sexta-feira, 25 de fevereiro de 2011

NOTAUSGANG


Alemanha, de novo! Patrícia diz que, um dia, acabo morando lá. Acho pouco provável... mas... nunca se sabe. O importante é que as lembranças são boas, amorosas, delicadas e algumas, como você já pôde constatar, engraçadas.

Lembro-me de minhas visitas às lojas. Sim... eu também visitava as lojas, como qualquer mulher mortal. Não tanto quanto era de se esperar para o natural instinto feminino de consumo, mas visitava. E consumia. Principalmente artigos de papelaria, nos quais a Alemanha é pródiga em mimos e gracinhas. Me dei conta de que não tenho nenhuma foto de lojas alemãs por dentro... incrível. Mas são magníficas. A Ka De We, em Berlim (foto), chegava a ser uma covardia... será que ainda existe? Se existe, provavelmente, depois da queda do muro, deve ter mudado de nome ou virado simplesmente Kaufhof, como nas demais cidades do país (Ka De We era uma sigla carinhosa para "Kaufhof dos Ocidentais").

O problema, muitas vezes, era encontrar a saída. Algumas lojas são tão grandes, que você literalmente se perde por dentro. E olha que eu tenho um bom senso de direção - sei exatamente onde estaciono meu carro na garagem de um shopping imenso. Mas aqueles departamentos sem tamanho são mesmo um desafio a qualquer ser vivente.

Pois então... no começo, algumas (muitas) vezes, senti dificuldade de encontrar a saída. Tinha em minha mente as palavras-chave: eingang (entrada) e ausgang (saída). Para mim, era só procurar alguma referência em placas ou setas, antes de perguntar a qualquer vendedor disponível. E explico por quê: ocorre que os vendedores atendem a uma pessoa de cada vez. Inexoravelmente. São super atenciosos e exclusivos. Não cabe, como aqui, por exemplo, você pedir licença e apenas perguntar: “tem fita adesiva?”. Aqui você pode fazer isso e já tem meio caminho andado: o vendedor aponta onde é o local da sessão e continua tranquilamente a atender o seu cliente. Ninguém se incomoda, não atrapalha ninguém e se não tiver, você não fica esperando à toa. Muito prático.

Lá, não. Ou você procura por conta própria entre as inumeráveis prateleiras ou espera a sua vez. O bom é que, chegada a sua vez, o atendente será exclusivamente seu e... se tiver fita adesiva, ele mostrará quilômetros de prateleiras com os mais diversos tipos, disposto a descrever calmamente as façanhas que cada uma delas é capaz de fazer. E diretamente em inglês, língua que todo atendente diz que não sabe falar, se você perguntar (mania de perfeição), mas, fala muito bem, se você se dirigir a ele diretamente nessa língua. É claro que as sessões são pródigas em setas, placas, avisos informativos. Mas isso tudo está escrito no mais puro alemão, é lógico, e dispensa metade da espera. Mas... para uma viajante latina como eu... hum... como é mesmo fita adesiva em alemão???

Pois é... com esse tipo de cultura, interromper um atendimento, mesmo que seja só para perguntar como se sai da loja estava fora de questão. Era mesmo procurar pelos avisos, setas, placas e cartazes.

Foi aí que me enrolei, pois, com muita freqüência, fugi exatamente do caminho certo, por um vício de linguagem. É que encontrava a placa sinalizadora: “notausgang”.

Ora, se a língua é anglo-germânica e not em inglês é uma palavra negativa, a linguista aqui só poderia concluir que “notausgang” deveria significar, é claro, “não há saída por aqui”. Eu não entendia bem por que os alemães se preocupavam em avisar que não havia saída por ali, mas, como não se discute com a minuciosidade das descrições do temperamento alemão eu estava achando que era apenas uma informação a mais. Imediatamente, mudava o meu rumo em outra direção, em vez de seguir exatamente em frente, que era o que eu deveria fazer.

Levei cerca de uma semana enrolada por essa armadilha até que, um dia, resolvi seguir o “notausgang” para ver no que dava... e dei numa escada de serviço que me colocou bonitinha na calçada, ao lado do prédio.

