quinta-feira, 25 de novembro de 2010

DIANTE DAS CIRCUNSTÂNCIAS



Pensei em escrever mil coisas hoje. Algo fora do senso comum, algo fora do que todos já estamos acostumados a ler. Já sabemos que falta educação, que faltam os subsídios para a tranqüilidade da alma, do corpo, da mente, da cidadania, enfim, de nossos postos como seres humanos subjetivos e sociais. Já sabemos. Não é preciso a mídia insistir. Já sabemos.

Dizer o dito passou a ser sem sentido. Discurso vazio, cansativo, sem metas, sem soluções.

Hoje, sem palavras, diante do que estamos vivendo nesta cidade amada, só tenho o conto da minha tristeza, da minha impotência, da minha vontade de ser útil, mas não sei onde.

Rezar? Só se for assim:

Em nome do Pai,
do Filho
e do Espírito Pranto.
Amém?


Mas sei que não vou entregar os pontos. Pertenço a esta cidade, que escolhi para ser minha, para ser meu pouso, meu trabalho e meu repouso.

Prefiro escolher a esperança, jamais a perderei.

A esperança, entre vários sentimentos que povoam e povoaram meus contos, está presente hoje, mais do que nunca, torcendo por esta cidade amada, mais que amada, luz de meu coração!

sábado, 20 de novembro de 2010

LUZIA


Dei um pulinho na universidade para pegar documentos antigos, contracheques, etc. Revi amigos e aproveitei para tirar algumas fotos para o blog. Foi aí que me deparei com uma parte da vista do estacionamento. Notei um carro estacionado em frente a uma vaga reservada para cadeirantes. Ver isso da altura do décimo primeiro andar me dava mais a impressão de ser coisa de filme ou de casa de brinquedos do que realidade. Mas era verdade. Em plena universidade, onde sei que há inúmeros projetos extensionistas e um vasto folhetim sobre cotas, direitos sociais e necessidades especiais - que é o que mais caracteriza o lugar em que trabalhei -, a vista disso me parecia coisa fora do lugar. Mas estava lá, o carro azul, em frente à vaga, enfrentando meus princípios.

Para não “entrar nela” desobedecendo ao aviso ostensivo de proibição, ele ou ela simplesmente optou por estacionar em frente! Dava na mesma. Não pude deixar de fotografar. De quebra, fiquei imaginando se os carros estacionados nas vagas reservadas seriam, realmente, de cadeirantes. É certo que os seguranças são logo chamados nesses casos, pois há um número considerável de cadeirantes lá. Não desci para ver. Lembro-me de que fazia isso quando era membro efetivo do Conselho Estadual para Política de Integração da Pessoa Portadora de Deficiência. Naquela época eu tinha mais poder de fogo, me apresentando como membro e mobilizando as autoridades locais. Bons tempos! Ou... maus tempos, como sempre? Para que precisar de carteira, afinal... não deveria ser um direito / dever de cidadania de todos?

O fato é que fiquei com o vicio já meio natural de estar atenta a esses absurdos. Aliás, guardei um arquivo que me mandaram, um dia, pela internet. A piada é boa, embora esconda outro preconceito, que também deveria ser combatido. Falaremos disso, provavelmente, em outro conto. Por ora, lá vai, pela criatividade do autor, para mim, desconhecido:


Outro dia, saindo do carro e andando pelo estacionamento do aeroporto do Galeão, rumo ao elevador, vi um cidadão (cidadão?) estacionando numa vaga dessas. Não resisti, mesmo sabendo que, de vez em quando, a gente se meter numa coisa dessas é furada. Me aproximei e perguntei o mais delicadamente que pude, se ele não tinha visto a placa, já que não via na chapa do carro a marca obrigatória que os cadeirantes tem de ter. Ele simplesmente retrucou:

- Alguém está vendo?

Não agüentei:

- Sua consciência não está?

- Você vai me multar?


- Não, mas deveria, já que sou do Conselho Estadual (já não sou mais, mas dei a cartada). Invisto apenas no seu senso de cidadania. Eu mesma tinha essa vaga à disposição quando passei por aqui, mas estou estacionada há quase cinqüenta metros, bem mais longe dos elevadores. E suas pernas são bem mais jovens que as minhas.

