sábado, 30 de outubro de 2010

REGINALDO


Formada em 1973, emendei em um concurso público para professora do Município do Rio de Janeiro, ensino fundamental. Naquela época, passar em concurso, com raras exceções, significava ser mandada para depois de onde judas perdeu as botas. Será diferente hoje em dia? Não sei. O fato, em si, não me chateou. Apesar da distância, dar aula em uma área menos favorecida me atraía, alimentando minha vontade de estar mais próxima da realidade de nossa sociedade carente. O problema era chegar lá.

Como tinha sido convidada a dar aulas na Universidade onde acabara de me formar, ir para Campo Grande, zona rural, exigia uma estratégia em alto estilo, pois os horários praticamente se emendavam. E era uma viagem, sem dúvida. Na mocidade, no entanto, isso não conta e está sempre tudo bem.

Aos novatos estavam sempre reservadas as piores turmas. E uma delas era conhecida como a turma do Reginaldo. Soube o que isso significava ao pegar meu horário e os diários de classe na secretaria:

- Você vai pegar a turma do Reginaldo? Chi...

Como recém formada, sem experiência nenhuma, aquele “chi” esfriou cada vértebra de minha coluna. Mas não tinha jeito. Fingi que não tinha ouvido e segui para o desconhecido. Justamente a turma do Reginaldo estava com o horário cortado pelo recreio. Se a turma era difícil, dar duas aulas interrompidas por um recreio, seria pior ainda. E, no dia seguinte, a turma pegava os dois últimos horários, o que também era pesado, já que os alunos, geralmente, ficam agitados, ansiosos por irem embora. Mas eu procurava não pensar nisso.

Entrei na sala com atitude de quem sabia o que estava fazendo. A porta ao fundo da sala, me fez percorrer o caminho até a mesa, passando pelas mesas dos alunos. Literalmente, andar pelo meio da turma. Cumprimentei-os, ninguém respondeu. Logo na entrada, ouvi a observação de um dos meninos:

- É isso que vai dar aula pra gente?

E ele tinha razão. Aos 22 anos, concordo que eu tinha cara de uns 16, no máximo. Ainda tinha de mostrar minha carteira de identidade em filmes de 18! Fingi não ouvir e consegui alcançar a mesa viva.

Eu estava recém formada, com tudo fresquinho na cabeça e uma vontade imensa de ser uma boa professora. Mas era uma diferença gritante sair de uma universidade da zona sul, onde horas atrás eu tinha dado aula de grego e cultura clássica para enfrentar a turma do Reginaldo, mais da metade dos alunos trepetentes, isto é, cursando o mesmo nível pela terceira vez. Mas aí justamente talvez estivesse o sentido de estar ali, era o que contestava minha alma jovem e cheia de ideais.

Apresentei-me à turma e parece que aquele momento foi o único em que consegui ter a turma atenta nos dois próximos meses. Eu estava doida para saber quem era o Reginaldo, mas não dava o meu braço a torcer. Também não queria me arriscar a fazer a chamada da turma logo no começo, já que eles estavam atentos. Mas durou pouco, havia um bulício que me fazia sentir como se estivesse ali dando aula a ninguém. Foi um custo falar até que a campainha do recreio me salvou. Ufa, intervalo. Mas um negro de alto porte levantou-se, dirigiu-se à porta e fechou-a, dizendo:

- Hoje ninguém sai.

Reginaldo. Dispensado de melhor apresentação. Encostado à porta, olhava para mim. Me lembro que entrei em pânico e dizia para mim mesma ter calma. Tudo me passava pela cabeça, menos gritar por socorro. Não teria voz, eu sei. Aí, me lembrei da minha professora de Estrutura e Funcionamento de Ensino, que aliás, em termos de conteúdo nada teria a dizer para mim naquele instante. Mas aguçou minha memória uma observação que ela tinha feito num dos intervalos de aula: muitas crianças só iam à escola por causa da merenda. Santa professora, nem sabe como isso me salvou, nesta hora à beira do abismo. Olhei para a turma e disse:

- Eu estou com fome e vou lanchar. Quanto a vocês, não sei.

Me dirigi à janela, pulei, dei a volta pelo pátio e entrei na sala dos professores. Não sabia o que fazer. Olhando pela janela, vi a turma no pátio. Ele tinha liberado a turma. Falar com a diretora? Tinha medo de perder a autoridade de vez, não só perante a turma, mas também pela vergonha que sentiria diante dela, uma senhora, perto dos meus inexperientes 22 anos. A próxima aula era na mesma turma, o que fazer? Com certeza estariam esperando por alguma repreensão, alguma atitude, talvez eu fosse acompanhada da diretora ou coisa assim. Não fiz nada, talvez mais por medo do que por iniciativa. Voltei morrendo de medo por dentro, mas fingi que nada tinha acontecido. Passei uma redação, pois me sentia incapaz de dar aula. Meu medo era o de que simplesmente se negassem a fazer. Reginaldo me enfrentou novamente:

- E se eu não quiser fazer?

- Não faça. Não vai valer nota mesmo. É só para eu sentir como vocês estão escrevendo.


Não me lembro se ele escreveu. Lembro-me apenas que o nível da turma era baixíssimo. E a turma era completamente diversificada, tendo alunos de 12 a 17 anos. Reginaldo era o mais velho e também o mais forte. Segundo o conceito dos professores, também o mais marginal. Eu não sabia até onde corria o significado de “marginal” e era, na verdade, a última coisa que queria saber para tentar enfrentar melhor o meu medo, naquele dia.

O fato é que o horário escolar terminou e eu fui apresentada a outra intempérie: os professores deveriam sair juntos para atravessarem, com segurança, a Estrada Comari, rumo a Barão do Monte Alto. Se não fosse com o grupo, não daria para pegar o ônibus das 19:20. Ninguém se arriscaria a descer sozinho pela Comari, mato alto dos dois lados, naquela escuridão. Sair no horário passou a ser, portanto, uma questão de honra, todos reunidos na saída da escola às 19:05. Quem não estivesse ali, não dava para esperar. Significaria perder o ônibus.

