sábado, 25 de agosto de 2012

O MIMO



Hoje vim brincando com meu chaveirinho para casa. Uso-o há tantos anos que já perdi a conta. E ele tem uma história tão interessante que nem sei como não me lembrei de contar até hoje...

Eu tinha cerca de 15 anos. Era minha estreia em teatro: “Morte e Vida Severina”. Um arranjo especial de alunos universitários.

Eu estava me sentindo o máximo indo ver uma peça apresentada por universitários. Tinha atazanado a paciência de minha mãe e conseguido que ela me levasse nem sei como, pois ela nunca fora chegada a essas coisas. Mas o importante é que eu estava lá, coração extasiado para a minha estreia cultural.

Espalhados pelo chão do salão, jovens adolescente, universitários e eu! Bulício de começo de festa, eu quieta lá na frente, minha mãe bem lá atrás, nas cadeiras confortáveis do final do salão, conversando com comadres.

Um paquera. Sutil, mas persistente. E eu adorava paquerar. Se a peça não prestasse, já tinha valido a noite. Um olhar para cá, um sorriso para lá. Ai, que bom! Mas ele não se deu por satisfeito e veio falar comigo. Topei o papo e, mal começamos uma conversa mais solta, lá veio a mãe, fiscal.

Ocorre que o rapaz a conhecia, pois ela trabalhava lá, nessa mesma universidade, como assistente de biblioteca. O rapaz cursava biologia e a cumprimentou, gentil. Ficou admirado ao saber que eu era sua filha e perguntou a ela onde tinha escondido esse tesourinho por tanto tempo. Galanteio certo para a adolescente certa. Fora o perfil interessante, o que mais me chamava a atenção era a inteligência e gentileza. E... principalmente... ele não se ter encolhido diante da presença da fiscal. Pelo contrário, sentou-se a meu lado e, na presença da matrona, continuou o papo como se nada tivesse acontecido.

Papo vai, papo vem, não me lembro como, começamos a falar de coisas de que gostávamos. E ele acabou sabendo que eu colecionava chaveiros.

- Verdade? Pois vou achar um chaveiro para lhe oferecer como mimo. Quem sabe, ao usa-lo, eu possa estar presente também em seu coração.

Um mimo. A palavra desceu doce pelos meus ouvidos. Talvez tenha sido por isso que nunca mais a esqueci: “um mimo”.

Vimos a peça lado a lado, sob o olhar fiscalizante e sem escrúpulos de minha mãe. As mães, naquela época, se davam ao luxo de não respeitarem a privacidade das filhas. Mas parece que ele não estava nem aí para a intromissão, bem seguro do que ele parecia querer conquistar: a minha confiança.

Adorei a peça, e muito mais a companhia. Descobri o quanto gostava de teatro e o quanto gostava de ter alguém para discutir sobre isso no final. Ele também foi encantador nesse sentido, mesmo sob o olhar sonolento de minha mãe, que queria ir logo embora.

Nos despedimos a seis mãos (conto com as de minha mãe, que não arredou pé) e um beijo na testa do qual me lembro até hoje. Não houve chance de trocarmos telefones, mas ele me disse que estava me devendo o chaveiro e que logo que o tivesse achado, avisaria minha mãe para entrega-lo pessoalmente a mim. Acenei sorridente com a cabeça, garantindo, assim, meu consentimento. Dormi feliz, com minha estreia cultural e com a companhia encontrada.

Eu estava de férias e só voltaria para o internato em março. Estávamos às vésperas do Natal e eu imaginava que teria tempo de sobra para conhece-lo melhor.

Os dias passaram. Duas semanas depois, minha mãe chegou em casa com um chaveiro. Muito lindo. “Um mimo”!

- Ele queria marcar um encontro com você, mas eu disse que não. Está muito criança para se encontrar com rapazes mais velhos.

- Ele insistiu?

- Insistiu. Mas quem cuida de você sou eu e decidi que isso vai ficar por aqui. Ainda fiz muito de lhe trazer o chaveiro.

- A senhora (naquele tempo, a gente chamava nossas mães de “senhora”.) não tem esse direito! E ele é até seu conhecido! Isso não se faz!

- Não adianta, você não tem como encontra-lo e nem ele vai chegar até você, pois eu disse que você me obedeceria.

Fiquei enfurecida! Ela sabia que não era verdade, mas ele não me conhecia o suficiente para saber que, se chegasse até mim, nada me impediria de encontrar-me com ele. Mas como ele poderia adivinhar? E como nós poderíamos adivinhar que haveria essa barreira entre nós?