Não quis discutir mais, dei as costas, mas saí dali indignada. Não achei um segurança perto, queria pedir providências. Não vi ninguém.

Fiz o que tinha de fazer no aeroporto e voltei rapidamente. Como era o meu caminho, passei outra vez pela mesma vaga e... estava vazia. Por medo ou por consciência - gostaria mais de acreditar na segunda opção -, o jovem escolhera outro lugar. Resolvi voltar e procurei um segurança que, enfim, colocou um daqueles “cones” de plástico amarelo na vaga. Aquilo não evita a desobediência, mas é mais um empecilho. O problema é que também atrapalha o verdadeiro cadeirante que, vindo sozinho, quer estacionar ali.

Ando muito pela cidade e, volta e meia, me deparo com uma coisa dessas. Nossa educação básica de convívio está mesmo depauperada. Já sabemos disso de sobra. Mas como criticar a violência, se ela começa dentro de nossos corações?

Saí do estacionamento cabisbaixa, pensando nessas coisas, e me parece que aquele era mesmo um dia de me encontrar com a representação de pessoas muito especiais, que já trilharam a minha vida, me ensinando coisas da mente e do coração. Estava chegando em casa quando vi Luzia, uma antiga colega de faculdade. Ocorre que Luzia é cega. Andava devagar, com sua bengala. Me deu vontade de fazer uma meninice, como nos antigos tempos. Me aproximei sem falar uma palavra e lhe dei meu braço. Luzia parou e estranhou. É muito difícil um vidente dar o próprio braço para um cego na rua, para ajudá-lo. Geralmente, pegamos o seu braço, seu ombro, pois não fomos preparados para isso. A maioria das pessoas não sabe, mas essa atitude provoca uma total insegurança, pois a pessoa se sente monitorada e não guiada, como deveria. Se alguém se aproxima e, de saída, sem essa ou mais aquela, oferece o próprio braço, a pessoa cega já desconfia de que há noventa e nove por cento de chance de que o tal sujeito ou sujeita já andou aprendendo isso com cegos por aí.

- Quem é?

Minha meninice, dando o braço e caminhando, conservou silêncio.

- É Rita?

- Não.

- Fala mais um pouco. Você já andou com muitos cegos, não?

- Muitos.
Sorri.

- Ora, Eulalia! Você por aqui!

- Essa não vale Luzia, como você descobriu?


Ela me respondeu, com aquela cara de marota, bem minha conhecida:

-Se você já andou com cego, querida, está marcada para sempre... depois, é só aguçar para as características: pelo riso (e eu que pensei que apenas tinha sorrido!) e, logo depois, pela maneira de andar e pelo braço. Pela voz, fiquei um pouco na dúvida, porque você está um pouco resfriada, isso mascarou pouco, mas eu já tinha quase certeza. Então, chutei.

- Luzia, faz cerca de 30 anos que não nos vemos!

- Ver nunca te vi, mesmo, zombou ela,
lembrando-me de pronto de seu irrefutável bom humor. Mas o jeito, depois de termos convivido tão proximamente durante quatro anos... ah...não dá para esquecer.

Pois é... quem de nós, sem ver outra pessoa e praticamente sem falar com ela – e, ainda por cima, com resfriado -, poderia reconhecer um amigo, na rua, depois de trinta anos? Os cegos, quase sempre, podem.

Perguntei para onde ela queria ir.

- A um ponto de ônibus da Princesa Isabel.

Andamos conversando animadas, ela já habituada com o tipo de guia que eu sou, descendo e subindo as calçadas sem prévio aviso. É tão fácil guiar um cego com segurança... basta dar o braço e se conservar um passo adiante. Ele nota que você vai descer e subir, desviar de buraco... nem precisa falar. É incrível o senso de percepção que eles tem!

