sexta-feira, 8 de outubro de 2010

PRETEXTO


Manhã de sábado. Um sol fosco anunciava chuva breve. Meninos jogavam bola no gramado e, nos bancos, as mães jogavam verde. E, enquanto a luz do sol se misturava com as sombras das árvores e dos cochichos, mais uma personagem que aparentava ser uma das imperatrizes das artes de maldizer, chegou com seus olhos novidadeiros. Todas se voltaram. A impressão que tive foi a de me sentir como alguém que nunca sabe se os “investimentos” da velha senhora eram garantidos, mas, à falta de melhor motivação, as mulheres em volta se entregaram às falações da “comadre”.

Nos bancos e no gramado o jogo continuava. O sujo do céu refletia-se nos joelhos infantis e também nos olhos nada ingênuos das que ali teriam ido para dar espaço à inocência.

Eu acabara de caminhar pela praia e de fazer meus exercícios de Tai Chi Chuan. Embora semi-nublada, a manhã estava linda naquela pontinha da praia do Leme e como nas pedras ventava muito, eu tinha declinado do meu hábito de me sentar nelas, para buscar o calçadão, mais especificamente um canto de gramado, fugindo do vento e buscando sossego. Foi nessa hora que o bulício atravessou o meu caminho, sob a forma do quadro descrito acima.

Nada ali combinava com a minha alma refeita pela caminhada no calçadão e pela luz suave e pura da natureza. Falações de novela e da vida alheia. Nada combinava com os lentos e harmoniosos movimentos de Tai Chi. Minto: tudo combinava com a inocência dos jogos infantis à minha volta. Aos poucos, portanto, as vozes das mulheres foram amortecidas pelo vento e meus sentidos apagaram os sons em meus ouvidos e aguçaram o sentido visual: as crianças, em volta, sorrindo, jogando, rindo, pulando, suando, felizes.

Alma seletiva. Voltei lenta para casa e o silêncio interior invadia meus pensamentos de calma e paz. Sentia-me completamente alienada, longe das novelas, dos babados, das fofocas, dos jornais, da internet, dos meus problemas, das doenças de meus clientes, do desespero, das angústias, dos jogos políticos, da vida.

Mas durou pouco. Véspera de eleições. Papéis eleitoreiros estavam espalhados pelo chão. Pisados, sujos... talvez como muitos de seus donos... mas isso já é um juízo pessoal, pensamentos soltos, que passavam pela minha cabeça.

Silenciosa e calma trilhava os passos rumo ao meu ninho. Mas a visão dos papéis turvou meus pensamentos. Pensei na falta de moradia de tantos meninos que eu já conhecia de rostinho pela rua. Pensei nos rostos dos candidatos pisoteados pelo chão. Deputados, senadores, governantes, presidenciáveis, todos ali, juntos, “sem pátria e sem mãe”, no lixo das ruas, como os meninos que se espalham pelo bairro e que fazem parte do meu cotidiano.

Luz e sombra se confundindo. Um conto real de puro abandono. O lixo eleitoreiro e o lixo do descaso. As mulheres absortas nas irrealidades construídas em suas “conversas” sem rumo e sem destino como os meninos de rua, ao lado dos “santinhos” dos candidatos apenas esperando a primeira chuvarada para entupirem nossos esgotos e encharcarem nossas ruas - havia uma competição constante entre eles e os anjos da COMLURB.

Sentimentos de véspera de pleito. Não deveria me incomodar, naquele momento de calma interior, o resultado das urnas. Mas alguma coisa, no meio do lixo, precisava salvar-me do sentimento de cidadão abandonado à própria sorte... e do cidadão-menino que me chamava de tia e para quem eu não tinha solução. Precisava amenizar a dor do meu peito, de minha completa impotência civil, a necessidade de um recreio, um oásis, um alento, uma esperança de vida, de vida real, de conforto social plausível, de patriotismo sem deslizes. Algumas gotas esparsas num oceano de necessidades sociais - era o máximo que eu conseguia fazer e era o máximo que eu, às vezes, conseguia ver.

Papéis sem sentido no chão, com fotos sorridentes. Rostinhos infantis sorridentes a minha volta, esperando um lanchinho da tia. Tudo igual. Não via diferença vital em nenhuma das fotos, de qualquer partido. O mesmo sorriso, as mesmas promessas e o mesmo entardecer que se faria em breve nessa véspera chuvosa. No entanto, uma esperança de que, por alguma razão, apesar de tudo, talvez impulsionado pelo próprio destino, dê certo.

Calma pessoal misturada à angústia da impotência. Novamente, em meu pensamento, voltei a perceber apenas o eco das vozes das mulheres da praça se misturando com o eco das vozes infantis.

Escolhi as vozes infantis: autenticidade, presença, esperança. Tudo por acontecer. Enfiei a chave na porta e vim escrever este conto.

3 comentários:

Anônimo disse...

oi querida Lali ,amei as fotos postadas ,e tenho amado tambem ler essas suas lembranças.Algumas ,bem proximas, pela nossa convivenciaTe desejo muito sucesso,Paz e Luz.Beijos carinhosos da sua irmã do coração

pblower disse...

Amiga, de aqui da Ciudad de Mexico, entendo perfeitamente do estas falando.
Ainda bem que há as vozes e os gestos inocentes das crianças.
Ainda bem. beijocas

Celina disse...

Lindo! E isso, minha querida, não vejo jeito de mudar tão cedo... Esse sorriso falso de quem sabe que não vai fazer nada. Aff!