sexta-feira, 25 de julho de 2014

JOTA


Eu não me lembro muito bem quando e como o conheci. Sei que era um cachorro de rua e que adotou meus amigos Dani e André como donos. Isso mesmo. Pelo que sei, foi ele que os adotou. Conquistou-os aos poucos, cercando a casa... ops... um apto tranquilo e simpático em um andar térreo de um bairro afastado do centro.

Fui visitá-los algumas vezes, mas não me lembro muito bem do Jota lá. Só sei que ele já existia como membro da família pois, quando eles estavam procurando um apto por aqui, umas das preocupações era, exatamente, onde o Jota ficaria, se seria um lugar confortável, etc.

Muitas coisas aconteceram entre mim e Jota. Mas o que me chamava muita atenção é que ele me entendia. Conto como descobri.

Quando Dani e André se mudaram para perto, a principal preocupação era privar Jota do estresse da mudança. Ofereci-me super feliz para ficar com ele o dia todo, se quisessem. O problema era ele não se estressar e o casal poder cuidar da bagunça que é sair de um lugar e arrumar tudo em outro, num dia só. André trouxe Jota bem cedo, me deu um monte de pacotes e tigelas com ração, água, biscoitos para cachorro, ossos e brinquedos. Disse-me para não me preocupar com a angústia do bichinho, quando ele saísse, pois era natural. Aliás, não tinha mesmo outro jeito.

André saiu e foi um sofrimento só. Aliás, um sofrimento a dois. Jota não queria osso, não queria biscoitos, não queria nada. Só queria arranhar a porta de serviço, desesperado, pois fora por ali que André se fora. Para sempre?

Tentei me colocar no lugar dele. Para um cão de rua abandonado, dois abandonos, seria demais. Por mais carinhosa que eu fosse, seus "pais" não estavam ali! Tentei de tudo.Nada funcionou. Então, sentei-me no chão da área de serviço, bem perto dele e fiquei bem quietinha. Deixei-o ganir bastante, pois não tinha mesmo o que fazer. A caixa de biscoitos à mão e também a dos ossos não chamavam sua atenção. Sequer sua bolinha favorita. Ficamos assim por uma meia hora, até que ele se desse conta de minha presença e expectativa. Lembrei-me de Tim, o cachorro de minha família, em minha infância, que tivera sempre tanta paciência comigo. Mentalmente, não sei por que, pedi sua ajuda e fiquei ali, exercitando minha espera.

Valeu a pena. Aos poucos, Jota se cansou. Aquietou-se e eu resolvi fazer o que ele mais gostava: pegar sua coleira para darmos um passeio. E foi se distraindo com as novidades de uma nova rua, pois não conhecia Copacabana, que Jota se animou um pouquinho. Afinal, ele era cão de rua, não era?

Mas as horas passam muito lentas, quando a gente deseja que alguém não sofra. E sei que Jota estava estressado com a ausência do casal. Inventei um banho numa loja de animais. Jota ficou lindo e cheiroso, pronto para entrar na casa nova. Mas acho que não ajudou muito no seu estresse. Ver mais pessoas desconhecidas o assustou. Resolvi voltar para casa e, finalmente, depois de minutos que passavam como horas, chegamos ao final do dia. Jota andava pelo apto de lá para cá, completamente angustiado.

Não queria comer, não queria brincar. Só encontrei uma saída. Sentei-me a seu lado e falei de igual para igual, alguma coisa parecida com isso:

 - Jota, meu querido, eu sei. Você está triste. Mas André já vem te buscar. Não podemos fazer nada. O jeito é esperar.

Não sei se foram as palavras, mas... com certeza, foi a emoção, a entoação, o carinho, o amor. Ele olhou para mim com  aquele olhar que só os cães tem. Deitou-se, choramingou um pouquinho. Eu me levantei, peguei um livro e vim me sentar a seu lado. Ficamos assim, quietinhos, por mais ou menos meia hora, comigo coçando ligeiramente suas costas. Eu tinha certeza de que ele tinha entendido.

De repente, levantou-se de ímpeto, se jogou contra a porta. Alguns minutos depois, ouvi a porta do elevador se abrindo, a campainha tocou. Era André. Como bom cão, ele pressentira a chegada do dono.

De  qualquer forma, sei que alguma coisa em Jota o ligou a mim, naquela meia hora. Eu senti. Foi um tênue, mas significativo elo de confiança. Dali por diante, quando eu ia visitá-los, era uma festa só.

