, venho pela Nossa Senhora de Copacabana, principalmente à noite, pois é mais iluminada que a Barata Ribeiro. Mas eram apenas em torno de 21 horas e algo me puxava para cruzar a rua, pegar a Barata Ribeiro e vencer o resto do percurso por aliMeni, passando pela estação do metrô.

Não discuto com esses impulsos. Se existem, devem ser ouvidos. E foi assim que vinha caminhando pensativa, já esquecida de meu desvio de rota. Tudo por aqui é tão familiar que já nem me dou conta.

Na frente da estação do metrô da Cardeal Arco Verde, tem uma casa de lanches. Para ser franca, na minha distração, nunca me tinha dado conta disso. Mas naquela noite, um vulto sentado à beira da lanchonete, esticou a mão pedindo uns trocados para um lanche.

Não dou dinheiro. Não adianta. Nem que tenha de me desviar do caminho para comprar alguma coisa. Olhei para o menino. Perguntei se queria lanchar. Disse que sim e levantou-se. Só então vi que o menino não era uma criança, mas um rapazinho. Olhos penetrantes, olhando de frente, mas algo não desmentia a suavidade de sua expressão. Convidei-o a entrar na lanchonete comigo. Arredou pé:

- Não posso entrar ali, os seguranças não deixam.

Minha cidadania transbordou pelos poros.

- É ruim de ele te barrar comigo. Vem.

Entrei enfrentando os preconceitos sociais. Um segurança se aproximou. Apenas olhei para ele e murmurei:

- Ele está comigo.

Entendo o cuidado de quem foi contratado para isso. Entendo que há excessos. Só não entendo porque isso me machuca tanto. Diferenças sociais exacerbadas.

A lanchonete é dessas de uma rede extensa e bem conhecida, que serve através de pedidos no balcão, pagamos, pegamos as bandejas e nos dirigimos às mesas.

Pedi que o jovem escolhesse o que queria.

- Qualquer coisa, tia, a senhora escolhe.

- Não. Pode escolher. Um sanduíche e um suco a sua vontade.

Pediu um suco de laranja e um sanduíche de queijo. Eu não quis nada. Mas estaria ali para acompanhá-lo. Não sei por que pedi que se sentasse à mesa. Eu levaria o lanche para lá tão logo estivesse pronto. Havia deixado, descuidadamente, minha bolsa na cadeira da mesa. A lanchonete estava vazia àquela hora. Havia apenas uma mesa preenchida, bem mais ao canto. Não me toquei que o menino poderia pegar a bolsa e sair correndo. Esta idéia só me surgiu quando, pelo espelho, vi a imagem do menino sentado e, na cadeira ao lado, minha bolsa.

Seria muito indelicado eu ir pegar a bolsa. Agüentei firme, observando o jovem pelo espelho. Qualquer ato suspeito, eu estaria ali, atenta para dar o alarme ao segurança. Mas o menino não esboçava qualquer tentativa suspeita. Apenas havia me obedecido e sentara-se, a minha espera.

Levei a bandeja e coloquei a sua frente. Ele pegou o guardanapo com cuidado e separou uma das faces do sanduiche. Experimentou o suco. Agradeceu com a cabeça.

A imagem de vê-lo educadamente alimentar-se, comendo com a boca fechada, olhar tranqüilo e doce em nada combinava com suas vestes de rua. Quem seria essa figurinha que me parecia ter saído de um conto de livro?

- Onde você mora?

- Perto da Cruz Vermelha, no centro da cidade.

- Com seus pais?

- Não, moro sozinho. Tenho esse barraco faz dois meses. Antes, morava na rua.

- Quantos anos você tem?

- Dezoito.

- Mora na rua desde quando?

- Desde os quatorze.

- Por que saiu de casa?

- Meu pai morreu. Levou um tiro da polícia. Era traficante, sabe... sei que estava errado, mas era um pai muito bom para mim. Jogava futebol comigo, até me botou no time da escola. Ele também era muito carinhoso com todos nós. Sei que ele estava errado, eu sei, mas eu amava muito meu pai mesmo assim.

- Mas você saiu de casa porque seu pai morreu? Não entendi... e sua mãe?

- Ah, foi por isso. Eu gosto muito da minha mãe, mas ela se juntou com outro traficante. Esse não é bom, tratava mal a gente. É um homem muito bruto, sem educação. Não sei como minha mãe se juntou com ele. Fugi de casa porque não agüentava esse homem. Ele me batia e me tratava muito mal. Daí, fugi. Peguei minha certidão de nascimento e fugi.

- Por que você se preocupou com sua certidão de nascimento?

- Ora, é a única maneira que eu tenho para provar que sou de bem. Meu documento. E ele vale tudo para mim. Agora que sou de maior vou tirar minha identidade e poder trabalhar sem o atravessador, direto na cooperativa.

- Cooperativa?

- É. Dos catadores de papel. Até agora eu cato, vendo para um que é da cooperativa e ele é que fica com a grana maior. Agora eu vou poder levar direto pra cooperativa. Mesmo assim, consegui juntar cento e cinquenta e com isso comprei o meu barraco. Já pensou quando eu puder trabalhar sozinho?

- Seu barraco?

- É. Custou centro e cinqüenta. Agora já tenho onde dormir. Lá até cozinho! Às vezes, faço até bife. E melhor ainda - como os barracos são de madeira e perto da Cruz Vermelha, eles vão derrubar tudo, pois periga incendiar a qualquer momento. Mas vão dar casa de tijolos lá em Mangaratiba para quem tiver documentos. Por isso é que vou tirar minha identidade logo. Eu quero a casa. Vou buscar minha mãe para morar comigo. Deus é bom. Nunca me desamparou.


