sábado, 12 de setembro de 2020

AS ÁRVORES FALAM?

 



Caminhando pela Av. Atlântica, como manda o figurino a quem ficou tantos dias bem quietinha em casa, me deparei com essas árvores, quase em posição tombada, praticamente rastejando para o mar.

Será que apenas querem buscar a pureza de suas ondas, ou também tentam deixar para trás as energias avassaladoras da sordidez humana? Não, não posso ser tão cruel. Há milhares e milhares de pessoas de bem nesse planeta. Mas a metáfora povoou minha mente...

Nunca duvidei que as plantas falassem. Tive uma Renda Portuguesa belíssima e frondosa que morreu um mês depois de meu canário, que costumava praticamente morar nela, em todo o tempo em que ficava solto em casa. Eu não tinha o que fazer para agradá-la. Entrou em um luto irreversível e secou em um mês. Talvez hoje, conhecendo melhor as energias, eu conseguisse dissuadi-la de que a vida é bela e perdas não são perdas... mas eu era menos ligada nessas coisas naquela época.

Tive uma avenca enorme, que cobria toda a minha mesinha da sala e ficava zangada comigo se não recebesse um bom dia,  passando minhas mãos por ela, de manhã. Murchava amuada, até que lhe desse atenção. Aceitava que não a regasse todos os dias, mas passar a mão era indispensável. Também não gostava de algumas pessoas que entravam em minha casa. Fazia a mesma coisa até a pessoa ir embora...

Mas minha crença na linguagem das plantas começou bem antes disso.

Nas décadas de oitenta e noventa, fui várias vezes à Alemanha. Aproveitava minha estadia para visitar cidades vizinhas. Ia e voltava no mesmo dia, com o maior conforto e praticidade, organização e desempenho das cidades europeias, em todos os níveis, não só nos transportes. Um dia, seremos assim. Não podemos nos esquecer de que a Europa está séculos a nossa frente e que, na Idade Média, era tão corrupta quanto nosso país é hoje. Não adianta atropelar e dizer que não tem jeito. E cabe-nos agir, quando nos couber a competência. Desde a Idade Média, a Europa teve de amadurecer muito, entre Reis, Estados e Religiões. Já pensaram nisso? Igualzinho! Então, há esperança.

Mas voltemos às árvores. Naquela manhã de 1990, o mapa me atraiu, mesmo sem ter nada de especial na descrição da cidade: Bad Homburg. Eu estava hospedada em Frankfurt, cidade que já conhecia bem, então, ficava num vai e volta, sem pressa.  Seria meia hora de metrô. Por que não? Foi fácil achar em minhas anotações de viagem: 27 de setembro - Tomei um vinho gostosíssimo no almoço da Hertie (uma das grandes lojas alemãs), comi o pedaço da torta de chocolate mais gostoso de toda a minha vida, numa doçaria fundada em 1886. Consigo me lembrar do sabor até hoje, eu, que nem sou assim tão chegada a comer...

Conheci lugares preciosos por toda a Alemanha desse jeitinho mesmo, mas... por que Bad Homburg? Nada me atraia especialmente para lá. Nada da descrição me chamava a atenção especificamente! Mas logo que cheguei, ao visitar um pequeno jardim, descobri, como que por encanto, o motivo de minha ida: aquela árvore!

Um Cedro do Líbano. Foi quando eu descobri que não tinha ido “porque era perto”. Eu tinha ido porque ali estava a árvore da minha vida!

A imagem me hipnotizou logo na entrada. Como usava filmadora, na época, e por praticidade não tinha levado também a câmera (seria muito peso), não tenho sua foto. Mas foi fácil achar pela busca na internet: Bad Homburg – Cedro do Líbano em Schlossgarten.



Eu não sei quanto tempo fiquei ali. Só sei que, a não ser para almoçar e comer aquela torta deliciosa e inesquecível, que ficava na pequena rua principal, não conheci mais nada da cidade. Eu tinha ido ali por causa daquela árvore!

Impossível descrever momentos místicos...

No final da tarde, não havia outro jeito senão ir embora. Fui me aproximando devagar daquela imagem forte e, ao mesmo tempo, tão doce e pura. Não tinha sequer pensado em tocá-la, mas ela me atraiu como um ímã. Não sei se ela me abraçou ou foi o contrário. Um abraço quase sem tocá-la, tão enlevado e envolvente. Mas... na palma de minha mão direita se soltou um pedacinho de seu tronco. Minúsculo. De pura e generosa doação que só as mães podem ter. Eu não sabia como tinha se soltado, eu quase não encostara nela, tão respeitoso fora meu ato.