Só então decidi procurar no dicionário pelo significado. Fiquei pasma e lembro-me que chorei de rir comigo mesma por algum tempo: notausgang – saída de emergência.

Daí por diante, cada vez que via “notausgang”, além de sorrir para mim mesma, passava por ela e continuava alguns passos na mesma direção e, indubitavelmente, encontrava a magnífica e tantas vezes perseguida placa de “ausgang”.

sábado, 19 de fevereiro de 2011

DESCOMPASSO


Fevereiro com vinte e oito...
E tantos meses com trinta e um...

sábado, 12 de fevereiro de 2011

CHINA


Imagine um nordestino, desses mesmo que ficam de cócoras para conversar com você. E quieto, de olhar macio e doce. E caprichoso, calmo, cuidadoso, dedicado. Que tem por defeito beber tudo que ganha, no final de semana, mas não chega ao trabalho atrasado (com exceção das segundas-feiras) e nem se sente um cheirinho de pinga sequer durante a semana.

Desses que você olha e gosta dele no mesmo segundo e só não adota porque tem a mesma idade que você. Quase não sabe escrever letras e números, mas sabe contar para você mil alfabetos da vida.

China. Não me lembro do nome dele... ah... é Inácio. Inácio. Só me lembrei porque, depois de trabalhar para nós durante quase um ano na obra da casa do Humaitá - aquela, do conto do galo -, descobri que não tinha carteira de identidade. China, para quem comprei uma camisa nova para tirar o retrato da carteira e que saiu todo prosa para a foto e digitais. China. Que saudade de você. Por onde andará nesse mundão dos meus deuses?...

China, que topou não receber o dinheiro total da semana para que eu o ajudasse a economizar. Queria comprar um terreno lá em Campina Grande, sua terra natal, se não me engano, mas bebia no sábado tudinho que recebia na sexta. China, que aceitou que eu fosse o seu “banco” por meses, até ter os tais 150 que precisava para a tal compra...

- “Pode ficar, D. Lali... senão eu vou beber tudo mesmo...”

A obra da casa do Humaitá foi uma tortura chinesa para mim, sem querer fazer trocadilho com o nome de meu amigo. Mas é que foi mesmo. De um ano, dez meses, vinte e um dias e nove horas que morei lá, acho que tive China como único verdadeiro companheiro de luta e sobrevivência, a maior parte do tempo. É que meu ex escafedia-se em viagens de trabalho por quase todo tempo, aproveitando da casa muito mais os finais de semana e feriados do que qualquer outra coisa. Para mim e para o China sobrava o pesado, a poeira, a atrapalhação e principalmente a minha falta de jeito para resolver os imprevistos.

Um dia – como posso me esquecer? – resolvemos acabar com a inundação do subsolo a cada chuva frouxa que aparecia. Chovia um tiquinho mais e pronto: o subsolo ficava uma graça de lago... e para escoar tudo aquilo, fora o estrago constante das coisas que ficavam lá é bom nem comentar. A obra seria grande, exigindo escavar três metros para baixo do solo em todo o frontal da casa. China dispôs-se a pegar o serviço e eu bem sabia que ele iria levar isso com muita competência. Competência e dedicação. Aconselhou-me a esperar a época da seca, pois uma chuva com todo o frontal da casa escavado até três metros abaixo do solo daria uma tragédia em dobro, com a mínima chuvinha que fosse. Enquanto isso, ele reformava o resto da casa, consertando aqui e ali.

Esperamos a época da seca e começamos o serviço. Não é preciso dizer que naquele ano choveu prá caramba na seca, o que nos deu um trabalho extra e uma obra que durou muito mais do que os 30 dias programados. Na verdade, ficamos 4 meses naquela tortura. De qualquer modo, o trabalho ficou impecável e, fora as inúmeras inundações, enquanto não ficava pronta, tudo saiu bem, com exceção de um dia. E jamais me esquecerei do China, também por causa disso. Minha gratidão para sempre.