Fomos assim conversando rumo à Princesa Isabel. Soube que era seu caminho quase diário. Incrível, ela trabalhava numa escola ao lado do meu edifício, há dez anos, e nunca nos vimos. E justamente agora que nos tínhamos encontrado ela estava sendo transferida. Seguindo, assim, de papo, atravessamos a avenida e, como há vários pontos de ônibus, apenas fui caminhado, pois eu já sabia que ela iria reconhecer quando chegássemos ao dela. Não deu outra: num determinado momento, ela deu aquela “travadinha básica” bem minha conhecida. Era ali. Não resisti:

- Qual é o sinal, Luzia? Estava me referindo a como ela reconhecia o ponto.

- O cheiro da farmácia.


É preciso ressaltar que a farmácia não fica em frente ao tal ponto, fica duas lojas à frente. Significa que não tínhamos passado por ela. Pois é... nós temos um olfato tão aguçado? Uma percepção de contato tão aguçada? O que fazemos com nossos sentidos? Não dá para chamar uma pessoa assim de deficiente... é mesmo mais para pessoa especial...

E, talvez, quem sabe, foi com esse espírito de perceber o quanto são especiais que, muito mais tarde, por caminhos da vida, acabei trabalhando com surdos, aprendendo sua língua, lutando academicamente por uma educação especial melhor.

Só tenho a agradecer, por esses presentes da vida, me preparando, com antecedência programada para vários dos embates de minhas futuras escolhas.

Um dia, quem sabe, eu fale mais de Luzia e de surdos em outro conto. Vale a pena.

sábado, 13 de novembro de 2010

O CÂMBIO


Londres. Mas minha segunda língua era o francês e bem sabia que não seria bem-vinda à cidade falando uma língua tão adversa à deles. Já tinha ouvido horrores sobre a richa entre os londrinos e parisienses que fingiam não entender um a língua do outro ao menor apelo turístico. A saída, então, era mesmo arranhar meu inglês e ver no que dava.

A primeira chance deu-se logo na entrada, quando me deparei com a necessidade de trocar meus dólares por libras. Perguntei logo ao sair do hotel onde havia o câmbio mais próximo. A resposta, com sotaque inglês impecável, naturalmente, foi a de que me dirigisse à estação de trens, ali perto. Bem, eu tinha conseguido falar... e também...entender. Menos mal. Fiquei um pouquinho mais animada.

Fui arranhando uma tentativa de encontro, mas não achava a estação. Tinha mesmo de perguntar a um outro transeunte. Ensaiei a pergunta, com cautela, em pensamento: “Please, where is the station?” Achei que assim estaria bom.

Ao primeiro transeunte, então, lancei a frase ensaiada, mas só ouvi em resposta:

- What?

Bem, eu deveria ter pronunciado alguma coisa mal e tentei caprichar mais, invertendo a ordem na frase:

- Where is the station, please?

- What?


Não era possível. Eu tinha a frase decorada de meus bancos de colégio. Não poderia estar errada... será que seria minha pronúncia? Resumi:

- The... station... please.

- What?


Não era possível. Será que estaria pronunciando errado a palavra /steition/? Resumi mais ainda:

- Station.

- Wou, station.
O cara estava falando com o “a” aberto: /station/!!!

Isso mesmo... como um brasileiro falaria, com o “a” bem aberto, caso não soubesse a verdadeira pronúncia! Ora, aí já era esculhambação. Se era para falar assim com “a” aberto eu não precisaria ter ensaiado tanto!!! Mas fiquei ali firme e acenei que sim com a cabeça. Num péssimo inglês para o que eu supunha ser inglês, o senhor me apontou a estação, que estava pouco adiante. Muito mais tarde eu soube, por uma amiga que era professora de inglês – a Patrícia, da qual já falei em contos anteriores – que ele deveria ser de uma região da Inglaterra (não me lembro qual) que tinha mesmo o que ela chamou de “inglês terrível”. E eu tinha de cair, logo na estréia com a língua, nas mãos de alguém assim!