Cheguei em casa meio aos prantos. Jurei nunca mais voltar lá. Telefonei a uma grande amiga, psicóloga, bem mais velha do que eu, que já tinha trabalhado em um presídio no Rio de Janeiro. Que sorte a minha! Deu-me todo colo profissional que eu precisava. E soube dá-lo como ninguém. Por uma questão de responsabilidade, voltei no dia seguinte. Dali, teria todo o resto da semana para saber o que eu faria e, com certeza, muitos e muitos papos com essa amiga caída dos céus. De pronto ela me fez ver que seria questão de honra conquistar Reginaldo. O resto seria fácil. Mas como conquistar aquela fera? Meu estômago dava um nó só de olhar para ele. Conversei também com a diretora. Por incrível que pareça, o que ela disse foi fundamental:

- Reginaldo não é má pessoa, querida. É um jovem muito sofrido, nem sabe quem é o pai. Outro dia o vi entregar roupa numa casa aqui perto. Sua mãe é lavadeira. É certo que tem um comportamento marginal, mas acho que é a forma que ele encontrou de ser respeitado nesse fim de mundo. A região aqui, como você vê, não é fácil. E ele é muito respeitado na rua por todos.

Que mulher! Ao contrário de todos, na escola, tinha o olhar de lince, o carinho, o cuidado, a seriedade que, logo percebi, eram os responsáveis por faze-la tão querida por professores, funcionários e alunos.

Mas voltemos aos fatos: conquistar Reginaldo, o menino que não era má pessoa. Sorri no meu desespero e parece que a vida estava começando a facilitar as coisas para o meu lado. Eu ia à escola às segundas e terças. Na segunda seguinte, ao entrar na sala, vi Reginaldo com dois profundos cortes no braço. Muito fundos. Não perguntei nada e segui em frente. Tinha um pacto com minha amiga de seguir a risca suas orientações e não queria dar mancada alguma. Por que eu continuava lá? Não me pergunte, pois até hoje eu não tenho essa resposta. Minha amiga, no entanto, era a tábua de salvação e à noite contei o que vira a ela. No mesmo momento ela soube identificar o ferimento: briga com navalha dupla.

- O que é isso?

- Briga com duas navalhas em uma só mão. Precisa ter muita destreza e parece que esse seu aluno tem. Mas levou um bom talho. Quando se luta com duas navalhas o objetivo é ferir o adversário cortando-o com as duas lâminas ao mesmo tempo. Assim, a cicatrização é muito lenta, pois a pele que puxa para cicatrizar um lado, abre a ferida do outro. Esse seu menino não é brinquedo não e, se ele só se feriu no braço, com certeza levou a melhor.

- O que eu faço?

- Nada muito direto. Compre tudo que você achar que seria bom para curativo, coloque num saquinho discreto e, quando passar pela carteira dele, amanhã, coloque em cima da mesa dele e diga baixo e discretamente: para o seu ferimento. Depois, siga em frente e finja que não fez nada. Vamos ver como ele reage. Se a diretora disse que ele é um bom menino e como me chamou a atenção que ele entrega a roupa para mãe, pode ser mesmo que talvez esse seja um bom começo. E não olhe para ele durante a aula, de jeito nenhum. Assim, ele não se sentirá focado no resto do tempo. Pode constrangê-lo ou mesmo irritá-lo.


Fiz exatamente o que ela mandou e procurei não olhar para ele durante toda a aula, como estava prescrito.

Na semana seguinte, consegui dar alguma aula na segunda, muito embora tivesse de enfrentar o período antes do recreio e depois do recreio. Na terça, a turma pegava os dois últimos tempos e eu caí na besteira de dar uma redação. Foi aí que aconteceu. Reginaldo e seu amigo mais chegado, Paulo César, esticaram o tempo e diziam não terem terminado a redação no final da aula. Eu não sabia o que fazer, já que teria de me encontrar com o tal grupo de professores para pegar o ônibus. Se perdesse o grupo, teria de esperar os professores do turno da noite saírem. Chegaria de madrugada em casa! Mas não tive coragem de reagir. Estava nervosa, sem saber como resolver o problema e percebia que eles estavam mesmo enrolando. Parecia de propósito. Me entregaram o trabalho depois das 19:05. Eu perdera a companhia dos colegas. Jurei que não voltaria mais ali. Não precisava me expor a tal ponto. Me encaminhei para a diretora para pedir orientação. Já tinha ido embora. A secretaria fez aquele “chi”, de novo. Acho que ela tinha esse “chi” na ponta da língua para tudo. Deveria ser vício de linguagem. Aconselhou-me, no entanto, a ficar no portão do colégio para tentar, quem sabe, alguma carona de alguém que tivesse ido de carro ou algum grupo que fosse descer a rua. Caso contrário, só mesmo esperando terminar o turno da noite. Telefonei para casa avisando que perdera o ônibus. Embiquei para o portão. Dois vultos na penumbra, do lado de fora. Nada mais nada menos do que Reginaldo e seu amigo. O que estariam fazendo ali? Ao me verem, se aproximaram e Reginaldo me disse:

- Professora, vamos acompanhar a senhora até a Barão.

Referia-se à Barão do Monte Alto, a tal rua do ônibus, lá embaixo, depois de atravessar sete longos minutos da tal Estrada Comari.