Mas minha amizade com Jota só se concretizou, verdadeiramente, pelo inominável privilégio de tomar conta dele, quando o casal viajava. Minha função era visitá-lo todos os dias, encher o pote de ração, trocar a água e fazer uma festinha. Mas a festinha acabava sempre sendo uma volta pelo bairro, o que ambos fazíamos com muita alegria e aventura.

Lembro-me especialmente de um dia em que Jota achou um osso de frango na rua. Foi uma briga de foice, pois eu tinha ouvido falar que osso de galinha pode ser muito perigoso para cães, por conta de suas pontiagudas farpas que podem ferir o aparelho digestivo. Agarrei-me ao osso em sua boca e ficamos ambos, ali, imóveis. Ele não largava sua presa e eu, tampouco... não largava o osso.

Felizmente, aqui no Rio, você pode sair de roxo com bolinhas amarelas que ninguém olha para você. Assim, os passantes não ligavam a mínima para essa contenda entre humano e cachorro. Na verdade, bem que eu queria, pois ficamos empacados ali, sem ajuda e sem que eu soubesse como me livrar da situação. Apenas uma coisa eu sabia: eu não ia largar aquele osso nem por um decreto. Acho que Jota estava convencido do mesmo princípio. Era ver quem se cansava primeiro e, enquanto isso, eu pensava em uma saída. Finalmente, resolvi fazer cócegas nele e, por um instante, ele reagiu. Tempo necessário para eu conquistar o osso.

Jota não avançou, não me mordeu. Apenas ficou muito frustrado e voltou todo emburrado para casa, sem olhar para mim.

Felizmente, cachorros são acessíveis ou, pelo menos, Jota é. E quando chegamos à casa e eu comecei a brincar com os ossinhos que ele podia comer, a birra acabou.

Mas estava faltando alguma coisa para pactuar de verdade nossa amizade. Eu não sabia o quê. Percebia isso porque, como todo cão de rua, Jota mostrava que não confiava plenamente em mim. Nos donos, sim, mas esta fã de carteirinha não conseguia chegar ao mais íntimo de seu coração.

Eu não sabia que não precisava senão de tempo para que isso ocorresse. E foi em um dia, sem mais nem menos, que aconteceu.

É que Jota, como todo bom cão de rua, é previdente. Se você põe comida para ele e ele se sente inseguro, não tem jeito, ele não come tudo. Deixa sempre um pouco para o dia seguinte. Era assim que, prevendo isso, eu colocava mais ração do que o necessário, para que ele comesse, pelo menos, o que lhe cabia por dia. E era tiro e queda: no dia seguinte, quando eu chegava, quase metade da ração ainda estava lá e o pote da água pela metade, por mais quente que estivesse o dia. Tão logo eu entrava, ele vinha me receber, em festa, mas logo após corria para beber água. Sinal de que estava com sede.

Acostumei-o a esperar-me sempre mais ou menos à mesma hora. Mas não adiantava, era sempre a mesma coisa: ração pela metade e água suficiente para pelo menos mais o dia seguinte,  até que... um dia... ao entrar, ele não correu para o pote, apenas me fez festa. Achei um pouco estranho e fui direto para o lugar de sua alimentação. O pote da ração estava vazio, havia pouca água na tigela da água.

Senti, naquele momento que Jota, enfim, me incorporava à família. Lembro-me que meus olhos se encheram d´água pelo alívio que senti. Talvez Jota também se sentisse aliviado com minha presença, enfim!

Somos grandes amigos até hoje. Ele, bem mais velho, um senhor idoso digamos, mas sempre amoroso e de bom coração. Seu olhar é sempre o mesmo e sempre me recebe com muita alegria.

Jota não entrou em minha vida. Desta vez, eu sei, fui eu quem entrou na vida de alguém...

Não sei de seu passado. Ninguém sabe. E não tem como saber. Mas o cão de rua que ele foi, soube preservar algo, dentro dele, que é digno, estável, solidário e gentil, o que fez de Jota um dos cinco amores caninos de minha vida!

Obs.: Se quiser conhecer as histórias dos outros quatro cães do meu coração, leia "Sheik", "Radar" e "Tim - dois cachorros inesquecíveis" .

domingo, 20 de julho de 2014

TORCIDA FINAL



Domingo. Final da Copa. A ideia era nem sair de casa já que moro na "boca do forno". A três quadras da praia, melhor, a três quadras da maior aglomeração do Rio de Janeiro, onde o telão da FIFA aguardava milhares de pessoas, o melhor era mesmo ficar por aqui, em casa, quietinha.