O fato é que achei a estação de trem rapidinho e também o guichê de câmbio. Esparramei uns dólares e nada falei, pois era óbvio o que eu queria. Apenas sorri o sorriso dos turistas que mal falam a língua. O senhor me deu notas de libras, sem trocados. Como eu iria me virar com notas tão elevadas? Seria mais do que natural receber uns trocados, não? Que nada... só nota de valor alto.

Minha mente me traia mais uma vez. Como se pede trocado em inglês? A palavra “change” simplesmente sumiu da minha cabeça. Não tinha jeito... ou eu saía dali com aquelas notas ou me virava de outro jeito ali mesmo, com gestos, fala engasgada... o que fosse. Decidi, embora sabendo ser super inconveniente, pronunciar a frase que supunha proibida naquela cidade:

- Do you speak French?

- Mais oui, je suis parisien!!!


Pelos deuses! Essa não!!! Um francês no guichê de câmbio! E, ainda por cima, parisiense! Só se fosse mesmo aquele meu anjo aventureiro encarnado que sempre me acompanha. Era mesmo um francês! E francês, você sabe, quando vê um estrangeiro falando a sua língua em terra estrangeira se desmancha todo. Aliás, ele já se derrama todo quando vê um estrangeiro falando francês em Paris. E eu estava falando francês em Londres, mostrando minha incompetência logo em que país! Estava feita!

O homem só faltou estender um tapete vermelho para eu passar. Levantou-se, sorriu, me cumprimentou através do buraquinho do guichê. Perguntou o que eu desejava e mais parecia um amigo gentil do que um funcionário. Despencou a me perguntar se eu conhecia Paris, se tinha ido à França. Quando disse que sim, passou a discorrer sobre a cidade amada, com mil sorrisos e mesuras, perguntando onde eu tinha ido, se ia voltar, me dando dicas turísticas.

E a fila crescendo atrás de mim.

Com gentileza, disse que não queria atrapalhá-lo, que já havia tomado muito o seu tempo. Na verdade, estava com medo de ser linchada pelos turistas na fila. Mas ele não estava nem aí. Simplesmente me dizia que não falava francês há dias e que estava muito feliz em me servir. Era uma fila, os outros que esperassem.

Fiz o que pude para sair de mansinho, envergonhada. Na carteira todo o trocado, minuciosamente oferecido, exatamente como eu queria. De brinde, uma lição para lidar com a moeda inglesa que, cá para nós, tem uns macetes que só gringo nativo entende. Mas a lição foi boa e eu entendi tudinho... ainda mais em francês...

Saí rindo dali, com a recepção inesperada e também pela dupla aventura: a de um péssimo inglês me levando a um maravilhoso francês.

sábado, 6 de novembro de 2010

O AEROPORTO


Morei em aeroporto por três dias, seis horas e incontáveis minutos, quando tive a oportunidade de conviver com a casta da antipatia, da petulância e da prepotência americanas.

Voltava de uma viagem a Jacksonville, em visita a Katia, uma grande amiga que estava em Paradise Point, acompanhando o marido. Passei dois dias em Chicago para visitar um amigo e parti direto para a base militar, por cerca de uma semana, apenas para conferir a amizade, já que o trabalho aqui é muito e não pode esperar.

A ida fora sem problemas, apesar dos inúmeros interrogatórios na entrada do país. Não tivesse eu um passaporte da União Européia, então, não saberia por quantos outros questionamentos passaria.

Eu tenho a impressão que os americanos se acham mesmo donos do mundo. Nada contra isso, cada um acha de si o que quiser, o sistema político-administrativo tem todo o direito a todos os cuidados que deve ter e não coloco nada disso em questão. Mas sistema é sistema e gente é gente. O funcionário, seja lá do que for, tem o dever de cumprir o seu dever. Mas não precisa ser tão antipático, tão arrogante e tão petulante quanto a lei. Parece, no entanto, que eles não estão falando com outra pessoa igualzinha a eles, com cabeça, tronco e membros iguais, sem contar com alma e espírito. Não. Acho que isso não passa pela cabeça da maioria de cada ser americano, pelo menos daqueles com quem convivi, nesses trânsitos administrativos. Ali, pelo que parece, eles não são gente ou acham lindo imitarem maquinas a serviço de uma máquina. Uma pena eu ter tido essa impressão de um país que poderia ter um pouco de açúcar. Ou será que eles gastam todo o açúcar que têm em comidas e guloseimas e não sobra nada para a alma?

