domingo, 29 de setembro de 2013

MAKTUB




24 de setembro. O dia amanheceu com cheirinho de festa. Na verdade, com cheirinho de aniversário. Há 39 anos atrás, eu defendia minha tese de doutorado.

Embora eu esteja aposentada, sempre me lembro desta data com uma especial alegria interior. Não pelo sucesso da conquista. É mais do que isso. A tese definiu minha carreira profissional, uma carreira que atropelou meu caminho, literalmente. Coisas da vida.

Eu era professora de Cultura Clássica e Linguística e, como tudo que fiz profissionalmente, adorava o que fazia. Resolvi cursar o doutorado, por conta de conseguir uma promoção para professor adjunto e, depois, a ascensão natural para titular, na universidade particular, onde eu trabalhava.

Uma vez no doutorado, busquei disciplinas que me aproximassem da área médica, estudos que sempre me chamaram a atenção. Escolhi, entre a lista complexa de disciplinas - para quem está entrando, tudo parece muito complexo, depois, simplifica... - uma que parecia muito especial: "Linguística e Patologias da Fala", ministrada pelo  professor Jürgen Heye, um alemão recém domiciliado no Brasil, falando ainda com um pouco de sotaque e, às vezes, confundindo "ele fez" com "ele fiz". Mas a disciplina era boa e me convenci de que começava o doutorado com o pé direito.

Todas as disciplinas exigiam uma monografia final, que deveria ser entregue em um mês. Estávamos no final do ano e como eu era amiga de uma fonoaudióloga que tinha feito o curso de Letras comigo, foi a ela que recorri, para conseguir fazer meu levantamento de dados.

- Cacilda, você teria algum paciente com alguma patologia que eu pudesse pesquisar, assistindo a algumas sessões de atendimento?

- Claro que tenho. Um afásico. É um caso muito interessante! Podemos combinar.

- Ótimo! Caiu como uma luva, adorei estudar afasia. Quando posso ir? Só tenho um mês para dar conta de duas monografias! Preciso assistir a três sessões pelo menos!

- Semana que vem. Você vem, assiste, sem problemas. Vou ligar para a mãe dele e dou retorno.

Enquanto esperava resposta, passei dois dias enfiada em livros sobre afasias. Mas o retorno foi desalentador:

- Eulalia, a mãe do jovem vai entrar de férias e vai viajar com ele. Sem chance.

- O que eu faço? O que você tem como alternativa?

- Estive pensando... por que você não faz sobre surdez?

- Mas surdez não é patologia!

- Não tenho outra sugestão. Fale com seu orientador.

Me despenquei para a Universidade. Começo de dezembro, Heye já tinha viajado para visitar a família na Alemanha. Falar com ele, só em março!

Entrei em parafuso. Eu tinha de encontrar uma patologia para estudar e um profissional que me permitisse assistir a atendimentos, o que é algo muito fora do comum. Acho que "vou de surdo" mesmo e seja o que os deuses quiserem.

A proposta era visitar uma escola de surdos em Niterói, onde havia uma professora que Cacilda conhecia.

E foi assim, observando o atendimento dado na escola que, felizmente, só entraria em férias no meio de dezembro, que fiz meu primeiro trabalho sobre educação de surdos. Estávamos em 1979. Estes estudos eram completamente desconhecidos do meio acadêmico, ou melhor, dos profissionais de estudos linguísticos, nas universidades do Estado do Rio de Janeiro.

Entreguei o trabalho na universidade, com o coração meio apertado, pois eu sabia muito bem que, embora tivesse o peso de uma originalidade e a descoberta sobre uma inumerável lista de falhas educacionais que poderiam servir de base para muitos estudos, o trabalho não tinha nada  a ver com o título da disciplina. Eu era a única caloura da turma e, como agravante,  todos  os outros, já veteranos, tinham lá os seus contatos e entregaram objetos de estudos já conhecidos. A desvantagem era evidente. Seja o que os deuses quiserem.

Eles quiseram.

Em março, quando fui olhar minhas notas no quadro de avisos, fiquei aliviada com o conceito A da outra disciplina, mas... não havia nota à frente do meu nome em "Patologias Verbais". Apenas uma anotação: "procurar o professor da disciplina".

Pronto, estava ferrada. Ele não aceitou meu trabalho!

Procurei o Heye. Estava, como sempre, calmamente sentado em sua sala, rodeado de livros, fumando tranquilamente seu cachimbo.

Entrei com o coração aos pulos. Ele me olhou por cima dos óculos:

- Senta aqui, não se preocupe, quero falar com você.