Senti meus ouvidos zunirem, fiquei um pouco tonta, meu estômago congelou. Eu não sabia se isso era bom ou mal. Mas todo o meu corpo se sentiu em perigo. Adrenalina pura. Eu tinha de resolver o que fazer. Negar? Estaria perdida nas aulas seguintes. Aceitar? O que poderia me acontecer? Acreditei nos anjos, acreditei nas palavras da diretora “Reginaldo é um bom menino”, mas estava muito claro para mim que aquilo era uma armação. Eles tinham se atrasado e estavam me esperando ali. O que fariam comigo? Até hoje, eu não sei por que aceitei. Se alguém estivesse me contando essa história eu diria com certeza que, se fosse eu, não tiraria os pés da escola nem que os deuses do olimpo viessem em bando tentar me convencer do contrário. Mas fui. E, aí, aconteceu o inusitado. Passamos por vários grupos esquisitos, uns jovens mal encarados, alguns com bebida nas mãos. A Estrada Comari não tinha qualquer iluminação e era rodeada, dos dois lados por terrenos baldios. Os bandos que encontramos estavam conversando em pé, todos eles. Não vi armas, não vi nada, mas eu tremia da cabeça aos pés. Reginaldo engrenou um papo cujo conteúdo não sei dizer qual foi. Ele via que eu estava apavorada. Na verdade, não sabia se ele estava falando comigo ou com o amigo. Eu andava meio ensurdecida, meio anestesiada, pronta para sucumbir ou ser sucumbida. Mas eles foram atravessando cada roda de marginais dizendo:

- Licença aí pra professora, licença aí pra professora.

Não cheguei a me acalmar, nem a sair do estado de alerta, mas algo me dizia que eu não corria perigo. Pelo menos, não iminente. Enfim, chegamos ao ponto do ônibus e Reginaldo apenas me disse:

- Agora ninguém deve nada a ninguém. Pode descer sozinha quando quiser, que ninguém vai mexer com a senhora.

Caiu a ficha. Ele estava me pagando o favor. Eu lhe dera curativos na véspera. Ele me dera proteção na rua. Vim para casa sem saber se isso era bom ou mal. Pela minha amiga, era bom. De alguma forma, eu tinha tocado em algum ponto importante do jovem. Talvez as coisas rumassem melhor a partir daí.

O fato é que, realmente, quando eu me atrasava, descia a Comari sozinha, encontrando os grupos que sempre me cumprimentavam: “boa noite professora”. E ninguém mexia comigo. Poderoso esse Reginaldo. Muitos anos depois, essa imagem também se desfez. De modo geral, os professores são respeitados e tive outras oportunidades de entrar em favelas ou bairros suspeitos, tendo sido apresentada antes como professora. Às vezes, penso como seria bom sermos assim tão respeitados também pelas autoridades em nossa profissão. De qualquer modo, a atitude de Reginaldo fora diferenciada e ele, com certeza, queria dizer algo para mim. Alguma coisa me dizia que eu tinha conseguido tocar um pedacinho de seu coração. Será?

Minha brilhante amiga me instruiu direitinho: eu precisava mostrar ao Reginaldo que sabia que a liderança era dele e que eu dependia dela para conseguir dar aula. Ao contrário do que aprendemos na academia, a questão, ali, não era mostrar que quem manda é o professor. A psicologia era outra. Ela me dirigia como quem dirige um barco no meio da tempestade, mas sua destreza com a experiência anterior no presídio tinha sido um presente dos céus para mim. Então, fazer tudo para que minhas aulas dependessem da liderança do Reginaldo. Assim, eu não estaria nem de longe querendo tocar em sua autoridade diante da turma. Diante da fragilidade da situação, me parecia mesmo o melhor seguir seus experientes conselhos.

Na semana seguinte, no meio da aula, se é que se poderia chamar aquela bagunça de aula, Reginaldo me chamou, levantando a mão. Me dirigi a sua carteira e ele me mostrou um saquinho. Pensei que ele iria devolver o apetrechos de curativo que eu tinha levado na semana anterior. Não era isso. Perguntou-me:

- Sabe o que é isso?

- Não.

- Tem um sapo aqui dentro e pretendo soltar ele na sala. Mas vou esperar sua aula acabar. Talvez eu solte na outra. Mas se a senhora dedurar vou considerar traição.


Que dilema! Estaria expondo meu colega que entraria depois. O que fazer? Fui totalmente covarde e sofri por isso por um longo tempo. Não disse nada. Pela primeira vez, e logo no início de minha carreira, me senti traindo um colega. Esse amargo na boca me custou muitas noites de sono. Noites sem conta. Na semana seguinte soube o que acontecera: o colega entrou, viu o sapo e simplesmente saiu da sala. Não deu aula naquele dia. Segundo ele, não “se esquentou” com a questão. Simplesmente foi embora mais cedo. Deveria ter-me aliviado, mas, na verdade, a marca de minha postura me tocou profundamente. Sei o quanto isso foi valioso nas minhas conquistas junto a Reginaldo, mas o amargor que este fato me custou marcou um aprendizado de ética que me custou bem caro em todas as outras oportunidades futuras, às quais fiquei duplamente atenta. Às vezes, é mesmo preciso errar para aprender. Se é que aquilo teria sido um erro. Mas eu o via como tal.

Depois do episódio do sapo, no entanto, só faltou mais um fato para a conquista definitiva de Reginaldo. Na semana seguinte, quando estava ainda no corredor, caminhando em direção à sala, um dos alunos veio me avisar que Reginaldo estava completamente bêbado. Meus deuses, e agora? Um marginal bêbado dentro de sala, como seria? O que eu estava fazendo ali! Entrei pronta para sair, caso a coisa estivesse feia. Que se danasse a psicologia, eu não ficaria com um marginal bêbado dentro de sala. Era coisa para a diretora resolver. Felizmente, no entanto, não sou precipitada. Entrei. Reginaldo estava completamente caído da cadeira, recostado na parede, não sei como. Paulo César me disse que ele tinha tido um confronto com o chefe de outro grupo. Disputaram quem conseguiria beber mais sem cair. Era, portanto, uma disputa de fortaleza e liderança. Reginaldo tinha vencido, pois conseguiu sair e andar até a escola sozinho. Mas, ali, ele estava imprestável. Senti, no ato, que ele estava completamente incapacitado a fazer qualquer algazarra, tal o estado de prostração. E eu estava ficando mais espertinha. Cheguei perto dele e falei:

- Ok, sei que você não está bem. Vamos fazer um acordo: eu não digo nada na diretoria e você não atrapalha minha aula.