Mas estava lá, em minha mão. Senti a generosidade da Terra, de seus cuidados curadores com seus filhos. Essa árvore-mãe generosa, dando uma parte de si mesma para sua filha embevecida. Nunca senti vontade de voltar para visita-la, pois sua imagem se fez presente em meu coração para sempre.

E nunca mais fui a mesma pessoa, desde então.

 


Referências: Foto do Cedro do Jardim de Schlosspark – Bad Homburg

https://www.google.com/search?rlz=1C1SQJL_pt-BRBR823BR823&source=univ&tbm=isch&q=Bad+Homburg+Cedro+do+L%C3%ADbano&sa=X&ved=2ahUKEwjwoqec5NbrAhWiB9QKHd2NCxoQ7Al6BAgKEB4&biw=1796&bih=903#imgrc=RoDn8yUIJ82itM

https://www.monumentaltrees.com/es/fotos/72586/


sábado, 22 de agosto de 2020

UMA GOTA


Depois de dois meses, ainda achei uma gota de sangue escondida num canto do meu corredor. Explico: no meio dessa pandemia, arranjei um jeito de levar um tremendo susto. Escorreguei do "nada", dentro de casa, bati com a cabeça e sangrei muito. Muito.

Vou pular o que se seguiu. Transformaria esse conto em novela e não é esse o meu objetivo.

Conto, apenas, que caí, me machuquei bastante e custei a me recuperar. Mas acabou tudo bem, felizmente.

De sequela, apesar de dois meses passados, ainda tenho um edema em andamento de cura e, de vantagem, o carinho sempre pronto de amigos queridos que, mesmo de longe, me deram toda assistência possível nessas circunstâncias, além de suporte e, principalmente, a atenção necessária para passar por esse sufoco.

Mas ficou o trauma, claro, pois ninguém é de ferro. Eu, pelo menos, sou bem de carne e osso, assinado e comprovado pelos resquícios do acidente, como  essa pequena gota de sangue teimosa, assanhada, se expondo, despudorada, no meu corredor. 

Custei a conseguir limpar a casa toda, pois onde quer que eu tenha ido, na hora do acidente, carimbei a casa com o resultado do sangramento. Duas semanas depois, mais restabelecida, fiz uma limpeza do chão, buscando os resquícios do acidente. Mas, até hoje, encontro gotas aqui e ali. 

Ontem, ao achar essa preciosidade histórica no meu corredor, me lembrei de filmes de suspense, de detetives com suas lentes, procurando digitais e, principalmente, resquícios vivos. Pois este está lá, acusando que houve sangue neste apartamento.

Brinquei com a ideia, imaginando quantas coisas deixamos como rastros, em nossas vidas. 

Se mexessem nas minhas gavetas, encontrariam, por certo, uma fonte de muitas investigações: uma caixinha com um anel e uma flor, por exemplo. Mas já escrevi o conto “O anel e a flor”, então, esse seria fácil de desvendar. Passeio, no entanto, minha mente pelas coisas não tão decifráveis e sorrio... Como alguém interessado reconstruiria o romance, o drama e o suspense de minha vida, só pelas pistas deixadas nas estantes e nas gavetas? Do jeito que tenho minhas coisas, um trequinho jogado no canto de minha mesa, com certeza, não está ali por acaso. Não sou do tipo acumulador de coisas, muito pelo contrário. E vivo refazendo limpezas para jogar “excessos” fora, doar, etc. Mas, se você encontrar um trequinho ali, naquele canto, não estará por acaso. Tenha certeza de que, se está ali, está por uma razão. Sorrio novamente... e me lembro das coisas que tenho e o que podem inspirar a quem não conhece a minha história... 

Tento olhar em volta, como se fosse uma desconhecida... abro minha imaginação para a imaginação das pessoas. E invento histórias absurdas para coisas simples. De fato, os interessados teriam muito com que se divertir. 

Volto minha atenção para a pequena gota de sangue do corredor, desafiadora de uma história agora desvendada.

Basta uma gota para um investigador atento. Uma gota. 