Estou sendo rigorosa demais? Logo veremos.

Por uma semana, apenas convivi com as delícias de uma família brasileira em país estrangeiro. Uma espécie de consulado brasileiro no meio de uma cidade sem calçadas e sem ônibus. Sem calçadas. Significa que o sonho americano se concretiza ali: cabeça, tronco e rodas. Literalmente. Não fosse a gentileza de meus anfitriões, eu estaria simplesmente presa em casa, a não ser que alugasse um veículo. E ir para onde? Para os shoppings, naturalmente. Desconfio que, se tirarmos os shoppings dos americanos, eles perdem a identidade. Para quem não se sente atraída por montes de compras, eu estava mesmo perdida. Mas havia o espaço da base militar e os passeios a outras cidades com que meus amigos muito gentilmente me brindaram. Na base, eu podia andar a pé, quanto quisesse. Não se vai a lugar algum, mas era lindo caminhar entre as filas de casas para famílias dos mais variados países, jardins sem muros e muito espaço. E esquilos soltos por toda parte... e pássaros beliscando aqui e ali pelos jardins.


Seres humanos, enfurnados em suas casas. Lembro-me que eu andava todos os dias por cerca de um quilômetro para ver o lindíssimo pôr-do-sol. E não encontrava ninguém no caminho. Até hoje não consegui entender o que essas pessoas faziam enfiadas em suas casas, com um espaço tão lindo a seu dispor.



Eu caminhava em direção ao vastíssimo lago onde o sol se punha. Um lago rodeado de um gramado aconchegante, árvores encantadoras e muitos bancos voltados para ele. Todos sempre impecavelmente vazios.



Eu era a única transeunte, exceção feita a um ou outro morador que fazia sua caminhada apressada com algum cachorro. Mas isso era muito raro e eles sequer se davam ao trabalho de responderem ao meu cumprimento.

A semana passou rápido e lá estava eu, me despedindo de meus amigos, no aeroporto. Um bom livro, passagem pela polícia federal e os bancos de espera para o voo intermediário entre Jacksonville e Chicago, de onde viria para o Brasil. Vinte minutos para o embarque e... nada. Nem sinal de chamada. Em suma, o avião doméstico atrasou e isso significava que eu perderia a conexão.

Falo pouco inglês. Com os americanos, então, complica. Em Londres me viro muito melhor. Entender eu entendia e sabia que estava correndo o risco de ter uma boa encrenca nas mãos. Não deu outra. Eles não queriam se responsabilizar de jeito nenhum pelo meu voo internacional. E eu, com meu péssimo inglês, exigindo meus direitos. Era quase meia-noite e nada resolvido. Dormi no chão, pois os responsáveis por qualquer providência não estavam mais no aeroporto. Se estavam, não apareceram.

Você deve imaginar que um país de primeiro mundo só tem aeroportos super fantásticos. Engano seu. Se você se lembra de como era o aeroporto Santos Dummond antes da reforma, diria que ele seria um paraíso perto daquele. Para comer? Só uma birosca que abria das 8 às 18 horas vendendo biscoitos esquisitos que só os americanos conseguem engolir. Tinha pão, mas era para ser comido puro, pois eu nem conseguia olhar para aqueles recheios gordurentos. Máquina de refrigerantes e água. Mas fechados, dentro da loja, depois das seis da tarde. Assim, sem nada para comer ou beber, com um ar condicionado de polo norte e sem nada para me cobrir, eu e mais umas duas pessoas que falavam uma língua indecifrável perambulamos por ali até o amanhecer. Telefonei para meus amigos para que avisassem a quem iria me buscar no aeroporto no Brasil. Acalmei-os, dizendo que estava tudo bem e que voaria na manhã seguinte.