Mas o dia estava lindo e resolvi não abrir mão da minha caminhada quase cotidiana. "Vou lá, ando para lá e para cá, volto rapidinho. É só um pulo no sol e ao ar livre, que tanto gosto. Não deve estar tão intransitável assim".

Por via das dúvidas, decidi andar para os lados do Leme, onde, geralmente, Copacabana é mais tranquila.  Saí, assim, "sem lenço e sem documento". E documento, para mim, representa "sem máquina fotográfica", meu apêndice cotidiano.

Como me arrependi! Chegando ao Leme, me dei conta da mancada. Eu não poderia ter deixado a máquina em casa!!!

É que, diante da balbúrdia dos últimos dias, eu não podia imaginar encontrar um pedacinho de paraíso no final da praia.

Para meu espanto, era a torcida alemã. Eu não sei de onde "brotaram" tantos alemães, de repente! Tirei emprestado essa expressão de uma amiga, ao comentar comigo o que tinha visto, na véspera, no Largo do Machado. Uma fila imensurável de alemães em busca do Corcovado. Como ela mesma me disse, parecia que brotavam do chão.

Logo descobri por quê. É que eles estavam aqui, sim, só que são discretos e se espalhavam sem muito alarde, ao contrário das torcidas latinas. Mas estavam aqui e... não eram poucos, nada "poucos". No domingo, os que não foram ao Maracanã agruparam-se organizadamente no Leme, e parecia mesmo que o pontão da praia era uma filial do consulado alemão. Alugaram os quiosques da praia e, não posso omitir a delicadeza: enfeitaram com bandeiras da Alemanha e do Brasil, honrando o país anfitrião.



Marketing para seduzir a torcida brasileira? Não creio, mas pode até ser. Se foi estratégia, com certeza, funcionou, já que seu s oponentes estiverem longe de usar qualquer estratégia parecida. Pelo contrário.

De qualquer modo, o que vi era simplesmente encantador, motivo pelo qual, quando voltei para casa, não resisti: peguei minha máquina e dei outra caminhadinha, só para registrar.

Infelizmente, não registrei o principal. É que, enquanto estava em minha primeira caminhada, eles resolveram fazer uma passeata e foi um espetáculo digno de se ver: um desfile com bandeiras e canções que enfeitou a avenida a beira-mar. O espetáculo estava tão bonito, alegre, festivo, que as janelas dos prédios se encheram de gente e os transeuntes pararam suas bicicletas e caminhadas para "verem a banda passar".  Se foi para seduzir, alcançou seu objetivo, pois volta e meia eles também cantavam em nome do Rio de Janeiro, o que foi muito simpático. 

Quando voltei com a máquina a banda já havia se dispersado, mas o "consulado" estava lá, numa expectativa de pré-jogo, com um telão colocado na areia e os torcedores mostrando muita alegria, simpatia e criatividade.



Meus leitores sabem quanto amo Buenos Aires. E também de meus amores pela Alemanha, das vezes em que visitei seu país. Seria para ficar na dúvida, mas... diante das circunstâncias e da delicadeza com que fomos cuidadosamente festejados e respeitados até na derrota, os "hermanos" que me desculpem: no domingo, eu fui alemã.

 

sexta-feira, 11 de julho de 2014

CAPITALISMO IGNORANTE


 Quando vejo algo muito errado, muitas vezes, minha curiosidade científica fica aguçada, mesmo que seja um evento cotidiano e, principalmente, se causa espanto ou consternação.

É o caso do trânsito de nossos ônibus.

Com muita frequência, vejo meus amigos reclamando - e com muita razão - do comportamento de nossos motoristas que, simplesmente, não param nos pontos. Passam por fora, ignorando os acenos tantas vezes desesperados de candidatos a passageiros que já os esperavam "faz tempo"! Sim, candidatos, pois, uma vez no ponto, você se torna um suposto candidato a conseguir chegar ou não ao seu destino no tempo previsto.

Por que isto está acontecendo? Pura impaciência do motorista, intolerância, insensibilidade ao próximo, vontade de correr, aproveitar a pista vazia?

Após alguma investigação, em papos informais com os próprios motoristas - afinal, minha vida acadêmica foi recheada de levantamento de dados em pesquisa de campo - acabei por chegar a uma conclusão estarrecedora.

Por incrível que pareça, muitas empresas de ônibus exigem e pressionam os motoristas a realizarem um mínimo de viagens por dia. E não são poucas.

Como assim, um mínimo de viagens por dia? 