Como basta uma mensagem esquecida, um pequeno pedaço de papel rasgado, um número de telefone, uma fatura atirada no fundo de uma gaveta para desvendar tanta corrupção que temos tido oportunidade de testemunhar. Bastaria uma atitude, nem precisam de lupa, tão óbvios são os traços deixados em cada corrupção. Bastaria vontade de limpar o mal feito, limpar o fruto de nossa indignação diante dos fatos que nos ofendem e nos aviltam, como uma desonra a nossa crença de cidadãos. Sempre há uma gota esquecida como rastro de um crime contra esta nossa cidadania devastada. Uma gota de fel, muitas vezes empurrada com a barriga por interesses políticos os mais diversos, em vez de usarem logo um bom pano de chão, para uma limpeza completa. Não fazem isso quando lhes interessa? 

Observo minha gota inocente no canto do corredor, resultado do crime de uma distração de momento, com resultados catastróficos, mas sem causar mal a não ser a mim mesma. 

Apenas uma gota, que cuidadosamente busco limpar com respeito de boa cidadã, no convívio simples das coisas que compõem nosso cotidiano.

 

 


sábado, 8 de agosto de 2020

APRENDI




Nesta pandemia (pandemônio para muitos) tive tempo suficiente para me dar conta de que aprendi muitas coisas.

A alguns meses de completar 70 anos, percebi, sobretudo, que estava vivendo muito pouco para mim mesma e em excesso para o cotidiano que me engolia. Tenho certeza de que o mesmo deve estar acontecendo com muitas pessoas. Não é um privilégio meu. Parece óbvio, mas, se algum item servir para você, quem sabe, também faça você repensar em algumas coisas.

Aprendi que, quieta, no silêncio do isolamento, o aprendizado se torna, muitas vezes, mais perene. Eu tinha me esquecido disso, embora tenha feito, no passado, algumas reclusões espontâneas, mas acho que não foi o suficiente para ter aprendido tanto ou, quem sabe, a sabedoria da idade me fez mais esperta e consciente.

Então, nesta reclusão que também é uma escolha consciente - embora irrefutável pelas circunstância - aprendi melhor, aproveitando as vantagens do isolamento.

Aprendi que certas dores físicas que a velhice nos traz são inevitáveis, mas que temos o direito de evitar ou saber cuidar melhor das dores emocionais.

Aprendi que há, de verdade, pessoas que realmente se preocupam comigo. Muito mais do que eu imaginava! E sou muito grata a elas e à vida por isso. Eu já sabia que tinha amigos de verdade. Isso eu não aprendi, mas aprendi quais, de fato, são meus melhores amigos.

Aprendi que tenho tempo para sorrir para o meu espelho e não apenas para as pessoas. Preciso fazer mais isso. Na minha idade, é uma descoberta de ouro! Com essa descoberta, aprendi que as dores da alma são para serem, primeiro, vividas, depois digeridas e transmutadas para que não apaguem o sorriso interior.

Aprendi a me dar tempo de voltar a ler pelo menos um pouquinho todos os dias, em vez de engolir um livro todo, num final de semana, por falta de tempo. Assim, aprendi que chegou a hora de trabalhar menos e respirar mais.

Aprendi que é melhor, muito melhor comer em casa do que na rua e que cozinhar não dá tanto trabalho quanto parece.

Aprendi a varrer a casa logo de manhã, enquanto a poeira está assentada... e passei a fazer isso também com meus problemas.

Aprendi a voltar a ouvir música, enquanto limpo a casa ou cozinho.

Aprendi a planejar cada dia, logo que acordo, só para ficar mais divertido ter de mudar o roteiro mil vezes, no decorrer das horas.

Aprendi, sobretudo, que me divirto muito comigo mesma e isso é incrível.

Eu sabia que as pessoas não devem ser “consertadas”, mas a novidade é que aprendi que, se eu tenho de “consertar” alguma coisa em mim mesma, é preciso ter meu coração como mestre e não pessoas ou circunstâncias. Eu já sabia disso, mas tinha me esquecido e foi bom me lembrar. De brinde, aprendi que não cabe apenas a mim aceitar as pessoas como elas são: a recíproca também é verdadeira.

De repente, percebi que foram precisos mais de 100 dias para me dar conta de que existe uma fila enorme de coisas que aprendi, mas principalmente, aprendi que a vida é bela justamente porque é para ser vivida por dentro e não em decorrência da pandemia ou do pandemônio de coisas ou de pessoas que nos cercam.