Eu estava em vantagem. Ele sequer conseguia abrir o olho quanto mais me responder! Paulo César tomou a liderança da turma e mandou todo mundo calar a boca e ai de quem falasse qualquer coisa na secretaria. Foi o primeiro dia em que dei aula tranquilamente. A turma estava meio em choque. Realmente, eu estava em vantagem. Ademais, Paulo César mandava todo mundo ficar quieto, provavelmente, para não chamar a atenção do inspetor de alunos para a sala. Pegar Reginaldo naquele estado, com certeza, daria confusão.

Dali por diante, fui conquistando a turma aos poucos e não me lembro bem como, no mês de maio (lembro-me disso por causa do meu aniversário), era a turma em que eu conseguia dar as melhores aulas. Na entrada da sala eu já dizia:

- Reginaldo, cheguei.

Nunca foi verbalmente combinado, mas eu não olhava para a turma até ele me dizer:

- Pode começar professora.

Era como se eu não estivesse lá. O que ele fazia, eu não sei. Só sei que eu me virava de costas, apagando o quadro negro, enquanto ele punha ordem no caos. Às vezes eu ouvia o som de caderno voando ou coisa assim. Turma sentada, todos nos lugares e em silêncio:

- Pode começar professora.

Se, no meio da aula a bagunça começava a aparecer ou havia muito bulício e dispersão, eu apenas dizia:

- Reginaldo, dá um jeito na turma pra mim?

Quando aquele negro, alto, de porte altaneiro, de bigode, começava a se levantar, todo mundo sentava. Mas seus olhos, no fundo, eram muito doces. Daí para ficarmos amigos não demorou muito. E, se no primeiro mês ele teve conceito “E”, posso orgulhosamente dizer que em setembro, ele ostentava um belíssimo “B” na minha disciplina. E, posso garantir que foi às próprias custas, pois nunca dei refresco a ninguém.

Se há um aluno de quem sinto especial saudade é o Reginaldo. Chegamos a conversar algumas vezes, em alguns intervalos. Seu sonho era ser médico, mas, segundo ele dizia, era tarde demais.

- Eu não vou poder estudar pra medico. Eu sei disso. Não é pra mim. Estou velho, vou fazer 18 anos e aí, não poderei estudar mais. Vou servir o exercito no ano que vem. Acho que é o máximo que vou poder fazer da minha vida. Quem sabe, eu acabe um bom soldado.

Tenho lágrimas nos olhos ao escrever isso, ao me lembrar de seus olhos negros e profundos. Eu nem sei se ele iria querer mesmo ser médico, se foi um sonho de momento. Mas a dor de ver alguém tão precioso e de olhar tão doce, perdido num canto qualquer do mundo, se vendo sem chance, multiplicou em mim, a consciência de como vivemos tão longe da realidade social. Olhar de fora e de longe é muito diferente do que sentir, na pele, a vida dessas pessoas.

Nunca mais soube do Reginaldo. Na verdade o tremendo esforço de me despencar da universidade para Campo Grande, debaixo de sol ou chuva, colocando botas para subir a Estrada do Comari, tendo almoçado apenas um biscoito na viagem entre a zona sul e a rural, e ficando sem comer até as 22 horas, custou-me um preço muito alto e tive de abandonar o Município e ficar só com a universidade, após uma licença de três meses para cuidar da saúde.

Hoje Reginaldo estaria com 52 anos, provavelmente. Gostaria de reencontra-lo para saber de sua vida. É mais provável que eu tenha me apagado nos rastros de seu passado. Para mim, no entanto, ele foi um grande marco de amizade, de pacto, de aprendizado e de amor incondicional sincero. Amei-o como se ama a um “filho emprestado”, encontrado, sem querer, à beira da estrada da vida. E do mesmo modo que nos encontramos, de repente, seguimos, cada um, o seu caminho. Mas, para mim, ele estará guardado no meu coração para sempre.

sábado, 23 de outubro de 2010

O MICO


Cônsules são tão cuidadosamente formados e preparados para a função que não se espera um mico, principalmente em situações delicadas. Nós nos esquecemos de que são humanos. Não perdoamos a gafe. Mas essa é mesmo digna de nota.

Tudo começou quando fui visitar uns amigos em Manaus. Ele, militar da marinha, super conceituado, foi designado para uma missão na Amazônia, por dois longos e intermináveis anos. Digo isso, como amiga distante da família, presa no Rio pela saudade principalmente de sua esposa, minha ex-aluna e amiga, saudade dele mesmo, que considero um doce irmão, da mãe e das crianças, naquela época, bem pequenas.

A oportunidade de visitá-los surgiu, um ano depois de sua ida, nos feriados da independência. Meu “irmão” iria estar de folga e poderíamos curtir bem os feriados, conhecendo os cantos gostosos dos meandros amazonenses, dando descanso à saudade. E fui. Na mala, apenas roupas esportivas e, para não deixar uma mala feminina incompleta, um vestido para jantar. Nunca se sabe.