No dia seguinte, a companhia aérea responsável pela minha passagem, a United Airlines (nunca mais viajo nela, se os deuses me permitirem!), me enrolou o dia todo, dizendo procurar alguma vaga em outro voo. Parece que conseguiram, mas a outra companhia, American Airlines, não quis fazer o check in. Voltei para a companhia de origem e me fiz acompanhar por um funcionário ao check in da companhia a que me estavam transferindo. Mas quando a funcionária da United apresentou a passagem no check in da American, o funcionário do balcão olhou a passagem e simplesmente a rasgou, sem a mínima cerimônia. Fiquei perplexa: a falta de respeito se estendia ao colega de trabalho, assim, numa boa, sem explicações!

Estávamos no início de agosto e até entendo que arranjar uma vaga em qualquer voo para o Brasil era uma tarefa hercúlea. Mas a responsabilidade era deles e eu estava lá, morrendo de cansaço, sem banho e comendo pessimamente. Os tickets para alimentação que me ofereciam davam direito às bombas americanas da tal birosca das quais meu estômago não conseguia chegar nem perto. Assim me enrolaram por todo o dia e não saí de lá. Banho? Nada. Reclamava pelos meus direitos e eles apenas diziam que estavam tentando um hotel. Uma droga de língua na qual eu não sabia xingar me atrapalhava a comunicação à altura do que eles mereciam. Não conseguiram acomodações, pois a cidade, que dista quase dez quilômetros do aeroporto, era pequena e estava atolada com uma convenção internacional sem tamanho. Isso era o que eles diziam. Sempre frios e secos, diante desta latina sul americana. E me enrolando o dia todo, passei mais um dia ali, sem saber o que fazer, mas achando que voaria no final da tarde, como me haviam assegurado. Era pura embromação.

Meus amigos iriam para Disney, dois dias depois, com as crianças e eu não queria mobilizá-los. Afinal, o aeroporto ficava quatro horas distante de sua casa e seria uma viagem enorme de ida e volta. E para quê? Ligava para eles duas vezes por dia, dizendo que estava esperando e que estava tudo bem.

Evidentemente, não estava nada bem. Mas fiz o melhor que pude. Naquele saguão sem recursos, dei uma de barraqueira. Juntei minha mala grande, coloquei a de mão em cima, puxei uma mesa deles para perto do telefone publico, que passei a considerar meu centro de informação com meus amigos, e usei uma daquelas cadeiras presas ao chão. Nem sei como não me impediram. Talvez a determinação das atitudes. Os seguranças apenas me olharam. Tentaram se aproximar, mas não dei pelota. Estava montando meu escritório provisório. Mesa, telefone, cadeira, malas como estante. Livro aberto e leitura. Não havia mais nada a fazer. Felizmente, eu tinha mais de um livro na mala e tudo que não tinha lido durante a semana foi engolido ali mesmo.

Quando soube que não voaria naquele dia, perdi, finalmente, as estribeiras. Perguntei indignada se alguém ali falava francês, espanhol ou português. Ninguém. Eu falava três línguas e todos ali só sabiam falar uma droga de única língua. Exigi uma intérprete. A comissária, com cara de máquina, solicitou meu passaporte, disse para esperar e sumiu! Sumiu com meu passaporte por longos quarenta minutos! Eu queria ser presa, eu queria qualquer coisa, algum treco tinha de acontecer! Enfim, ela voltou e solicitou (eles não pedem, eles mandam ou solicitam, com uma falta de gentileza espantosa!) que a acompanhasse. Lá estava a minha intérprete. Ao telefone, lógico. Peguei o aparelho e, do outro lado, uma brasileira, com sotaque carioca. Contei tudo que estava acontecendo, exigi um hotel, um banho, uma cama e, principalmente, providências imediatas para que eu voltasse ao meu país. Foi tudo ouvido, anotado e providências seriam tomadas imediatamente. Que eu me acalmasse e que, em breve tudo estaria bem. Depois disso, me levaram para o saguão de novo e pediram que aguardasse. Eles estariam tomando providências.

O imediatamente deles simplesmente não existe e nada foi providenciado, a não ser um prato de comida que não consegui tocar. Banho? Não havia acomodações no aeroporto, sentiam muito. Não conseguiam hotel. O voo sairia na manhã seguinte e qualquer distancia maior do que a tal cidadezinha me faria perder a hora.