Ocorre que, para cavar o corredor frontal da casa, ficaram expostos os canos que vinham de cima e dos vizinhos ao lado. O “de cima” deve ser lido como a casa dos empregados e os canos, diga-se, mais especificamente, referiam-se à saída do esgoto. Era imprescindível, portanto, tomar o maior cuidado para que não se quebrassem, pois seria água para todo lado e... pior... suja! Assim, cuidávamos desses canos expostos como quem cuida de porcelana chinesa, é claro. Num domingo à noite, no entanto, evidentemente que sem querer, meu ex deixou cair um vaso exatamente no cano de esgoto e toda aquela sujeira invadiu o subsolo. Você pode imaginar no que deu. Aliás, não pode. Não mesmo. Mas tente: um esgoto em seu subsolo, com aquelas prendas boiando e tudo. Sem falar no cheiro. Não havia o que fazer, senão solicitar ao síndico que fechasse o registro do esgoto da casa dos empregados, senão, a cada descarga, lá em cima, seríamos brindados com mais uma sujarada aqui embaixo. Isso mesmo. E... vindo do subsolo, o cheiro inundava toda a casa. Não dava para dormir, não dava para respirar...uns três palmos do chão de água infectada em todo o seu esplendor.

No dia seguinte, de manhã bem cedinho, meu ex partiu para Brasília e me deixou com a solução da m... tanto em seu sentido literal quanto metafórico. Que eu não me preocupasse, o China resolveria o problema. E se mandou. Pois é... o China ficou doente exatamente naquela segunda.

Sozinha, tive a brilhante idéia de chamar outra pessoa pelo menos para consertar o cano. Eu não conhecia ninguém que fizesse o serviço e não podia contar com alguém que me ajudasse, pois meu ex tinha mesmo se mandado. Sem experiência no assunto, rodei como barata tonta sem sucesso por ali. Não encontrei ninguém. E ninguém, evidentemente, se prontificou a me ajudar. Cada um com seus problemas e, claro, tive mesmo de esperar até a terça, rezando para o China ter ficado bom. De brinde, os empregados, vez por outra, abriam o registro, me presenteando com mais algumas prendas e cheiros. E precisava dizer que choveu naquele dia para aumentar o volume da tragédia?

Felizmente, eu dava aula na segunda final de tarde e noite. Só cheguei tarde em casa, aliás, de propósito, para evitar ao máximo o convívio com o desastre. Outra noite sem dormir, estourando de dor de cabeça. Não tinha o que fazer. Era mesmo esperar.

Na terça, quando o China chegou, só pela minha cara e pelo cheiro, ele percebeu a tragédia, mesmo antes de baixar os olhos para os canos. Desceu ao subsolo como um bólido e falou um palavrão que eu aprendi naquele momento. Tão logo falou, olhou para mim e me pediu desculpas, pois ele sempre fora muito cuidadoso comigo. Eu apenas lhe disse que, se conhecesse aquele palavrão, teria dito dez mil vezes durante todo o final de semana... que ele ficasse tranqüilo quanto a isso e apenas me socorresse.

- A senhora fique tranqüila. Hoje só saio daqui quando sua casa estiver em condições. Por favor, saia e me deixe aqui. A senhora não precisa ficar aguentando esse cheiro.

- E você? Vai entrar nessa sujeira sem botas, luvas e tudo que for necessário? Nada disso! Me faça uma lista e vou comprar o necessário.


China sorriu. Um sorriso doce, amigo, mas humilde e triste. Eu podia ler sua alma, tenho certeza disso.

- D. Lali, eu estou acostumado a limpar esgotos, faço isso para ganhar um extra. Entro naquelas caixas há anos, assim como estou. Já estou vacinado...

Sorriu e acrescentou:

- A pinga vacina.

Vacina, pensei, claro que vacina... ou melhor... não vacina: anestesia sua alma da dor. Da dor de viver assim, humilde, fazendo a casa dos outros mais bonita, sem você ter a sua, limpando a sujeira dos outros. Naquele momento, disfarçando eu mesma a minha dor de não poder consertar o mundo, pedi-lhe que eu pudesse comprar botas e luvas para aquele e para os serviços futuros. Mas ele respondeu:

- Não dá para usar, não. Nem adianta. As caixas em que eu entro, nem com capa me livraria da sujeira. Já estou mesmo vacinado. E isso aqui não é nada, perto das caixas de esgoto estreitas em que já estou acostumado a entrar.

