sábado, 22 de agosto de 2020

UMA GOTA


Depois de dois meses, ainda achei uma gota de sangue escondida num canto do meu corredor. Explico: no meio dessa pandemia, arranjei um jeito de levar um tremendo susto. Escorreguei do "nada", dentro de casa, bati com a cabeça e sangrei muito. Muito.

Vou pular o que se seguiu. Transformaria esse conto em novela e não é esse o meu objetivo.

Conto, apenas, que caí, me machuquei bastante e custei a me recuperar. Mas acabou tudo bem, felizmente.

De sequela, apesar de dois meses passados, ainda tenho um edema em andamento de cura e, de vantagem, o carinho sempre pronto de amigos queridos que, mesmo de longe, me deram toda assistência possível nessas circunstâncias, além de suporte e, principalmente, a atenção necessária para passar por esse sufoco.

Mas ficou o trauma, claro, pois ninguém é de ferro. Eu, pelo menos, sou bem de carne e osso, assinado e comprovado pelos resquícios do acidente, como  essa pequena gota de sangue teimosa, assanhada, se expondo, despudorada, no meu corredor. 

Custei a conseguir limpar a casa toda, pois onde quer que eu tenha ido, na hora do acidente, carimbei a casa com o resultado do sangramento. Duas semanas depois, mais restabelecida, fiz uma limpeza do chão, buscando os resquícios do acidente. Mas, até hoje, encontro gotas aqui e ali. 

Ontem, ao achar essa preciosidade histórica no meu corredor, me lembrei de filmes de suspense, de detetives com suas lentes, procurando digitais e, principalmente, resquícios vivos. Pois este está lá, acusando que houve sangue neste apartamento.

Brinquei com a ideia, imaginando quantas coisas deixamos como rastros, em nossas vidas. 

Se mexessem nas minhas gavetas, encontrariam, por certo, uma fonte de muitas investigações: uma caixinha com um anel e uma flor, por exemplo. Mas já escrevi o conto “O anel e a flor”, então, esse seria fácil de desvendar. Passeio, no entanto, minha mente pelas coisas não tão decifráveis e sorrio... Como alguém interessado reconstruiria o romance, o drama e o suspense de minha vida, só pelas pistas deixadas nas estantes e nas gavetas? Do jeito que tenho minhas coisas, um trequinho jogado no canto de minha mesa, com certeza, não está ali por acaso. Não sou do tipo acumulador de coisas, muito pelo contrário. E vivo refazendo limpezas para jogar “excessos” fora, doar, etc. Mas, se você encontrar um trequinho ali, naquele canto, não estará por acaso. Tenha certeza de que, se está ali, está por uma razão. Sorrio novamente... e me lembro das coisas que tenho e o que podem inspirar a quem não conhece a minha história... 

Tento olhar em volta, como se fosse uma desconhecida... abro minha imaginação para a imaginação das pessoas. E invento histórias absurdas para coisas simples. De fato, os interessados teriam muito com que se divertir. 

Volto minha atenção para a pequena gota de sangue do corredor, desafiadora de uma história agora desvendada.

Basta uma gota para um investigador atento. Uma gota. 

Como basta uma mensagem esquecida, um pequeno pedaço de papel rasgado, um número de telefone, uma fatura atirada no fundo de uma gaveta para desvendar tanta corrupção que temos tido oportunidade de testemunhar. Bastaria uma atitude, nem precisam de lupa, tão óbvios são os traços deixados em cada corrupção. Bastaria vontade de limpar o mal feito, limpar o fruto de nossa indignação diante dos fatos que nos ofendem e nos aviltam, como uma desonra a nossa crença de cidadãos. Sempre há uma gota esquecida como rastro de um crime contra esta nossa cidadania devastada. Uma gota de fel, muitas vezes empurrada com a barriga por interesses políticos os mais diversos, em vez de usarem logo um bom pano de chão, para uma limpeza completa. Não fazem isso quando lhes interessa? 

Observo minha gota inocente no canto do corredor, resultado do crime de uma distração de momento, com resultados catastróficos, mas sem causar mal a não ser a mim mesma. 

Apenas uma gota, que cuidadosamente busco limpar com respeito de boa cidadã, no convívio simples das coisas que compõem nosso cotidiano.

 

 


7 comentários:

Miriam disse...

Os sinais, as mensagens que deixamos escapar aqui e ali, procuramos, por cuidado, por respeito, a nós mesmos e aos outros, limpar são nossas histórias.
Já os traços da corrupção, parece que os autores das histórias, nem se preocupam mais em limpar! Elas se sobrepõem quase que "naturalmente"...
Mas o Universo no seu tempo, tratará de limpa-las, uma a uma!
Bela analogia!!

Anônimo disse...

Bom que está se recuperando!

Sobre a vontade de encontrar, lembrei da história do homem que procurava as chaves do carro dentro de casa porque se fosse procurar lá fora, onde havia perdido, não iria encontrar porque estava muito escuro. :-)

Marcelo disse...

Lindo, Eulália! Gratidão por compartilhar conosco. Ótima reflexão.

Unknown disse...

Afilhada preocupada à parte (apesar de nos falarmos com frequência não sabia do acidente...), parabéns. Seu texto tem um ritmo incrível, prende o leitor até o fim numa leitura acelerada, porém não menos degustada. Tenho lido vários livros de contos e
crônicas nas pausas do trabalho nesta pandemia (de Sergio Sant'Anna a Ruth Manus). Obrigada pela deliciosa pausa de hoje. Beijos

Unknown disse...

Perfeito...um belíssimo texto.. gratidão por compartilhar...juntas ,para sempre!!!

Daniela Souza disse...

pois é... e quantas e quantas gotas carregamos nas nossas histórias de vida!!!

João Carlos disse...

A gota, segunda versão.
Caramba... que aflição.
Gota e corrupção.
Que literária comparação.
Impressionante a sua determinação.
Mesmo sozinha, alcançou a recuperação.
Belo conto.
Deu à gota um literário tratamento.
Queria muito que vc me desse uma gota
... de sua verve, que nunca se esgota.
Bjs