Peguei o chaveiro. Quatro pedras azuis como águas marinhas e outra, também azul, na base. Segundo minha mãe, ele dissera que eram para combinar com os meus olhos.

Nunca mais nos vimos. Usei o chaveiro até que comecei a namorar firme, um ano depois. Deixei-o, enfim, guardado delicadamente junto com os outros da coleção. Coisas de adolescente. Isso passa. Talvez não tivesse passado, se não tivesse sido cortado. Mas nunca saberei.

Casei-me, vivi a vida, separei-me. Dois ou três anos depois, mexendo em minhas coisas, resolvi me desfazer do desnecessário. Dei minha coleção de chaveiros, mas... guardei comigo aquele. Aliás, não guardei – passei a usa-lo. Era mesmo muito bonito e, apesar de ser apenas uma lembrança de adolescência, algo nele encantava meus olhos e meu coração.

Um dia, resolvi tirar a correntinha. Tinha medo de que arrebentasse e eu o perdesse. Todos que viam o chaveiro o achavam delicado e bonitinho:

- Combina com você!

- É... combina.

O problema é que minha memória tinha dado um tilti. Eu não conseguia me lembrar do nome do rapaz, de jeito nenhum. Por anos a fio, olhava para o chaveiro e me dizia:

- Puxa vida, você foi tão gentil comigo, como posso não me lembrar do seu nome?

Nada. Mente vazia. Lembranças de adolescente. Era apenas um chaveiro bonito.

Um dia, há dois anos, estava com as chaves na mão e senti algo se desprender e cair no chão. Olhei para o chaveiro. Uma das pedrinhas tinha-se desprendido. A expressão saiu num impulso:

- Bernardo! O que está acontecendo com você!

Depois de tantos anos, a lembrança do nome veio como em mágica, na perda dessa primeira pedra. E a figura doce e amável de Bernardo voltou a minha mente como por encanto. Fiquei muito impressionada.

Procurei a pedrinha por toda a volta no chão da rua. Não achei, de jeito nenhum.

Naquela semana, uma a uma, as outras quatro pedras se desprenderam, sem que eu me desse conta. E, a cada uma, uma dor invisível no peito tomava conta de mim. Uma dor sem explicação, como se algo fugisse, sem que eu pudesse reter.

Bernardo.

Quatro pedras caíram e ficou apenas a da ponta, a quinta. Pensei que algo poderia, enfim, ter acontecido com Bernardo. Mas jamais terei como saber.

Prefiro imaginar que esse singelo encontro marcou minha vida, simbolizada nessa quinta pedra, como uma estrela que permanece brilhante e pura, desvestida das quatro primeiras – a quinta essência.

Bernardo.

Enfim, lembrei-me de seu nome. E da delicadeza de homens que, como você, enfeitaram a minha vida.

E, se você virou uma estrela, tenho certeza de que se transformou numa linda estrela azul.

sábado, 18 de agosto de 2012

A SAGA



Sempre assim. Não faz diferença de quem esteja no poder, que regime comanda o país, que partido... o conteúdo é sempre o mesmo. Fui professora universitária por 30 anos. A saga é sempre a mesma. E não são só das Universidades Federais. São as públicas, em geral. Nossa Estadual está lutando há anos, no vermelho de suas forças...

Na juventude, eu era mais aguerrida. Confiava mais na minha forma mais revolucionária de ser. Mas o que vale mesmo não é o jeito e, sim, o objetivo: tudo mudando, a educação também muda. Há sonhos, há lutas. Políticas, em geral, setoriais, como as nossas. Assembléias. Greves.

Aliás, no meu ponto de vista, professor NUNCA fez greve. É só jeito de falar. Greve pára tudo e, quando volta, não se repõe trabalho. Professor sempre repôs as aulas. Nunca fez greve, de fato...

Mas eu estive lá, nas “diretas já”, no asfalto da Avenida Presidente Vargas, uniformizada “comme Il faut”,



acreditando nas mudanças da educação. Que o país mudaria, todos sabíamos, para o bem e para o mal... mas meu “peito professor” clamava por um povo que pudesse pensar melhor por si próprio e, embora isso atuasse diretamente em todas as outras benfeitorias intelectuais, técnicas e científicas, por tabela faria um povo mais consciente de si mesmo.

Por acreditar profundamente em tudo isso, eu estive nas greves, nas “diretas já”, nos discursos de formatura, inquietantemente guerreira, como paraninfa, como patrona, como convidada especial, não deixando a oportunidade escapar:



Eu estava lá porque sempre acreditei que teríamos voz forte suficiente para promover as mudanças de base.

Eu estive lá.

