sábado, 23 de outubro de 2010

O MICO


Cônsules são tão cuidadosamente formados e preparados para a função que não se espera um mico, principalmente em situações delicadas. Nós nos esquecemos de que são humanos. Não perdoamos a gafe. Mas essa é mesmo digna de nota.

Tudo começou quando fui visitar uns amigos em Manaus. Ele, militar da marinha, super conceituado, foi designado para uma missão na Amazônia, por dois longos e intermináveis anos. Digo isso, como amiga distante da família, presa no Rio pela saudade principalmente de sua esposa, minha ex-aluna e amiga, saudade dele mesmo, que considero um doce irmão, da mãe e das crianças, naquela época, bem pequenas.

A oportunidade de visitá-los surgiu, um ano depois de sua ida, nos feriados da independência. Meu “irmão” iria estar de folga e poderíamos curtir bem os feriados, conhecendo os cantos gostosos dos meandros amazonenses, dando descanso à saudade. E fui. Na mala, apenas roupas esportivas e, para não deixar uma mala feminina incompleta, um vestido para jantar. Nunca se sabe.

Graças aos deuses as mulheres pensam no “nunca se sabe”. Nesse caso, esse nunca se sabe aconteceu em todas as cinco noites ocorridas em Manaus. Todas. Ocorre que meu querido comandante foi, à última hora, convocado para fazer as honras às nações vizinhas que vieram em suas embarcações ao Brasil para oferecerem suas homenagens ao evento da independência. Mais especificamente, navios da Guiana Francesa, Paraguai e Uruguai. Nosso feriado foi para os ares, pois, fazer as honras significa ser responsável por todos os requisitos do anfitrionato, durante o dia, e aos jantares durante a noite, levando a família, naturalmente. Isso queria dizer um jantar na embarcação de cada um dos navios estrangeiros em cada noite, mais a noite no navio brasileiro e, para encerrar, um jantar na casa de um cônsul que não vou dizer qual é, pois a gafe veio mesmo dele. Tudo isso sem contar com um ataque simulado de guerra que teria de ser comandado pelo nosso ilustre chefe de família, fazendo parte do kit, o que significou que ele não podia estar conosco nas horas diurnas, enfurnado que ficou no comando das estratégias do exercício militar. Brincadeira de bandido e mocinho.

De qualquer modo, pelo menos, vi a família e passei por momentos muito interessantes. O comandante brasileiro, como disse, foi convidado a cada noite para jantar em um dos navios. Ele e sua família. Bom, eu não era da família e já estava me preparando para ficar em casa, lendo um bom livro, já que, às noites, não teria o que fazer sozinha pela cidade. Manaus, à noite, naquele tempo, só mesmo para quem conhecia. Agora não sei como está. Mas nem passou pela cabeça de nosso comandante me deixar em casa. Meu “irmão” não fez por menos. Colocou-me na lista familiar. É preciso, a esta altura, esclarecer que somos de raças diferentes. Bem diferentes. Ele é um negro de porte, ombros largos, alto, tipicamente filho da África. A esposa também da raça negra e eu, como você já viu nas fotos, porte delgado, branca, de olhos claros. Mas, tudo bem. Seu comandante ordenou, quem sou eu para discutir. Só que à entrada no primeiro navio, talvez mais por carinho do que por outro motivo, fui apresentada como sendo sua irmã. E assim ficou, como um epíteto carinhoso. E, depois da apresentação do primeiro dia, tendo sido tudo tratado com a maior naturalidade, me senti um pintinho no lixo, super à vontade, com o novo título.

O fato é que nos consideramos irmãos mesmo e isso, no fundo, era muito natural. E nos conhecíamos há tantos anos que eu mesma não me sentiria não irmã, em algum momento. Justiça seja feita: as coisas estavam no lugar. Só no dia do jantar do cônsul é que fomos perceber o quanto o fato tinha chamado a atenção de todos e como tinha sido levado a sério!

Depois de todos saírem da mesa e estarmos em grupos pela sala, o cônsul sorridente, me perguntou:

- Há quantos anos vocês se conhecem?

Levando a brincadeira adiante, apenas respondi:

- Desde que ele nasceu, já que sou mais velha.

Pelo olhar admiradíssimo do cônsul, percebemos, no entanto, num segundo, toda a história daqueles dias, os supostos comentários e a tremenda curiosidade em torno do fato. Mas aí já era tarde, fiquei firme. Meu irmão colocou a mão sobre o meu ombro e ficou firme idem, dando força ao pedaço. Acho que surgiu, de repente, em nosso espírito altaneiro, a luta contra a discriminação. Sua mão no meu ombro contou tudo e, ali, se concretizou a defesa de nossos princípios.

Mas o cônsul não percebera e capturado, talvez, menos pela singeleza da resposta do que pela estupefação insistiu:

- Mas vocês são irmãos mesmo, de mesmo pai e da mesma mãe?

Isso, com certeza, feria o protocolo. E muito. Não era pergunta que se fizesse em alto em bom som, em pleno território brasileiro (ou qualquer outro lugar do mundo!), em um jantar oficial, com os cerimoniais de praxe, vinda de uma pessoa com quem não tínhamos qualquer intimidade. A brincadeira ingênua dos primeiros dias, de repente, valia uma defesa de princípios! Num pacto de segundo, meu irmão e eu percebemos que a gafe agia por si só e merecia ausência de resposta para ficar mais contundente. Apenas olhamos para ele. Nós e todos os convivas. Silêncio geral, “daqueles” silêncios desconcertantes.

Eu não tinha a mínima intenção de ajudá-lo a consertar o mico. Teve de fazê-lo sozinho, convidando a todos para se deslocarem para a outra sala, para um café.

Um sem número de vezes, durante a vida, tive de optar pelas cidadanias da minha alma, todas, quase sempre, ligadas aos direitos de classes discriminadas socialmente. Em todas felizmente, tive a chance de colocar meus princípios a favor da minha liberdade de ser, acima de tudo, uma cidadã do mundo.

Fui para casa radiante por dentro, com a alma em festa por ter deixado tão mal uma eminente autoridade do “nada”. Agradeço a esse cônsul, portanto, mais uma noite de sonhos bem dormida. E também a meu irmão, por termos feito isso acontecer.

3 comentários:

Celina disse...

Muito bom! Que consul cara de pau! E cá entre nós, irmão ou irmã,a gente recebe de várias formas. Ou da mesma mãe e do mesmo pai ou melhor ainda quando a vida nos dá. Minha irmã Patrícia, é muito mais irmã que as que eu tenho de nascença...
bjs querida!

pblower disse...

Me senti honrada com o comentário (mais que verdadeiro) de celina (hahaha).

Micos como este devia já estar extintos há muito, mas eles insistem em sobreviver. (Pobres leoes dourados!!!)

mil beijocas

Eulalia disse...

Nossa! Mil coisas lindas li em dois comentários... mais do que simplesmente ter tido a alegria de escrever o conto!
Dois amores lindos!
beijinhos