Sentei-me em cócegas. O que havia de errado no meu trabalho? No fundo, eu sabia: não era um trabalho sobre patologias! Mas eu tinha de defender minha nota até o fim. Afinal, eu não estava estudando com bolsa, pois continuava a trabalhar na universidade e cada disciplina era cursada com um sacrifício inexplicável. Dar aulas, trabalhar e ser dona de casa era uma tarefa tripla difícil de cumprir. E, se eu parasse de trabalhar para ter direito à bolsa de estudos, com certeza, uma universidade particular não iria guardar minha vaga por quatro anos... não tinha jeito. Era levar assim, sem chance de dizer que "não dá". E dispensar uma tarde para uma disciplina, estudar prá caramba e perder o crédito era algo fora das minhas cogitações.

Foi com esse pensamento que eu dava tratos às bolas para defender meus créditos. Talvez estivesse um pouco pálida, não sei. Nervosa, era óbvio de se notar.

Mas o Heye sorriu. Abriu uma gaveta, puxou meu trabalho e o dirigiu a mim:

- Estou no Brasil há pouco tempo, mas conheço sua língua o suficiente para entender o jogo de palavras que você vai ouvir: "Isto dá um tesão". Vá para casa, releia com calma e depois venha conversar comigo.

Fiquei olhando para aquele homem grande, meio louro, meio viking, com pouco sotaque, sorrindo para mim. Me senti completamente afogada em um monte de argumentos desnecessários e evidentemente, sem palavras. Estava bem claro que eu tinha tirado conceito A, que fora aprovada... e que ainda estava com uma proposta de tese nas mãos!

Dali, após uma leitura atenta do que eu tinha feito, me convenci de que era um bom tema para minha tese: original, inédito, tudo por fazer. Mas não achei, em todo o Rio de Janeiro, alguém que pudesse me orientar. Ninguém, dentre os professores daqui tinha sequer lido qualquer coisa sobre surdez! Voltei ao Heye:

- Pois é... você me cutucou e agora não acho orientador. Tem de ser você!

- Mas eu não sei nada sobre surdez! Sequer vi um surdo em toda a minha vida!

Nessas idas e vindas, já nos tínhamos encontrado várias vezes e tínhamos desenvolvido uma relação mais próxima. Heye não era apenas um professor atento... era um ser humano incrível. Eu vinha percebendo isso em cada encontro, o suficiente para poder brincar:

- É... quem mandou  plantar a semente? Agora, rega!

Do jeito que pôde, ele regou. Só me ajudou com a metodologia da pesquisa, como combinamos. O resto, ficou por minha conta.

O fato é que, o que seria apenas para me dar um certificado que me garantisse uma promoção acadêmica na tal universidade onde eu trabalhava, transformou-se em um projeto de vida. 

Acabei desprezando o título de titular da cadeira, que consegui, após dois anos. Minha cabeça já estava em outro mundo e me impulsionou a fazer um concurso para uma universidade pública, em busca de melhores condições de trabalho para desenvolver meu novo projeto de vida acadêmica: saí da tal universidade, entrei para uma universidade pública e pude construir um programa de projetos e pesquisas e de atendimento à comunidade Surda que se estendeu a nível nacional - o "Programa Surdez: Educação, Saúde e Trabalho".

Passei os 20 anos seguintes de minha vida acadêmica, complementando os estudos que vinha fazendo, desde 1979. Desenvolvi projetos com especial atenção à alfabetização de crianças surdas, a convênios de atendimento da comunidade no hospital universitário e dedicação à inserção de surdos no mercado de trabalho. 

Entre as principais atividades, juntei meus esforços à luta de vários segmentos da sociedade no sentido de conseguir que a Língua de Sinais fosse uma língua reconhecida em âmbito nacional. Este último projeto foi um dos mais árduos e marcou minha carreira de modo especial, por escrever o parecer técnico que serviu de respaldo para a aprovação da Lei 10.436, de 24 de abril de 2002, com o reconhecimento da Línguas de Sinais como a Língua Oficial da Pessoa Surda, no Brasil.

Feito isso, me aposentei, em 2003, completamente recompensada por uma vida acadêmica cheia de muito trabalho, lutas, esforços, realizações em artigos, livros e trabalhos compensadores. Não foi fácil, mas foi muito bom!

É por isso que cada dia 24 de setembro, soa como aniversário para mim.E me lembro com muita gratidão e carinho, um carinho muito especial mesmo, de Jürgen Heye, que já está tomando seus vinhos com os deuses (que Baco o contemple com os melhores!).

Tudo porque a mãe de um jovem afásico, resolveu suspender as sessões de fonoaudiologia para viajar de férias para o norte do país...

sábado, 21 de setembro de 2013

DESEJOS



Duas semanas em Paris. Sonho acalentado, planejado, realizado... duas semanas inteirinhas, como quem mora lá, sem atropelos, sem a correria de quem vai por "dias curtos" e haver um monte de passeios a fazer. Nada disso.