Disse isso, já entrando naquela sujeira toda e listando os detergentes que eu teria de comprar. Saí dali o mais depressa que pude, pois não conseguia conviver com o que estava presenciando. O China, meu querido “filho” do coração, desvendava sem querer o tipo de vida que levava, muito pior do que eu podia imaginar que pudesse existir, contando tudo com a mesma resignação de tantos peões nordestinos que vieram buscar sustento no sul do país, do mesmo modo acostumado, acomodado, por necessidade de sobrevivência, com o pior que a vida pode oferecer a um trabalhador: falta de condições para seu trabalho, inumeráveis destratos e humilhações, pouco caso, desamor, salário abaixo da crítica.

Eu não sabia o que fazer. Não sabia como reagir. Sequer podia impedi-lo de entrar naquela sujeira, pois ele já tinha entrado, como quem entra em um lugar qualquer! Comprei as coisas às pressas, voltei mais rápido ainda. Não sabia o que dizer. Sumi dali, subi ao andar de cima. Lembro-me que chorei muitas vezes, durante aquele dia. Não pelo China, mas por todos nós: pelos que fazem, pelos que mandam fazer, pelos que não sabem (ou não sabiam, como eu) que isso era feito assim.

Agora mesmo, ao escrever este conto, quantos trabalhadores estarão entrando em caixas de esgoto para limpá-las como fazia o China... e o que fazemos para impedir isso?

Lembro-me até hoje do olhar doce do China que me conquistou como um filho, um filho da vida, posto a meus cuidados. Seus olhos puxados, seu sorriso macio. Quantos de nós temos o privilégio de toparmos com almas assim? A doçura, a dedicação, a lealdade desse amigo jamais deixarão minhas lembranças. Como me lembro, também, até hoje, do perfume de limpeza que ele deixou em minha casa à noite. Um cheiro de lavanda bem suave no lugar do cheiro insuportável da manhã. Ele deveria ter deixado o trabalho às 16 horas, como sempre combinamos, mas naquele dia, fez questão de deixar tudo limpo e arrumado. Não saiu antes das 22 horas, com certeza.

Na quarta, ele consertou o cano e tudo voltou ao normal. Tudo? Não. Algo havia mudado. E muito. Minha gratidão, uma gratidão que não podia ser paga com qualquer dinheiro do mundo. Não pelo fato propriamente dito, embora seja verdade que, por si só, já valeria o reconhecimento. Mas pela dedicação e pelo cuidado com que ele fez questão de realizá-lo.

E senti que, para ele, algo também havia mudado. Ele não se sentia mais tão funcionário, mas cúmplice. Um cúmplice fiel, cuidador, alguém que estava ali para dar conta do recado. Não havia intimidade até então, mas, a partir desse dia, contávamos piadas um ao outro e ele passou a sorrir. Um sorrisinho discreto, mas solto, de quem se sente mais em casa e sabe que tem a responsabilidade de resolver problemas. Algo como se sentir valorizado.

Foi depois disso que aceitou que o ajudasse a tirar a carteira de identidade. E também foi depois disso que aceitou que eu fosse seu banco para comprar a sua terrinha lá no nordeste.

Algo mágico aconteceu naquele dia. Algo que, até hoje, não sei exatamente identificar. Mas sinto que lhe deu dignidade e valor. Uma mágica da vida. Bendito cano arrebentado. Agradeço, hoje, a meu ex, por tê-lo feito, assim como agradeço por ter-me deixado sozinha, na segunda, para resolver o problema... e... agradeço também à vida por nenhum vizinho ter-se importado com o meu infortúnio ou tentado me ajudar a achar alguém que pudesse quebrar um galho momentâneo. Os meandros da vida são incríveis: selou uma amizade para sempre.

China voltou para o nordeste um ano depois disso. Soube que esteve no Rio uma vez ainda e veio me visitar aqui em casa, pois já havia voltado para o meu apto de Copacabana. De brinde, ainda fechou um buraco de ar condicionado que o inquilino tinha deixado. Doce China. Sempre cuidadoso. Não se conformou em deixar aquilo como estava...