Graças aos deuses as mulheres pensam no “nunca se sabe”. Nesse caso, esse nunca se sabe aconteceu em todas as cinco noites ocorridas em Manaus. Todas. Ocorre que meu querido comandante foi, à última hora, convocado para fazer as honras às nações vizinhas que vieram em suas embarcações ao Brasil para oferecerem suas homenagens ao evento da independência. Mais especificamente, navios da Guiana Francesa, Paraguai e Uruguai. Nosso feriado foi para os ares, pois, fazer as honras significa ser responsável por todos os requisitos do anfitrionato, durante o dia, e aos jantares durante a noite, levando a família, naturalmente. Isso queria dizer um jantar na embarcação de cada um dos navios estrangeiros em cada noite, mais a noite no navio brasileiro e, para encerrar, um jantar na casa de um cônsul que não vou dizer qual é, pois a gafe veio mesmo dele. Tudo isso sem contar com um ataque simulado de guerra que teria de ser comandado pelo nosso ilustre chefe de família, fazendo parte do kit, o que significou que ele não podia estar conosco nas horas diurnas, enfurnado que ficou no comando das estratégias do exercício militar. Brincadeira de bandido e mocinho.

De qualquer modo, pelo menos, vi a família e passei por momentos muito interessantes. O comandante brasileiro, como disse, foi convidado a cada noite para jantar em um dos navios. Ele e sua família. Bom, eu não era da família e já estava me preparando para ficar em casa, lendo um bom livro, já que, às noites, não teria o que fazer sozinha pela cidade. Manaus, à noite, naquele tempo, só mesmo para quem conhecia. Agora não sei como está. Mas nem passou pela cabeça de nosso comandante me deixar em casa. Meu “irmão” não fez por menos. Colocou-me na lista familiar. É preciso, a esta altura, esclarecer que somos de raças diferentes. Bem diferentes. Ele é um negro de porte, ombros largos, alto, tipicamente filho da África. A esposa também da raça negra e eu, como você já viu nas fotos, porte delgado, branca, de olhos claros. Mas, tudo bem. Seu comandante ordenou, quem sou eu para discutir. Só que à entrada no primeiro navio, talvez mais por carinho do que por outro motivo, fui apresentada como sendo sua irmã. E assim ficou, como um epíteto carinhoso. E, depois da apresentação do primeiro dia, tendo sido tudo tratado com a maior naturalidade, me senti um pintinho no lixo, super à vontade, com o novo título.

O fato é que nos consideramos irmãos mesmo e isso, no fundo, era muito natural. E nos conhecíamos há tantos anos que eu mesma não me sentiria não irmã, em algum momento. Justiça seja feita: as coisas estavam no lugar. Só no dia do jantar do cônsul é que fomos perceber o quanto o fato tinha chamado a atenção de todos e como tinha sido levado a sério!

Depois de todos saírem da mesa e estarmos em grupos pela sala, o cônsul sorridente, me perguntou:

- Há quantos anos vocês se conhecem?

Levando a brincadeira adiante, apenas respondi:

- Desde que ele nasceu, já que sou mais velha.

Pelo olhar admiradíssimo do cônsul, percebemos, no entanto, num segundo, toda a história daqueles dias, os supostos comentários e a tremenda curiosidade em torno do fato. Mas aí já era tarde, fiquei firme. Meu irmão colocou a mão sobre o meu ombro e ficou firme idem, dando força ao pedaço. Acho que surgiu, de repente, em nosso espírito altaneiro, a luta contra a discriminação. Sua mão no meu ombro contou tudo e, ali, se concretizou a defesa de nossos princípios.

Mas o cônsul não percebera e capturado, talvez, menos pela singeleza da resposta do que pela estupefação insistiu:

- Mas vocês são irmãos mesmo, de mesmo pai e da mesma mãe?

Isso, com certeza, feria o protocolo. E muito. Não era pergunta que se fizesse em alto em bom som, em pleno território brasileiro (ou qualquer outro lugar do mundo!), em um jantar oficial, com os cerimoniais de praxe, vinda de uma pessoa com quem não tínhamos qualquer intimidade. A brincadeira ingênua dos primeiros dias, de repente, valia uma defesa de princípios! Num pacto de segundo, meu irmão e eu percebemos que a gafe agia por si só e merecia ausência de resposta para ficar mais contundente. Apenas olhamos para ele. Nós e todos os convivas. Silêncio geral, “daqueles” silêncios desconcertantes.

Eu não tinha a mínima intenção de ajudá-lo a consertar o mico. Teve de fazê-lo sozinho, convidando a todos para se deslocarem para a outra sala, para um café.

Um sem número de vezes, durante a vida, tive de optar pelas cidadanias da minha alma, todas, quase sempre, ligadas aos direitos de classes discriminadas socialmente. Em todas felizmente, tive a chance de colocar meus princípios a favor da minha liberdade de ser, acima de tudo, uma cidadã do mundo.

Fui para casa radiante por dentro, com a alma em festa por ter deixado tão mal uma eminente autoridade do “nada”. Agradeço a esse cônsul, portanto, mais uma noite de sonhos bem dormida. E também a meu irmão, por termos feito isso acontecer.

sábado, 16 de outubro de 2010

O PAPA


Fui a Roma e não vi o papa. Tinha tanta coisa a fazer na Itália, que, realmente, não deu. Em princípio, nada contra o papa. Era mesmo uma questão de tempo ou, quem sabe, um excesso de terços e ladainhas, já estressantemente vivenciados em meus dez anos de internato. Por conta de reza, portanto, com certeza não estaria eu em falta.

Mas fui ao Vaticano. Palmilhei a cidade atrás das artes, da biblioteca, da própria basílica que é estrondosamente interessante, embora eu não a tenha achado a mais bela do mundo. É difícil derrubar a beleza de Notre Dame, o encanto da Saint Chapelle, a monumental Catedral de Colônia, só para citar algumas, já me esquecendo da Catedral de Milão e da indescritível porta do sol do Batistério de Florença... de qualquer forma, me encantei com muitos dos inumeráveis detalhes da catedral mor da cristandade.

Só não agüentei visitar o tesouro do papa. A santa igreja que me desculpe, mas tudo que aprendi no internato a respeito dos votos de caridade e pobreza foi palmo a palmo desmentido no meio de tanta escandalosa riqueza.

