sábado, 30 de março de 2013

VIDA FÁCIL



Eu gostaria de saber quem foi o engraçadinho(a) que inventou a expressão “mulher de vida fácil”. 

E é bem antiga, pois eu era muito jovem quando a ouvi pela primeira vez.

Vida “fácil”... para contrastar com o quê? Com o resto das vidas, consideradas "difíceis"? 

Nos dias de hoje, com olhar mais atento, talvez a sociedade perceba que de "fácil" esse tipo de vida não tem nada. Pelo menos, espero que sim.

Um dia desses, vim para casa pensando nisso, ao esbarrar com um grupo dessas moças que passou por mim, com seus vestidos provocantes, saltos extremamente altos, perfumes fortes, rostos bem maquiados... e você, que me lê com mais frequência, já deve ter-se acostumado com minha mania de pensar mil coisas sobre a vida, enquanto volto a pé para casa. 

Foi pensando nisso que me dei conta do quanto essa “vida fácil” defende minha vida “não menos fácil” cotidianamente. Trabalho muito e gosto do meu trabalho. Mas isso me toma, muitas vezes, meu tempo de caminhada cotidiana, que procuro manter por gosto e por saúde. É por isso que, com frequência, ela é feita à noite, às vezes até bem tarde, ao longo do calçadão de Copacabana, à beira mar, o que considero, aliás, um privilégio carioca. 

No calçadão de Copacabana estar à noite é muito comum. Até as 23 horas, se o tempo e o clima ajudam, ele fica bem povoado de bicicletas, corredores e caminhantes que ali vão para refrescar a cabeça, manter a forma ou a saúde. A questão, portanto, não é o calçadão, mas a volta para casa, entre os quarteirões muitas vezes desertos.

Isso não acontece na região onde moro, pois, a uma quadra de casa, fica a chamada “Boca Maldita”. A rua é a Prado Junior e lá não existe noite. Nela estão as boates de streapers, uma farmácia muito iluminada e conhecida que fica aberta 24horas e desta rua sai a maioria das moças e mulheres da noite copacabanense, em busca de seus clientes. É justamente por isso que posso voltar de minhas caminhadas tardias, embicando da praia por ali, até a esquina de casa. Depois, é dobrar uma quadra e já estou no meu prédio, sempre em total segurança.

Graças a essas moças noturnas e às boates da "Boca Maldita" é que tenho o meu sossego e a minha segurança. Mas... em minhas memórias, reconheço que é muito mais do que isso.

Lembro-me de que, um dia, vinha tão distraída, que atravessei do calçadão para as quadras um pouco antes do ponto habitual. Um  homem,  já um pouco tocado pela bebida se aproximou para aquele tipo de cantada já tão conhecido... esse tipo de papo que você sabe que não leva a nada, de quem tenta se aproveitar da situação. Dei um “sai para lá” e continuei caminhando. Mas o homem insistia e me acompanhava de perto, com aquelas perguntinhas que não merecem resposta. 

Olhei em volta e me senti um pouco assustada: quase ninguém, a não ser um grupo de moças e mulheres esperando seus clientes, à beira da calçada, como é hábito ao longo de um trecho da Av. Atlântica. Instintivamente, procurei me aproximar delas. Tão logo o fiz, elas perceberam a minha situação, de pronto se aproximaram e se apossaram do tal sujeito, me dizendo entre dentes: “vaza”. 

Ordem dada, ordem obedecida. Me afastei rapidamente deixando o tal intruso entregue às redes de quem sabe o que fazer.

Mas não resisti. Deixei passar um tempo, dei a volta e  fui agradecer. Me aproximei do grupo, já sem saber se encontraria as mesmas. A rotatividade é intensa por ali. Mas elas estavam lá. Engrenamos num papo e pude saber mais delas. 

Das cinco que ali estavam, três eram estudantes universitárias. Estudavam de dia, com muita dificuldade, pois iam do trabalho noturno para a faculdade, passando em casa apenas para trocarem de roupa e pegarem os livros. Sustentavam a faculdade e a vida com esse trabalho e esperavam terminar o curso para seguirem outros rumos. 

Por que esse trabalho? 

Porque não tinham conseguido colocação em outro ou porque ficaram desempregadas. Quatro entre as cinco não pretendiam continuar nessa vida. A quinta me disse que estava esperando aparecer um estrangeiro que se “embeiçasse” por ela e a levasse embora. Foi quando soube que isso é muito mais comum do que se pensa. Quase todas elas, por aqui, falam pelo menos um pouco de inglês.