Alguns desses empresários já se deram ao trabalho de saírem de seus confortáveis carros caríssimos, cheios de recursos confortabilíssimos e com todas as chances de mudarem de roteiro, escolhendo os melhores caminhos para chegarem aos seus objetivos? Será que já se sentaram na cadeira do motorista de seus ônibus, em pleno verão carioca, suando em bicas para levar a bom termo seu dia de trabalho, com toda essa pressão?

Claro que não!

Todos nós reclamamos do trânsito, nessa cidade que cresceu desproporcionalmente. Venho a pé do consultório para casa todos os dias. Seja às 20 horas, seja mais tarde, a Avenida Nossa Senhora de Copacabana está entupida de carros. Muitas vezes, andam quase passo a passo comigo!

Entendo, portanto, por que muitos motoristas passam ao largo, sem pararem nos pontos, todas as vezes que veem uma pista mais vazia, uma brecha no trânsito, uma forma de chegarem mais rápido. Deixaram de ser motoristas de transporte público para serem cidadãos ameaçados que precisam alcançar metas para garantirem seus empregos.

Resultado: mau atendimento ao passageiro, objeto direto do serviço; desgaste desnecessário do motorista que se empenha (tantas vezes inutilmente) para alcançar sua meta quase impossível; prejuízo dos donos das empresas, pois, além de perderem inúmeros passageiros com esta manobra de seus funcionários, veem seus ônibus muitas vezes depredados pela população indignada - perda muito maior do que deixar que seus motoristas trabalhem naturalmente.

Explica, mas não justifica. Tem sentido? Claro que não.

Perdem todos, inclusive, o capitalista sedento de lucros e muito longe de saber, sequer, gerir com sabedoria o seu negócio. E não é só por sua sedenta ignorância,  mas, principalmente, pela perda da verdadeira maneira humana de ser.

sábado, 5 de julho de 2014

ENQUANTO A BOLA ROLA...



Sou brasileira de direito e de fato. Mas não gosto de futebol (afinal, ninguém é perfeito...).

Pois é. No país do futebol, principalmente na época da Copa, me sinto uma estrangeira. Gosto de ver o movimento e a alegria das ruas, ainda mais neste ano, em que a Copa, pelo menos no Rio de Janeiro, parece ter-se transferido para outra copa: Copacabana.

Andei por muitos cantos do Rio nestas últimas semanas, mas Copacabana esbanja "copice". Os estrangeiros marcam pousada em suas praias e calçadas, se misturam conosco e, segundo tenho ouvido diretamente deles, se sentem em casa.

O carioca é pródigo em anfitrionato. Aliás, o brasileiro é assim.

Mas enquanto ando pelas ruas, no meu cotidiano entre o consultório e minha casa, tenho tempo para observar e pensar em outras facetas dessa mesma moeda.

Enquanto a bola rola, não posso deixar de perceber outro Brasil que eu não conhecia Talvez sejam os olhos distanciados dos jogos, não sei. Talvez seja mesmo a constatação do nascimento de um brasileiro diferente que se conscientiza.

Antes, tudo era só festa. Hoje, o brasileiro me parece mais atento. Está mais crítico, mais focado em seu país como um todo.

Foi isso que vi, num contraste singelo e festivo, antes do começo do último jogo. Ao lado do palco de areia e do telão, onde milhares e milhares de brasileiros e estrangeiros se confraternizam para assistir aos jogos, a Avenida Atlântica se enfeitava com outra festa, a festa da manifestação das vontades de nosso povo.

E são vontades singelas, viscerais, vitais, que pertencem a um campo mais amplo, o campo desse nosso querer, este campo que não foi feito para competições, mas para a constatação do óbvio. O que  o povo quer é simples, vital:



Mas parece que é preciso ser "gritado" em várias línguas. E nem sei se é apenas para que o estrangeiro que passa por ali, cheio de festa no coração e desavisado de nossos problemas, possa entender. Afinal, uma passeata pacífica de protesto em plena festa, tem de ter uma razão de significativa importância:



Quem sabe, sirva também para que os responsáveis pelo gerenciamento da verba pública e da administração da sagrada vontade do povo, acabe por ler, em inglês, o que parece que, há muito tempo, não conseguem entender em sua língua pátria...

Antes, quando a bola rolava, o povo se esquecia de tudo, até de comer. Hoje, felizmente, enquanto a bola rola, mostramos que não vivemos mais só de pão e circo.

Que nos ouçam! Estamos crescendo, viu?