Não tenho nada contra riquezas. Nadica. Cada um que tenha a sua com direito de posse e postura que mais desejar. Sejamos ricos ou pobres a nosso gosto ou desgosto, ninguém tem nada a ver com isso. Se você quer dividir o que tem com alguém que tem menos do que você, problema e gosto seu. Qualquer tipo de julgamento a esse respeito, para mim, está destituído de senso de valor.

Não tenho posições políticas a respeito. Não me considero capitalista, nem socialista. E também não jogo na coluna do meio. Sou nada. Que me considerem alienada, não me importo. Mas sei que sou uma pessoa de profundo bom senso. E não cabe no meu bom senso ter aprendido que os religiosos fazem votos de pobreza e cada papa, sob o argumento de conter a representação de um “Estado” ostente tanta riqueza sem tamanho.

Fui constatar isso ali, nos subterrâneos da Basílica de São Pedro. Cada papa, dos inúmeros que o mundo viu, teve seu próprio manto incrustado de riquezas sem fim, entre ouro, pedras preciosas e bordados transcendentais. Cada um teve seu bastão, seu ostensório, seu anel, seus paramentos, enfim, seu riquíssimo enxoval. Nada passou de um para outro. E pior, que eu saiba, não está em pauta a idéia de doação desses bens a necessitados. Tudo faz parte do patrimônio dessa cidade-estado.

Passar por esse museu, uma vez que se entra, não tem volta. Nos primeiros passos, antevi o que veria e quis voltar. Não era permitido. Uma vez no labirinto, tinha de trilhá-lo até o final. Depois de poucos passos, comecei a passar direto. Na verdade, comecei a passar mal. Meu estômago literalmente embrulhou. Queria ar, queria sair dali. Por que não poderia voltar? Não tinha jeito, tinha de seguir em frente, o que fiz o mais rápido que pude. Para completar, o museu desemboca numa lojinha de recordações, com réplicas de relíquias, coisas sagradas à venda, etc.

Repito: não tenho nada contra riquezas. E não teria nada contra as riquezas do Vaticano. Eles podem ser podres de ricos que para mim não faz diferença alguma. Só não agüento ter sido interna aprendendo votos de pobreza por parte dos religiosos. Não faz sentido. Nenhum. Sejam ricos! Sejam felizes! Só não me peçam para abrir os meus bolsos em dízimos, pois sou paupérrima perante o que vocês tem! Fiquei confusa, completamente confusa com esta visita.

Se algum apreço eu ainda guardava dos princípios de caridade e compaixão cristãs por parte da educação religiosa que tivera, estava literalmente “desconvertida”. E revoltada também. E traída. Não houve explicação que me convencesse. Os argumentos são vários a respeito do patrimônio de Estado. Nada feito. Eu não tenho nada contra riquezas, já disse. Podem estar carregados de ouro, já disse. Só não me venham com discursos de caridade!!! Para mim, isso passou a me parecer fazer favor com chapéu dos outros e, no caso, caridade com o meu chapéu!!! Nada disso.

Enquanto eles não entrarem materialmente na concretização da compaixão pelo outro, o assunto está encerrado para mim. Não tem doação em nome de igreja alguma que eles consigam me convencer a fazer. Minhas doações, a partir daí, passaram a ser diretas, do meu bolso ao consumidor, exceção feita aos Médicos sem Fronteiras e a uma creche sustentada por um amigo que você já conheceu, se leu o conto “a ponte”.

A santa madre igreja me desculpe, mas acho que está muito longe de me convencer que aquele tesouro tem razão de ser. E olha que aquilo é apenas uma amostra! Nem todos os pertences estão ali!

Saí do Vaticano com duas lacunas. Essa e o fato de que a biblioteca mostra apenas um pequeno filão do ouro em forma de conhecimento e documentos que os subterrâneos guardam em seus papiros e tudo que seus livros devem conter. Quanta sabedoria escondida continua guardada e trancada a sete chaves... e por quê? Será que um dia virá a luz?

Fora isso, adorei estar lá. A visita à basílica foi amenizada pelas pinturas da Capela Sistina. Ficaria horas esquecida, exercitando meu pescoço em busca de detalhes daquelas pinturas monumentais. Não fossem os dias contados, não teria saído dali tão cedo, meio puxada pela mão de meu ex que tinha um roteiro cheio de atrações, ainda para o mesmo dia.

Enfim, adorei ter ido. Até pela experiência, pelo dissabor, pela vivência. Não vi o papa. Depois da visita às riquezas, acho que ficaria muito triste em vê-lo. Pareceria uma hipocrisia, pelo menos para mim. Não poderia saudá-lo. Não conseguiria.

Paciência. Tenho minhas limitações de entendimento e compreensão. Não engoli a pílula. Quem sabe, um dia, eu consiga entender para que ela serve. Por enquanto, soaria como veneno e me faria muito mal engoli-la ou deixar de comentar sobre o assunto.

Que você me leia com a condescendência de quem é capaz de entender que não posso calar-me diante da pobreza que vejo diariamente a minha volta e de quem compreende que não consigo entender o discurso doce do dízimo. Não esse dízimo. Os deuses que me perdoem.

sexta-feira, 8 de outubro de 2010

PRETEXTO


Manhã de sábado. Um sol fosco anunciava chuva breve. Meninos jogavam bola no gramado e, nos bancos, as mães jogavam verde. E, enquanto a luz do sol se misturava com as sombras das árvores e dos cochichos, mais uma personagem que aparentava ser uma das imperatrizes das artes de maldizer, chegou com seus olhos novidadeiros. Todas se voltaram. A impressão que tive foi a de me sentir como alguém que nunca sabe se os “investimentos” da velha senhora eram garantidos, mas, à falta de melhor motivação, as mulheres em volta se entregaram às falações da “comadre”.