Falaram um pouco de suas vidas e de como “ralam” para sobreviver. E contaram também das que trabalham nas casas noturnas, sobre a miséria que ganham e o quanto tem de fazer, senão são mandadas embora. 

Estar perto da realidade é outra coisa bem diferente...  é bom poder viver e conviver com o que me cerca e poder ter uma opinião de “solo”, ou seja, de experiência “in loco”. Não é à toa que, quando trabalhava como pesquisadora, meus trabalhos sempre envolviam pesquisa em campo. E levantar dados diretamente em campo é outra coisa, outra faceta bem diferente da história que se conta em livros.

 Estava comentando sobre isso com elas, quando soube da quantidade de pesquisas que tem sido feitas sobre o tema, em dissertações de mestrado, teses de doutorado, em pesquisas acadêmicas. Uma delas me indicou até bibliografia sobre o assunto.

Saí dali bem diferente do que cheguei e quase agradeci à vida pela funesta impertinência do “ilustre cavalheiro”. Quando lhes perguntei o que tinha sido feito dele, elas me disseram que o trataram profissionalmente e ele, por falta de saída, escafedera-se.

Após esse tempo de delicioso encontro, no entanto, as moças logo pediram para eu me afastar, pois precisavam trabalhar: chamar atenção dos clientes. 

Saí dali em busca de casa, lógico, pela “Boca Maldita”. Por coincidência (?) meu olhar distraído esbarrou com o cartaz de uma das boates: 

“Barbarella apresenta: A vida é um carnaval”.

É...

sábado, 23 de março de 2013

MISÉRIAS




Hoje, passando por uma esquina de volta para casa, vi um menino de rua tirando, com a mão, comida de dentro de uma lata. Estava quieto e tranquilo, literalmente... almoçando.

Nosso cérebro tem mesmo um botão liga-desliga. O meu ligou imediatamente, desfiando uma lembrança perdida.

Década de oitenta. Eu estava realizando uma pesquisa sobre desenvolvimento linguístico e cognitivo em crianças de dois a dez anos de idade, de ambos os sexos e de todas as classes sociais. Uma pesquisa imensa, de peso, que envolveu muitos alunos de iniciação científica. Era preciso achar muitas crianças para  realizar o levantamento de dados. Nas classes sociais mais baixas, muitas vezes, caminhamos por lugares nunca antes imaginados. 

Não íamos todos juntos. Eu enviava os alunos para os lugares que eu considerava mais confiáveis, principalmente, quando se tratava de classes mais baixas. Afinal, a responsabilidade por sua segurança era minha. Quando se tratava das então chamadas “favelas”, eu mesma ia. Conseguia alguns contatos que me introduzissem lá e, a partir daí, o passe era livre. E foi uma das experiências mais marcantes de minha vida, só comparável com a que eu tinha tido quando lecionei em zona rural. Se você leu o conto “Reginaldo” deve se lembrar como foi.

Pois então. Eu subia por aquelas ruelas, muitas vezes escorregadias, com doze quilos de equipamento nas costas: uma pequena televisão, um gravador, um pequeno vídeo cassete para passar as fitas de dados, brinquedos, pastas com os testes, e uma garra de pesquisadora. Ia protegida pela confiança já conquistada pelos que ali haviam me introduzido. 

- Bom dia, como vai?

- Cuidado aí, professora, hoje está escorregando. Choveu. 

Depois do convívio com Reginaldo, eu aprendera a confiar e ser confiada. Subia tranquila, em busca de meus endereços:

- Procuro a casa da D. Maria, mãe da Francisquinha, uma de dois anos.

- Vai subindo até a casa com janela de ferro, depois vira à direita. São mais três casas.

Lá ia eu. 

Na década de oitenta, os barracos não eram como os de hoje, que já estão bem mais apetrechados. Não havia televisão. Nem geladeira. Muitas vezes, nem móveis. Chão de terra batida.

E esse foi um dia para aprender muitas coisas. E tudo de uma vez só.

Francisquinha era uma menina lindinha e esperta. Lembro-me até hoje da competência em suas respostas para uma menina de dois anos. Quando cheguei, ela estava almoçando, sentada no chão de terra batida, pegando a comida de uma lata de leite em pó, com sua mãozinha pequena.Vez por outra, umas galinhas entravam, tentando beliscar algum alimento roubado da pequenina princesa que me sorria. Eram enxotadas pela mãe que lavava roupa do lado de fora e me havia dito para ir entrando... que eu ficasse à vontade.
 