E, embora veja que a luta continua (e continuará sempre pois professor “de alma” é povo teimoso, irrequieto, idealista, consciente), vez por outra me pego pensativa e, confesso... desalentada.

Ésquilo, trágico grego, na peça “Agamemnon”, coloca suas palavras na voz do coro:

“A educação forma um povo fácil de governar, difícil de dominar, impossível de escravizar.”

Para todos os efeitos, se a função é massificar, vamos combinar que estão fazendo um ótimo trabalho há décadas... não importa quem esteja no poder, a que partido ou regime pertençam... estão fazendo um trabalho para ninguém "botar defeito". Às vezes penso que não pode ficar pior do que está. Mas pode. Ainda há tempo. Sempre há, mas urge a mudança.

Se você que me lê, está aborrecido(a) com as chamadas “greves” de professores, pare e pense um pouco. Não estamos lutando em vão. E nem é só por salário, embora o nosso seja uma vergonha. Lutamos por mais do que isso. Lutamos por nós todos, lutamos por você, lutamos por nosso povo.

E creia: professor “de alma” é assim. Luta sempre, cada um a seu jeito, de todas as formas, tentando alcançar a conscientização, por todos os meios. Agora, meu jeito é assim.

Postado está!

domingo, 12 de agosto de 2012

SOU DESSAS



A vida vai tecendo os anos e vai fazendo com que se acentuem ou amenizem características e se delineiem, de várias formas, atitudes e comportamentos.

No geral, a vista embaça os defeitos, mas, se temos bons lastros - e bons amigos que nos ajudem a percebê-los!-, eles vão-se resvalando aqui e ali, se ajeitando, se arrumando e se amenizando, conforme nossas vontades. Mas estão lá, para nos deixarem sempre com a atenção voltada para a escalada interior.

As qualidades aparecem fácil, são vistas com brilho e, quando o brilho é saudável, enfeita a vida interna, nos empurrando para frente. Essas são fáceis de ver.

No que se refere ao espírito contemplativo, acho que agucei meus olhos, meus ouvidos e minha mente. Gosto de passear sem pressa, sem ter de chegar correndo e sair depressa. E descobri, principalmente através do meu gosto por fotografar, que esta marca, com o passar do tempo, mais aguçou o meu coração. De brinde, ajudou a trabalhar o defeito de minha pressa impaciente por querer as coisas para ontem.

Sou dessas que espera que o sol fique no meio da pirâmide, pelo simples gosto de vê-lo ali,



Que espera o banco ficar vazio para uma foto desejada,



Que o grupo de turistas deixe o espaço vazio para a foto sair limpa,








Que se dá tempo de buscar o detalhe,






de esperar o momento





ou que alguém componha a foto para enfeita-la a meu modo.




Aprendi, com a arte da paciência ao fotografar, muitas das paciências da minha vida.

Não preciso sair correndo para entrar primeiro no avião – o meu lugar está marcado, posso entrar por último, se quiser; não preciso disputar o lugar no trânsito para um apressadinho qualquer. A diferença de chegar ao mesmo lugar será de uns cinco minutinhos, no máximo, se eu não forçar a passagem. O brinde é que não me estresso.

Descobri, com o tempo, que só é preciso lutar para sair na frente comigo mesma, com meus defeitos, com minha busca constante de aperfeiçoamento.

Fora isso, sou dessas que, com a idade, aprendeu que é preciso ter calma para chegar longe.

Outro dia, vi um cartum muito interessante: a tartaruga incitava o coelho a uma corrida para ver quem chegava em casa primeiro. O coelho, muito esperto e contando com suas pernas, aceitou prontamente. A tartaruga simplesmente se encolheu dentro de seu casco e disse:

- Ganhei.

Aprendi que é preciso correr para dentro de si mesmo. O resto são percursos, cotidiano, convivência e experiências a serem adquiridas.



Obs.: Lugares das fotos: 1, 6 e 7 - Buenos Aires; 2 e 12-  Paris; 3, 4 e 5 - Lisboa; 8, 9, 10 e 13 - Rio de Janeiro; 11 - Paradise Point, EUA.

sábado, 4 de agosto de 2012

METÁFORAS


Sempre achei que o excesso de brilho empana a vida, ofusca a visão, não dá espaço para a convivência saudável, delimita o prazer franco e puro das experiências.


O brilho, em si, saudável e completo, permite a nitidez da imagem, enfeita os contornos, aguça o contraste harmonioso entre sombra e luz.






Mas, às vezes, muito raramente, o brilho precisa falar por si próprio e, se colocado em seus devidos termos, encanta a paisagem e revigora o espírito.



Levei algum tempo para entender isso, em meus passos pelos caminhos da vida.