“Deus nunca me desamparou”? Um menino que viveu jogado pelas ruas durante cinco anos me dizia que era muito agradecido a Deus! "Ele nunca o havia desamparado"! Decididamente, aquele jovem me desconcertava. Costumamos reclamar da vida por tão pouco...

- E como é sua vida agora?

- Venho para cá, trabalho catando papel, entrego para o tal da cooperativa e fico por aqui, até voltar para casa.

- E antes, como era?

- Era igual, só que tinha de ficar na rua. Quando o tempo está bom, tudo bem, não tem importância. Mas quando chove e faz frio é muito ruim.

- O que era pior na vida da rua para você?

- Chover e fazer frio. O resto era bom. Só sinto muita saudade da minha mãe. A comida dela dá muita saudade. As coisas também, ir à escola, jogar bola de tarde, dormir quentinho. Era muito bom.

- Você vê sua mãe de vez em quando?

- Nunca mais vi, desde o dia que fugi.

- E como sabe dela?

- Por minhas irmãs. Uma mora na Mangueira, casada, tem filhos. Às vezes, passo os fins de semana lá. O marido dela é legal. A outra mora numa casa de verdade, no Meier. Também tem filhos. Visito de vez em quando e pergunto da minha mãe.

- Sabe se sua mãe pergunta por você?

- Não sei, não pergunto. Mas vou buscar para morar comigo, logo que a prefeitura der notícias da minha casa de verdade. Mas não o homem que vive com ela. Só ela.

- Posso te dar um conselho? Você ouve e decide.

- Claro! Se Deus mandou a senhora hoje...


O menino me desconcertava a cada passo. Eu procurava conversar e saber das coisas como se fossem as mais naturais do mundo. Mas as respostas dele me desconcertavam...

- Primeiro você tira a identidade, depois você põe a casa no seu nome e só depois procura a sua mãe. Se você diz que esse homem não é bom, é possível que ele ainda tome a casa de você. Faça isso só quando estiver em segurança! E mesmo assim, se sua mãe escolheu viver com ele, você sabe que ela pode não querer ir com você sem ele.

- Bom, se for para ele ir, então ela não vai. Mas vou tentar, assim mesmo. Sinto muitas saudades dela. Vou então cuidar da casa no meu nome. Viu como Deus sempre chega na hora certa? Eu não tinha pensado nisso! Agradeço sempre a ele antes de dormir, todos os dias.

- De que religião você é?

- Não tenho religião, tia, mas Deus sabe que eu sei que ele existe e está sempre cuidando de mim.


Pronto, essa foi a tacada final. Eu tinha um verdadeiro herói, diante de mim. Pequeno, franzino, de olhos profundos, educado. Eu quase não acreditava no que estava vendo.

- Como era sua vida nas ruas, com seus amigos? Você tem amigos, não é?

- Tenho, eles são legais, mas tem coisas que eu fico sozinho.

- Como assim?

- Eles querem que eu experimente. Nunca experimentei. Sei que faz mal. Meu pai morreu por causa disso. Meu padrasto é mau homem e fugi de casa por causa disso. Não quero essa vida para mim. Assim, às vezes, tenho de agüentar o que eles dizem, que eu não tenho coragem, que sou frouxo porque não quero experimentar. Mas eu não ligo. Agora que tenho casa, vou para casa e agradeço a Deus por saber que isso não é para mim.


Será que eu estava vivendo o mundo real ou seria sonho?

- Tem outros meninos como você, que não querem se viciar? Usei o termo de propósito.

- Tem, mas são poucos. Vivem por aí, como eu. Prefiro me afastar. Agora o que eu quero é trabalhar, ganhar meu dinheiro e ter minha casa.

- E os estudos?

- Parei na quarta série. Até do futebol do colégio tive de sair. E não tem escola para quem está na rua. Eles forçam a gente a voltar para casa e para lá eu não volto, não adianta. Assim, fiquei sem escola.

- Você gostaria de estudar?

- Eu não sei. Acho que sim. Não pensei nisso. Quero trabalhar direto na cooperativa e ter minha casa primeiro, trazer minha mãe. Depois eu penso.

- Você quer tirar sua carteira amanhã? Podemos combinar para tirar o retrato.

- Não precisa. Tenho dinheiro guardado para o retrato. Vou ver isso essa semana. Não quero que derrubem o meu barraco comigo sem o documento. Sei que a certidão de nascimento não serve. Eu preciso de um número de identidade para preencher o papel.


Eu queria acompanhar a vida desse menino. No fundo, queria ver o seu esforço e seu sucesso. Queria ajuda-lo. Os meninos ficam por ali e, na minha insensatez, achei que o encontraria de novo. Assim, nem perguntei como encontrá-lo. Pensei que o veria nos dias seguintes, por ali, como os demais meninos, que fazem ponto nas ruas.

Nos despedimos. Ele me agradeceu muito pelo jantar. Assim, já iria direto para casa. Estava feliz, pois sabia que sua vida iria mudar.

Doce ingenuidade. Que certeza tinha esse menino de que reconquistaria a mãe, depois de cinco anos de afastamento, sem nunca ter procurado por ele. Seria provável? Minha mente duvidava, meu coração torcia para que sim. Vim assim para casa, também certa de que o veria mais vezes, talvez no dia seguinte. Até lá, planejaria como ajuda-lo.

Passei no mesmo horário muitas vezes, durante uns dois meses, pelo mesmo caminho. Mal virava a esquina que dava para a Praça Cardeal Arco Verde e meus olhos buscavam esperançosos pelo vulto sentado à beira da lanchonete. Mas... em vão. Nunca mais o vi... meu pequeno príncipe das ruas...