Quando contei que achava que ainda dormiria mais uma noite no aeroporto, meus amigos não aguentaram e se despencaram para lá. Não havia outra coisa a fazer senão concordar. Aceitei e aguardei, sentada em meu escritório, embutida nos meus livros, para passar o tempo da melhor forma possível. Felizmente, livros ótimos. Tão bons que meus amigos chegaram e nem me dei conta deles.

Katia tinha sido minha aluna e, ao me ver ali, daquele jeito, não resistiu ao flagrante. Hoje, ao rever a foto que coloquei lá no título desse conto é que acredito que aquilo realmente me aconteceu.

O bom da história é que eles conseguiram um hotel, às 22 horas da noite. O suficiente para eu poder tomar um banho, trocar de roupa, comer um sanduíche saudável e me atirar na cama por umas duas horas. Nem sei se dormi. Meu voo saia, finalmente, às seis horas da manhã, rumo ao aeroporto de Chicago, onde passaria o dia até que o voo internacional me trouxesse de volta ao lar, partindo às 23 horas.

Agradeço a cada mimo com que este casal me brindou naquela noite. Fico imaginando o esforço de ir e vir, numa viagem de quatro horas para cá, quatro de volta, às vésperas de uma longa viagem para as férias das crianças, só para me oferecerem um banho e um pouco de conforto. Foi mesmo um esforço a mais, inesperado e acolhedor. A vida me brindou com amigos assim e jamais deixarei de dar o devido valor a cada vez que ela me mostra esses requintes...

Voltei ao aeroporto para o susto final: uma fila incomensurável para a passagem pela polícia federal. Como chegamos bem cedo, no início, não dei muita importância. Mas eu não tinha me lembrado de como a revista era rigorosa, passageiro a passageiro. Faltando vinte minutos para a saída do meu voo, falamos com seguranças do aeroporto. Completamente insensíveis, apenas disseram que deveríamos ter chegado mais cedo e que eu me conservasse na fila. Aí é que veio o jeito carioca. Não havia saída. Fomos falando com cada pessoa na fila pedindo para passar a frente e, muitas vezes, quase sem ouvirmos a resposta de sim ou não, já estávamos falando com o passageiro da frente. Nem sei como consegui me adiantar cerca de cinquenta pessoas para me colocar diante da passagem pela segurança. Contando, assim, você não pode imaginar o desespero!

O longo caminho entre a ala de segurança e a entrada no avião foi percorrido correndo, com o fôlego na boca. Se eu perdesse o voo, desta vez, a responsabilidade seria minha. E... do jeito que eu tinha sido tratada, tinha medo de que nada me garantisse que eles esperariam um último passageiro. Me passou pela cabeça que haveria outros na mesma situação, mas eu não via ninguém. Soube, muito depois, por um dos passageiros, que o avião pousara ali em escala, que muitos haviam descido, mas apenas uns dois ou três tinham entrado. Talvez, conexão interna, eu é que vinha de fora. O fato é que consegui entrar e, logo atrás de mim, a porta do avião se fechou.

Eu estava simplesmente exausta, de corpo e de espírito. Jurava a mim mesma nunca mais colocar os pés naquele país. Que os deuses me livrassem de tal castigo! Cheguei a Chicago, naquele aeroporto de sonhos, onde me alimentei à altura e adormeci naqueles magníficos sofás. Dormi quase o dia todo e fui uma das primeiras a entrar no avião com destino certo: Rio de Janeiro. Colocando os pés em solo pátrio, tive ímpetos de beijá-lo. Mas senti-lo sob meus pés, o cheiro do Rio, o sol do Rio, a delicadeza e o sorriso das pessoas do Rio foram suficientes para me sentir em casa, aconchegada e feliz.

Quem sabe, um dia, o destino me faça voltar aos Estados Unidos, só para eu perder a péssima impressão que esse povo me causou. Na verdade, lá no fundo, gostaria de acreditar nisso.