Nos bancos e no gramado o jogo continuava. O sujo do céu refletia-se nos joelhos infantis e também nos olhos nada ingênuos das que ali teriam ido para dar espaço à inocência.

Eu acabara de caminhar pela praia e de fazer meus exercícios de Tai Chi Chuan. Embora semi-nublada, a manhã estava linda naquela pontinha da praia do Leme e como nas pedras ventava muito, eu tinha declinado do meu hábito de me sentar nelas, para buscar o calçadão, mais especificamente um canto de gramado, fugindo do vento e buscando sossego. Foi nessa hora que o bulício atravessou o meu caminho, sob a forma do quadro descrito acima.

Nada ali combinava com a minha alma refeita pela caminhada no calçadão e pela luz suave e pura da natureza. Falações de novela e da vida alheia. Nada combinava com os lentos e harmoniosos movimentos de Tai Chi. Minto: tudo combinava com a inocência dos jogos infantis à minha volta. Aos poucos, portanto, as vozes das mulheres foram amortecidas pelo vento e meus sentidos apagaram os sons em meus ouvidos e aguçaram o sentido visual: as crianças, em volta, sorrindo, jogando, rindo, pulando, suando, felizes.

Alma seletiva. Voltei lenta para casa e o silêncio interior invadia meus pensamentos de calma e paz. Sentia-me completamente alienada, longe das novelas, dos babados, das fofocas, dos jornais, da internet, dos meus problemas, das doenças de meus clientes, do desespero, das angústias, dos jogos políticos, da vida.

Mas durou pouco. Véspera de eleições. Papéis eleitoreiros estavam espalhados pelo chão. Pisados, sujos... talvez como muitos de seus donos... mas isso já é um juízo pessoal, pensamentos soltos, que passavam pela minha cabeça.

Silenciosa e calma trilhava os passos rumo ao meu ninho. Mas a visão dos papéis turvou meus pensamentos. Pensei na falta de moradia de tantos meninos que eu já conhecia de rostinho pela rua. Pensei nos rostos dos candidatos pisoteados pelo chão. Deputados, senadores, governantes, presidenciáveis, todos ali, juntos, “sem pátria e sem mãe”, no lixo das ruas, como os meninos que se espalham pelo bairro e que fazem parte do meu cotidiano.

Luz e sombra se confundindo. Um conto real de puro abandono. O lixo eleitoreiro e o lixo do descaso. As mulheres absortas nas irrealidades construídas em suas “conversas” sem rumo e sem destino como os meninos de rua, ao lado dos “santinhos” dos candidatos apenas esperando a primeira chuvarada para entupirem nossos esgotos e encharcarem nossas ruas - havia uma competição constante entre eles e os anjos da COMLURB.

Sentimentos de véspera de pleito. Não deveria me incomodar, naquele momento de calma interior, o resultado das urnas. Mas alguma coisa, no meio do lixo, precisava salvar-me do sentimento de cidadão abandonado à própria sorte... e do cidadão-menino que me chamava de tia e para quem eu não tinha solução. Precisava amenizar a dor do meu peito, de minha completa impotência civil, a necessidade de um recreio, um oásis, um alento, uma esperança de vida, de vida real, de conforto social plausível, de patriotismo sem deslizes. Algumas gotas esparsas num oceano de necessidades sociais - era o máximo que eu conseguia fazer e era o máximo que eu, às vezes, conseguia ver.

Papéis sem sentido no chão, com fotos sorridentes. Rostinhos infantis sorridentes a minha volta, esperando um lanchinho da tia. Tudo igual. Não via diferença vital em nenhuma das fotos, de qualquer partido. O mesmo sorriso, as mesmas promessas e o mesmo entardecer que se faria em breve nessa véspera chuvosa. No entanto, uma esperança de que, por alguma razão, apesar de tudo, talvez impulsionado pelo próprio destino, dê certo.

Calma pessoal misturada à angústia da impotência. Novamente, em meu pensamento, voltei a perceber apenas o eco das vozes das mulheres da praça se misturando com o eco das vozes infantis.

Escolhi as vozes infantis: autenticidade, presença, esperança. Tudo por acontecer. Enfiei a chave na porta e vim escrever este conto.

sábado, 2 de outubro de 2010

A PONTE


Final da década de 90, não me lembro muito bem em que ano. Naquele tempo, o “msn” da moda era o “icq”. Quem é da época, lembra. Eu vivia com ele aberto, pois mantinha contatos profissionais e com amigos por ali, deixando bilhetinhos, recados, horários de orientação acadêmica, etc. Fácil e rápido. E aberto a eventuais visitantes, como é o msn hoje.

Um dia, uma telinha se abriu com o recado de “feliz dia de santa eulalia”. Eu sabia que existia uma tal de santa eulalia, mas daí a saber o dia da santa era outra história. No mais puro espanhol, o bilhetinho piscava em minha tela. Agradeci e, não resistindo, perguntei de onde ele era. Barcelona! Entramos num papo e, para encurtar essa parte da história, passamos a conversar um pouquinho todos os dias. Eu chegava da universidade, às vezes tarde da noite, e lá estava o espanhol, me esperando na telinha, ressaltando o fato de que, levando em consideração o fuso horário, isso era para ele completamente esdrúxulo, correspondendo a altas horas da madrugada, em Espanha. Mas o papo era ótimo e nos acostumamos um ao outro. Conversa vai, conversa vem (literalmente!), passaram-se os dias e meses e nos falávamos quase diariamente.