China comprou o tal terreno, perto da casa de sua irmã. Liguei para ele, durante muitos anos, ou melhor, para a casa de sua irmã, todos os seus aniversários até que um ano, o número não conferiu e o perdi de vista. Mas quando ligava ele, todo emocionado, voz embargada no outro lado da linha, me dizia:

- Nossa... a senhora não se esqueceu.

Como poderia me esquecer do China, depois das aventuras que passamos juntos na casa do Humaitá? Impossível... China que dizia gostar de mim como gostou da mãe dele. Pobre China... rico China. Por onde andará nesse mundão de meus deuses? Que eles o protejam como tantas vezes ele me protegeu!

sábado, 5 de fevereiro de 2011

O MURO



Berlim Ocidental, lado de cá do muro, década de 80. Andei ao longo dele na véspera da visita ao lado Oriental. Todas as espécies de rabiscos e pichações eram observados por meus olhos atentos e entristecidos. Mensagens de solidariedade, de revolta, de estupefação e mil outras coisas, escritas em várias línguas. Tive vontade de desenhar uma flor, mas não tinha grafite ou tinta. Me chamou a atenção um desenho de rachadura no muro com um rosto entristecido desenhado nesta suposta fenda, como se estivesse olhando para nós, do lado de cá. Perdi o slide, mas me lembro bem do desenho. Lágrimas no muro, lágrimas nos meus olhos.



Caminhei por ali, sozinha, pensativa, quieta. O que haveria do outro lado? Havia muito espaço para a mente e o coração naquela tarde morna e tranqüila... e eu tinha muito tempo para caminhar solta por ali, sem pressa, perdida e achada em meus pensamentos.

Topei com o museu do muro. Nem sabia que existia. Entrei. Visitei as histórias escritas nos murais e uma infindável mostra de fotos e artefatos construídos pelos cidadãos que fugiram para o lado ocidental. Fugas das mais loucas e perigosas, desesperos de causa, busca de liberdade...



Meus olhos rabiscavam as paredes e os objetos do pequeno museu como quem olha para uma fantasia e não para algo palpável. Meu coração, por certo, se preparava para a visita do dia seguinte.



A princípio, não tinha nenhuma curiosidade de atravessar a fronteira para algo que, com certeza, não traria paz ao meu coração. Fui, no entanto, impulsionada pelos museus que esta parte quase inacessível de Berlim guardava como jóias do tesouro oriental: o Altar de Pérgamo



e o Portal de Ishtar, da Babilônia.





Eu estava, por certo, a apenas alguns poucos quilômetros desses dois tesouros. Era suficiente atravessar a fronteira, ir e voltar incólume.

Incólume... doce ilusão.

No dia seguinte, acordei cedo. O visto permitia uma visita de apenas um dia, das nove às dezessete horas. Por via das dúvidas, não queria perder a chance de ver o que queria com calma, quem sabe, subir na torre para ver a cidade de cima e também ver a célebre quadriga do Portal de Brandenburgo de frente



já que, do lado ocidental, só a podíamos admirar de costas, junto ao muro.



Por certo, o dia me traria uma longa caminhada, e muito pouco tempo para ver tudo com calma.

Havia dois únicos acessos ao outro lado da cidade: uma estação específica de ônibus, que deixaria o turista também num ponto específico do lado oriental e uma estação de metrô, nas mesmas condições. Preferi o metrô através da estação de acesso, Friedrichstrasse.



Após tantos anos, tenho vontade de voltar lá só para ter a alegria inominável de usar a mesma estação para atravessar de um lado para outro sem visto e em plena liberdade. Um dia, quem sabe...

Entre a estação de embarque e a de desembarque, havia duas estações pelas quais o metrô passava, devagar, mas sem parar. Estações desativadas, quase totalmente às escuras e... meu primeiro impacto: nas plataformas, soldados com cães pastores alemães. Sensação esquisita de perda... falta de ar.