Morar em um lugar por duas semanas faz toda diferença. Com todo respeito a quem pensa diferente, para mim, é muito melhor do que sair correndo para visitar cinco países em vinte dias, no frenesi de que você tem de engolir o mundo, como se ele fosse acabar depois de suas férias.

Nada de hotel. Alugar um pequeno apto, o suficiente para se sentir em casa. Não é apenas mais econômico, é algo como ter uma chave da cidade, representada pela chave nova em seu chaveiro antigo. Faz toda diferença! É um lugar "seu" para se voltar todos os dias.

Sem hora para acordar, sem ter de sair como um(a) doido(a) atrás do tempo. Sem hora para dormir, porque não existe um passeio no dia seguinte que começa às 8. Nada de dizer que "descanso na volta", pois é como assassinar a cidade com olhos que não têm tempo para "ver".

Duas semanas. Fazer de cada dia de sonho, o descanso da alma e do coração. Deixar que o físico diga quando você deve se levantar e ele que diga quando você deve voltar para casa... as noites custam a chegar e dá para caminhar quanto quiser. Voltar de madrugada, com a alma sorrindo em festa. Sair sem olhar para o relógio.

O que fazer amanhã? Amanhã eu vejo, depois de acordar...

Nada de atropelos e, sobretudo, dar lugar a antigos desejos.

Estive em Paris, ou melhor, estivemos em Paris, pela primeira vez, em 1975. Três dias. Não sei por que, ao passar pelo Café de la Paix (talvez por causa do livro de francês do colégio?), tive ímpetos de entrar. Sentar lá, pedir um chá, em frente ao Opera de Paris e sonhar por quantos séculos aquela cidade é um dos centros do mundo.

- Não temos tempo para isso, deixa para outra vez.

Voltamos a Paris em 1977. Três dias.

- Não temos tempo para isso, deixa para outra vez.

E foi assim, nas décadas de setenta, oitenta, noventa, sempre por dois ou três dias. 

Estive lá, novamente, em 2001, por conta de um congresso, mas uma greve da companhia aérea me privou de chegar uma semana antes e tive de voltar logo depois. Seria a primeira vez que eu poderia fazer o que quisesse, sem ninguém a interferir nos meus passos. Mas ainda não deu para me sentir em Paris, pois o congresso foi em Caen, o que me valeu uma visita a outro sonho: o Mont de Saint Michel. Mas isso é outra história, talvez outro conto. Passei, na volta, por Paris e fiquei só dois dias na cidade. Dois dias. Não deu nem para sentir seu aroma...

Agora, 38 anos depois da primeira vez, eu tinha a liberdade de não escolher fazer a volta à Europa em vinte dias. Afinal, eu não estava querendo competir com "A volta ao mundo em oitenta dias", pois, finalmente, não havia nenhuma competição com o tempo.

Passar pelo Café de la Paix, entrar e pedir um chá. Sem pressa, sem contornos, sem acompanhamentos desnecessários. Eu não queria bolo, biscoitos, saladas, crepes. Eu queria um chá. Uma chá de menta, aquecido como estava o meu coração.

No bulício da cidade grande, sentada em frente ao Opera, na antevéspera de voltar para o Brasil, eu me sentia plena e pronta para brindar duas semanas gloriosas, revivendo passo a passo, algumas de tantas aventuras de livros, que fazem de Paris uma das cidades de meu coração. 

Eu estava ali, 38 anos depois, saudável, feliz, sem pressa, olhar perdido no Opera... na verdade... olhar perdido para dentro de mim, para dentro de meu desejo enfim realizado.

Teve mais do que sabor de festa. Teve o sabor sensual de pertencer a Paris.

Após duas semanas de tantas aventuras - de me deitar na grama e olhar a Torre Eiffel, esperando anoitecer...  de brincar horas sem fim com o GPS do Louvre, procurando obras, detalhes...  de  assistir a um concerto na Sainte Chapelle, com os vitrais à meia luz, nesse ambiente que enfeitiça olhos e ouvidos...  de visitar museus que encantam como o olhar hipnótico de uma sábia serpente...  de andar por castelos e jardins ensolarados...  de fazer Tai Chi Chuan no Jardin des Tuileries (!!!)...  de voltar à Notre Dame e buscar, no "ponto zero" de Paris, a referência do mundo...  de esperar o por-do-sol nas Pirâmides do Louvre...   de banhar minha alma com esse verão glorioso e gentil, que me carregou, muitas vezes sem rumo, por essa cidade de sonhos.

Desejos... pequenos grandes desejos, carinhosa e cuidadosamente enfim realizados, num brinde à vida, mostrando que as escolhas são muito pessoais, divinas, incontestáveis... e fantasticamente inesquecíveis.

Café de la Paix. 

O chá mais caro e mais feliz que tomei em toda a minha vida!