Depois de algum tempo, ele pediu para me telefonar. Ficamos de papo, um pouquinho e voltamos a teclar. Foi quando ele me convidou para conhecer Barcelona. Bem, aí era papo demais. Eu não iria me despencar do Brasil, em pleno ano letivo, para conhecer Barcelona, me encontrar “sei lá com quem”. Não. A distância era a mesma, eu disse, e... ficou por isso mesmo. Passaram-se uns dias e estávamos, enfim, no final do mês de abril, quando, ele, muito gentilmente, me perguntou o que eu iria fazer no dia 14 de maio às 17.30. Pensei logo que, vendo a descrição do meu perfil, desejava entrar on line, delicadamente antes do horário normal de festejos, para me desejar feliz aniversário. Com a mesma delicadeza, disse-lhe que, muito provavelmente, estaria livre.

- Comprei a passagem, dá para me buscar no aeroporto?

Fiquei olhando para a tela, estarrecida, por algum tempo. Como assim? Não sabia o que responder. Da tela para o aeroporto, do virtual para a realidade. Meu coração deu um nó. O que iria responder?! O homem vinha mesmo, com passagem comprada e tudo! Ele notou o silêncio da tela e se adiantou:

- Se for inconveniente, me diga.

Eu nem sabia se era conveniente ou não. Estava sem “fala”! Ele adiantou-se e escreveu que tinha vontade de me conhecer, conhecer o Brasil, passando uns dez dias por aqui. Não tinha saída. Respondi que, sim, que teria prazer em ir buscá-lo.

Daquele dia em diante, as horas se atropelaram. Para completar, minha universidade entrou e greve no dia 10 de maio, o que significava que coincidentemente, eu estaria completamente livre para recebê-lo no dia 14 e seguintes!

Três dias antes de sua chegada, o correio me trouxe um pacote: um gato de pelúcia, vindo da Espanha, acompanhado de um gentil cartão, antecedendo sua chegada. Muito simpático. Confesso que aumentou minha expectativa.

Finalmente, dia 14. O dia passou lento, com diversos telefonemas de amigos, como sempre. Todos bem recebidos, mas você deve concordar que minha mente, meus olhos relojoeiros e meus sentidos, estavam no aeroporto desde a véspera, ou melhor, há uma semana, no mínimo.

O avião chegou absolutamente no horário. E o espanhol foi um dos primeiros a sair, com uma rosa não natural nas mãos, no formato de um delicado brochinho, me pedindo desculpas antecipadas por não ter podido trazer uma de verdade. Ali estava ele, afinal. Uma gracinha, mas... não “bateu a tal química” se é que você entende o que quero dizer. Os sentidos e o coração são donos de nossa vontade, não tem jeito. Talvez, infelizmente. Vi, de saída e pelo beijo de chegada que este espanhol jamais seria mais do que uma pequena e simpática aventura. Mas como dizer isso a um homem que se dispusera a atravessar um mar para me conhecer? Eu não podia. Então, fiz dos 10 dias seguintes, dias de aventura e de turismo. Namoramos, brindamos a esta cidade maravilhosa, curtimos a realidade de termos transformado as teclas em olhares, sorrisos, piadas, passeios, papos, brincadeiras e namoro. Foram dez dias tranqüilos e buliçosos ao mesmo tempo. E passaram tão depressa como quaisquer outros dias de férias.

Volta para Barcelona e, muito diplomaticamente, encetei um distanciamento que se fez aos poucos. Meus horários começaram a ficar um pouco complicados, etc. Mas a minha gentileza sempre esteve presente, em respeito a essa aventura louca de alguém que se atira em busca de outro continente como uma flecha sagitariana, pois era justamente o que ele era.

Um ano depois, o espanhol cismou de embicar para o Brasil, novamente, desta vez para fazer um curso esotérico perto de Belo Horizonte. Decididamente, ele se apaixonara por essa terra magnífica. O curso duraria um mês e queria vir ao Rio para me encontrar de novo. Eu estava envolvida com outros cursos, e respondi que, infelizmente, estaria no sul do Brasil. Tudo divinamente arquitetado pelos meandros da vida, graças aos deuses olímpicos, para meu alívio e sorte dele, como você verá logo a seguir.

Pois então... o homem se encontra, no curso, com uma paulista e acaba se envolvendo com ela. Num mail, me conta a história e eu, rapidamente, dou a maior força, incentivando-o a ir adiante. Para resumir a história, os dois acabaram ficando juntos. Na volta à Espanha, ele lamentava não poder vê-la mais e todo aquele drama que incomoda a duas pessoas que, finalmente, encontraram o seu grande parceiro e sua grande parceira, mas não sabem como resolver a distância. Isso durou uns dois ou três meses, no máximo, pois a paulista resolveu se despencar para a Espanha, até que ele pudesse se aposentar e vir morar no Brasil.

Hoje são casados e vivem perto de Belo Horizonte, realizando um grande sonho comum: são coordenadores de uma instituição não governamental que cuida de crianças que receberam maus tratos ou foram abandonadas e aguardam serem adotadas. Um espaço de amor e paz, de carinho e dedicação que a vida oferece a essas crianças, cuidadas por esses pais prestimosos que se encontraram para concretizarem um sonho em comum.

Com a maior freqüência que posso, envio contribuições financeiras, já que sei das dificuldades que essas instituições enfrentam com a falta ou atraso em liberação de verbas. Sei, de sobra, onde são aplicadas as minhas ajudas de custo, e, também, com que dedicação e carinho isto ocorre.

A vida já fez tantas coisas comigo que só posso ser mesmo muito grata a ela. Imagine, você, desta vez, por conta de uma tal de santa eulalia, acabei servindo de ponte para uma das coisas mais lindas que a nossa sociedade pode presenciar: o amor verdadeiro entre duas pessoas, regado pelo amor maior, espontâneo e incondicional, que este casal sente por crianças abandonadas.

De Barcelona para o Brasil, indiretamente, apenas servi de ponte, instigando meu querido amigo a se apaixonar por nosso país, fazê-lo voltar para encontrar a felicidade real, concretizada no verdadeiro encontro de corações e de vida.
Um brinde especial a isso: Tim-tim!