O desembarque levava os passageiros por um corredor e um conjunto de cabines, como essas de migração. Senti que, realmente, estava entrando em outro “país”. O soldado de plantão virou meu passaporte pelo avesso, conferiu com muita atenção minha foto. Pude perceber que se mostrava insatisfeito. Minha foto me mostrava com cabelos compridos e eu estava com cabelos mais curtos. Enfim, consegui passar. Nova caminhada por um corredor interminável. Senti-me esquisita, caminhando em meio a uma massa de pessoas mais “levadas” do que “caminhantes”. Eu acabava de sair de uma cidade cheia de luzes e cores, alegre, buliçosa, em cuja véspera tinha tido meu inesquecível encontro com o velhinho dos correios, o famoso “Papai Noel” a que já me referi num conto anterior – “Quem diria”.

Aquela sensação não combinava em nada com o que tinha vivenciado até então. O corredor acabava numa porta enorme, de aço, que se abriu em dois e, finalmente, pude respirar o ar da cidade.

A primeira impressão foi a de que eu tinha saído de um filme colorido para um filme em preto e branco. Todos os prédios em cinza, com exceção dos públicos, que sustentavam paredes em vermelho. Os carros antiqüíssimos, uma cidade limpíssima, mas... triste.



Fiquei aborrecida, ao voltar para minha casa, por ter tirado tão poucas fotos. Mas estava tão impressionada com o que via e sentia, que não me arriscava a grandes feitos. Tudo ali transpirava disciplina, constrangimento, sisudez. Fiquei um pouco tonta e perdida por algum tempo, perambulando sem muita direção. Mas logo depois tomei o rumo do Portal de Brandenburgo. Não havia tempo a perder. Pelo caminho, observava a singeleza do povo, as vestes simples, o recato. Era muito fácil discernir entre moradores e turistas.

Passei por um soldado, provavelmente, em hora de descanso. Estava numa pequena ponte, à beira de um rio. Não tive coragem de tirar uma foto dele, mas tirei do rio, para guardar de lembrança.



O jovem me chamou a atenção por sua farda remendada, seu olhar longínquo. Em que estaria pensando? Em seu amor, talvez? Em sua vida? Em suas possibilidades? Como gostaria de saber o que escondia aquele rosto tão triste e sombrio... para mim, no entanto, aquele rosto não era apenas o rosto do soldado. Eu o sentia como o rosto da cidade. Por todos os lados que andei, a impressão era a mesma...

Passei por alguns lugares com lojas e foi aí que senti pena de não ter usado mais minha máquina de fotos: as vitrines ostentavam, faceiras, os livros de Max, coisa que não víamos com facilidade no Brasil, naquela época. Mas o que mais me chamou a atenção foi a falta de variedade de ofertas. Numa sociedade sem concorrência, as câmeras eram daqueles modelos bem antiquados, do tipo caixote, enquanto eu sustentava minha Fujika último tipo. Os carros antiqüíssimos... e muito poucos pelas ruas. Enfim, era mesmo como se eu tivesse retrocedido dezenas de anos, ao ultrapassar aquela porta de aço. Choque cultural profundo.

Cheguei ao Portal de Brandenburgo e foi aí que me surpreendi mais ainda: havia um policiamento ostensivo. Por que seria? Um carrão último tipo, estacionado, me chamou a atenção. Minhas antenas observadoras procuravam seus donos. Como teriam atravessado a fronteira??? Olhei para o Portal de Brandenburgo e em volta. Muitos soldados atentos a nós, turistas! Percebi que a visita ao Portal exigia distanciamento. Havia, no entanto, um pequeno grupo de pessoas que tinha tido o privilégio de atravessar a linha de segurança. Quem seriam? Do grupo se destacavam dois homens fardados impecavelmente, num contraste quase cruel com as vestimentas do triste soldado que eu vira ruas atrás. Olhei novamente para o carro. Bandeira soviética. Meu coração bateu mais forte. Lembrei-me imediatamente da leitura de “A revolução dos bichos”. Era isso. Exatamente a concretização da leitura que eu via se descortinar a minha frente. Eu precisava fotografar. Levei a máquina ao rosto e fui imediatamente interpelada por um soldado que estava perto de mim! Não era permitido fotografar o grupo de visitantes soviéticos! Incrível.