Naquela época, já havia luz nos barracos. Não havia tomadas, mas eu já me acostumara a ligar minha TV diretamente nos fios, arrancando o pino de conexão. Esse já não era o problema. O vídeo e o gravador tinham baterias. Fosse hoje, toda aquela parafernália teria sido substituída por um levíssimo note. Mas estávamos na década de 80. Nem se falava em computador, quanto mais em note... era mesmo carregar os doze quilos para cima e para baixo, rezando para ter eletricidade na casa. Senão, era pedir um fio emprestado ao vizinho, o que me custava levar, também, um fio de extensão... mais um peso.


O problema era me acostumar com a pobreza do lugar, sem fazer cara de estranhamento. Com a falta de recursos, este era um mundo que se descortinava perdido em um espaço totalmente fora da compreensão dos olhos pretenciosos de nossa sociedade.

Lembro-me de que, enquanto arrumava meu equipamento, a pequenina Francisca brincava com o resto da comida em suas pequenas mãos. E comia satisfeita pelo simples fato de ter o que comer... parecia feliz com minha visita, alguém diferente, que vinha brincar com ela. 

Olhava essa pequenina joia de vida, sentada no chão de terra batida, numa casa varrida e limpa. Num canto, colchonetes enrolados eram o único vestígio de habitantes noturnos. A mobília daquele único cômodo era composta de uma pequena mesa bem tosca, duas banquetas e umas prateleiras feitas com madeiras de construção, que faziam o papel de armário. Uma cortina de plástico servia como porta, semi-escondendo o conteúdo. Tudo que pertencia à casa estava guardado ali. Nada mais.


Cada dia em que eu descia daquela “favela”, era certo ter muito em que pensar.  Mas a casa de Francisquinha apenas reproduzia o que eu já estava me acostumando a ver a cada vez... e não seria esta, exatamente, a novidade que me aguardava naquela dia.

Brinquei com a pequena princesa, apliquei os testes e me preparei para ir embora. Quase final de tarde. Naquele dia eu subira o morro muito além do que o comum... já estava me familiarizando com a comunidade e uma mãe indicava outra, cada vez mais alto, cada vez mais longe, cada vez mais dentro... cada vez mais pobre... eu ia entrando aqui e ali, tendo a oportunidade de ver o que era, na verdade, o que nós, ingênua classe média, chamamos de “pobreza”.

E ela se mostrou para mim, especialmente naquele dia, em toda a sua cruel realidade, quando comecei a descer, passo a passo, pelas deslizantes vielas, em busca do asfalto. Uma jovem mãe, com um menino de cerca de três anos no colo, saiu de seu barraco. Ao lado, um chiqueiro, com uma porca. Se alguém ainda não viu um chiqueiro pelo menos sabe imaginar o que é: lama, lama, lama (necessária para manter o animal fresco, naquele calor de rachar). Aquele era assim mesmo, com comida num canto, dentro de uns latões cortados horizontalmente e... a porca. A mãe carregava o filho num dos braços e sua bolsa e mais umas tantas sacolas no outro. Pousou cuidadosamente o menino dentro do chiqueiro, como quem coloca seu filho dentro de um cercado. 

Eu sabia, eu já havia aprendido, já fora avisada enfaticamente de como deveria conviver num ambiente abaixo no nível da pobreza: olhos treinados para não se admirarem com nada e boca ensinada a não se meter com a vida alheia. Mas não resisti.

- Você vai deixa-lo aí?

A mãe me olhou, transbordando necessidade, mas, ao mesmo tempo, sabedoria (de uma sabedoria que não passa por nossa cabeça entender!)

- Não tenho com quem deixar. Minha mãe chega no final da tarde. É só por um tempinho. E ele, aqui, está seguro. Se alguém tentar mexer com ele, ela avança.

E apontou a porca.

Entendi, imediatamente, que era um pacto entre fêmeas, um trato entre mães. Com certeza, seu filho estaria seguro ali. Após conviver por dois meses, duas vezes por semana, com os retratos daquela comunidade, eu me via, enfim, sem qualquer capacidade de julgamento. Era o que era. E eu estava ali mais para aprender do que para ensinar.

Desci lenta e medrosa de escorregar no barro molhado pela chuva recente. Cuidava de cada passo por aquelas vielas estreitas, com meu peso nas costas... mas o que pesava mais era, na verdade, inominável. Lágrimas nos olhos. Nó na garganta. Um sem saber o porquê de tudo.

Hoje vim para casa pensando no menino que almoçava, tirando sua comida de uma lata, numa esquina perdida de Copacabana. Tranquilo, quieto, sozinho. Pensei no menino do chiqueiro. Pensei em sua mãe. Pensei na porca. 