O soldado não falava nenhuma língua que eu pudesse entender. Me parecia russo, pois meus ouvidos não sentiram nenhuma familiaridade com o alemão que eu estava ouvindo por aqueles dias. Fiz que sim, com a cabeça e apontei para o Portal, como quem diz que está apenas interessada na atração turística. Naquela época, as câmeras eram mecânicas e as fotos eram tiradas em rolos. Fosse digital, eu não teria conseguido usar os maravilhosos recursos de abertura de ângulo, sem que ele percebesse ou pudesse pedir, depois, para conferir o que eu tinha fotografado. Assim, o recurso me permitiu tirar essa prenda. Pena que não deu para usar a zoom... daria na pinta demais:


Tirei a foto e, como boa carioca, sorri para o soldado, como quem tinha feito a coisa mais inocente do mundo. Não consegui, no entanto, tirar a foto do carrão. Depois, dei uma disfarçada e esperei para conferir mais de perto. Isso mesmo: chiquérrimos.

Tudo igual. Aqui, lá, em qualquer lugar. Dentro e fora do muro... por caminhos diretos ou tortos, a exploração do homem pelo homem parece justificar-se por si mesma. Lágrimas nos olhos, descrença já previamente concebida. Apenas a constatação pura e simples de que a alma humana caminha segundo suas próprias escolhas, independente de crença, religião, política, cultura. O que é bem, o que é mal... tudo misturado, num balaio de intenções as mais diversas. Tudo isso invadiu meus pensamentos por tempo que não pude perceber no relógio. Nada como visitar um lugar sem pressa, passo a passo, diante do canto e do desencanto. Viver por dentro e por fora, pelos olhos e pelo coração.

Impossível, mais uma vez, sair incólume da experiência.

Mas era preciso viver outras sensações. Dali, segui meus passos buscando o encantamento dos museus: o Altar de Pérgamo me esperava altaneiro e o Portal de Ishtar me fez sonhar com um passado de povos de muitas aventuras. Curti cada minuto, cada mosaico, cada degrau dos inúmeros e maravilhosos monumentos. Parte boa da visita. Privilégio.

A volta me brindou com outro soldado da migração que quase não acreditou que a minha foto combinava com o meu rosto. Enquanto esperava o sisudo companheiro conferir os dados, fiquei pensando que só me faltaria a aventura de quererem me prender por ali. Mas passei.

Não posso dizer que foi uma visita ao inferno, pois os museus enfeitaram minha visita. Mas com certeza, povoei de uma profunda tristeza o meu coração, que saiu muito oprimido com tudo que vi por lá.

No dia seguinte, pelo lado Ocidental, caminhei novamente pensativa, ao longo do muro. Queria saber o que eu me diria por dentro. Num determinado momento, sem que eu me desse conta, de tão rápido foi o impulso, chutei aquele concreto com força, com ímpeto, com raiva, com determinação. Fiquei dois dias com dor no pé, pela força do impacto. Entendi de pronto, por dentro, a indignação dos ocidentais diante daquela infâmia. Parentes separados, ruas cortadas, comunicação impedida, passagens proibidas. Voltei ao museu do muro e todo ele ganhou outro significado para mim.

Destaco para você a foto de uma pixação no muro, a pintura de uma mão que se insinua por uma "fenda", oferecendo uma flor a outra mão, do outro lado, que se estende para pega-la. Exatamente o que simbolizava, naquela época, a busca de retratar a profundidade do sofrimento da separação. Quantos parentes e amigos sofriam desse mal... A foto não está muito nítida, pois o slide é antigo e a própria pintura não era nova. O quadro faz parte do acervo do museu.



Anos depois, quando o muro foi derrubado, infelizmente, eu não pude participar in loco da festa. Mas não perdi nenhum noticiário sobre o acontecimento... e acompanhei de perto, tão perto quanto as notícias permitiam, como a Alemanha teve de se deparar e contornar a diferença cultural que se impôs, depois de tantos anos em que irmãos foram separados por quilômetros de desvario humano.

E me lembrei daquele soldado da ponte... por onde andaria? Estaria sorrindo?