Só não pensei na solução. Lágrimas nos olhos. Nó na garganta. Um sem saber o porquê de tudo.

sexta-feira, 15 de março de 2013

HELENA




Quando penso que não vou ter sobre o que escrever, minha cabeça pulula de ideias... é a vantagem de ter vivido muito, ou melhor, intensamente. Aos sessenta, fico pensando o que foi esse percurso até aqui. E posso dizer que, mesmo quando era rotina - e, muitas vezes, chata - ainda assim sempre havia o que contar.  Mas há pessoas e coisas que marcam nossas vidas para sempre. E Helena foi uma delas!...

Lembrei-me dela, nesta semana, ao mexer em papéis antigos. Me deparei com uma frase e toda a história que tive com Helena generosamente transbordou de meu coração.

Helena.

Na verdade, professora Helena. Aliás, por coincidências da vida, com meu sobrenome: Helena Fernandes. 

Helena, minha professora de Literatura Brasileira. Um gênio. Quando aquela mulher se sentava ali, na frente da classe, podia contar: era peso de aula inaugural!!!

Mas Helena tinha um defeito. Bebia. E muito. Acho que ela não aguentava sua própria genialidade. Só podia ser.

De qualquer modo, se ela bebia álcool, para contrabalançar, eu bebia suas aulas,  sentada  na fila da frente... literalmente (ou literariamente?) embevecida...

Talvez eu tenha conquistado Helena exatamente por esse meu encantamento. Adorava Literatura Brasileira e, com uma mestra como essa esbanjando sabedoria e carisma, não podia dar outra: acabei por chamar sua atenção. E fui uma de suas melhores alunas, no decorrer dos três longos e deliciosos anos em que acompanhou nossa turma. 

Por mais que se queira ser indiferente, não tem jeito. Há alunos que conquistam seus mestres. E sei que conquistei Helena. Particularmente, ela me chamava de “minha tulipa”. Até hoje não sei por que ganhei esse apelido. Talvez porque fosse de perfil delgado (uma forma delicada de dizer que eu era magérrima...). Não sei... só sei que eu era sua "tulipa". Uma "tulipa" que estudava sua disciplina com carinhos de filha, com ganas de melhor aluna...

No ano da formatura, Helena me convidou para ser sua assistente. Não aceitei. Eu adorava Literatura, mas queria dar aula de Linguística. A Literatura tinha o espaço do “sagrado” em meu coração; a Linguística, o espaço da conquista profissional. Duas coisas completamente distintas.

Mas Helena bebia. E bebia muito. E foi por isso que seu fígado não resistiu. Quando adoeceu pela primeira vez, me chamou no hospital. Pediu a “sua tulipa” que a substituísse, em suas aulas, até que se recuperasse. 

Fiz isso por três meses, até que minha querida mestra voltasse. Voltou. Mas por pouco tempo. Hospitalizou-se, novamente. Pediu-me para substitui-la para sempre, dizendo que sabia que não mais voltaria. 

Olhei para minha mestra-mãe. Eu sabia que, se dissesse sim, ali, seria responsabilidade para sempre. E embora eu a amasse muito... não sabia o que fazer. Mas é nesses momentos que as verdadeiras mães se revelam.

Pegou minha mão, com carinho. Quem conheceu Helena, dificilmente acreditaria. Uma mulher incrível, mas incapaz de um gesto físico de carinho despreocupado. Helena estava sempre ali, forte, firme, presente, mas distante das emoções. Fechada. Mas eu sabia que era fachada.

Pegou minha mão, com carinho. Sorriu. 

- Uma pena, minha tulipa, mas eu sei. Não precisa responder. 

Sorriu mais uma vez. 

E, pela primeira vez, tive coragem de ultrapassar a barreira da distância, antes sempre rigorosamente imposta. Beijei sua face uma, duas vezes... reconhecendo o desprendimento de não exigir de sua “tulipa” um compromisso para sempre.

- Quero muito que você seja feliz...

Helena morreu dias depois.

E eu dei aula para sua turma até o final do semestre.

No último dia, olhei para os alunos e disse que me despedia do magistério de Literatura Brasileira para seguir minha vocação profissional. Disse-lhes que levara a turma até o final, por uma única e inesquecível razão, a razão que levaria em meu coração para sempre. 

Voltei-me e escrevi no quadro negro a tal frase que encontrei outro dia, num de meus escritos amarelados pelo tempo:

À imagem pura e plena de Helena,
Que já se esconde no pó de nossa estrada.


Onde quer que você esteja, talvez goste de saber que adoro escrever contos...