sexta-feira, 17 de dezembro de 2010

QUEM DIRIA (Alemanha 2)


Berlim: linda, magnífica, a cidade que não dorme. Bulício, festa, cores, luzes, vida. Passear perdida pela cidade até que as pernas andassem separadas do corpo, pois o cérebro deixa de pensar que existem, adormecidas, mas felizes. Prefiro saltar a parte de visita a Berlim Oriental, que deixo para um conto à parte. Voltemos nossos olhares para a festa. Enquanto meu “ex” passava praticamente os dias a cata de seus trenzinhos, eu me embebedava pelo colorido multifacetado da cidade, em suas ruas, museus e atrações as mais diversas. E foi no início de uma das manhãs que me vi numa pequenina agência de correio para despachar um dos pacotes de compras de cidadezinhas, casinhas e outras coisas do hobby de trenzinhos dele. Fazíamos isso, pois seria impossível carregar tudo em malas, pois precisam ser bem empacotados para que não quebrem, etc. Melhor despachar. Como eu não tinha compromissos, senão o de perambular pelas ruas, não me custava encarregar-me dos despachos, enquanto ele corria afoito para novas compras. Ele não queria perder um minuto do exame acurado das revistas com os números dos trens, vagões, casinhas e tudo mais que fazia seu hobby valer a pena. Eu, por meu lado, não tinha pressa. A cidade estava ali, para ser sorvida como um manjar dos deuses. Passar pelo correio, poderia fazer parte da festa. Nunca se sabe o que pode acontecer a cada passo. E, neste dia, foi surpreendente! Estar sem pressa é tudo nesta vida. Vivemos cada segundo intensamente, se soubermos que são segundos vitais... e eu sabia.

No que se refere ao aspecto financeiro, a vida me dava a oportunidade de poder entender e fazer isso. Passei por muitas experiências, desde o aperto financeiro mais agudo, na juventude, à possibilidade de viajar por aí, depois de recebida a herança de meu pai. Depois, novamente, novos grandes, intensos apertos, com o divórcio e, mais tarde, novas oportunidades de ardorosa e saudável subida. Talvez essa experiência multifacetada me tivesse dado sempre esse perfil de aproveitar as oportunidades pelo que posso trazer dentro de mim e não pelo que posso carregar nas malas e nos bolsos. Nada contra quem pense ou faça diferente, é claro. Se todos fossem iguais, a vida não teria mesmo graça... para mim, no entanto, naquela época, o que contava era a sede de conhecimento, não obrigatoriamente só acadêmico, mas de vida. Felizmente, aproveitei a oportunidade de poder fazê-lo da forma que me deu maior prazer. E, essencialmente, um conhecimento interior que só pude constatar, de fato, muitos anos depois.

Mas, voltemos aos correios: Entrei na agência como quem sabe tudo. Já havia feito tantas remessas, que sabia preencher os formulários de cor e salteado. Havia apenas dois funcionários atendendo (a agência era bem pequena!) e nenhum cliente. Preenchi os formulários (alemães adoram formulários!), etiquetei tudo com a meticulosidade germânica já minha conhecida e me aproximei do balcão. O atendente era um senhor bem forte (por que não dizer gordo?), bochechudo, olhos azuis escondidos pelas rugas da face, ligeiramente corado, barba branca bem tratada, cabelos idem. Muito simpático.

Pegou o pacote e me perguntou algo em alemão. Não entendi bulhufas. Ele repetiu. Nada. Perguntei se falava inglês, francês, espanhol, português. Nada. Então, ele olhou para mim, abriu os braços como asas flutuantes e perguntou:

- “By fly?”

E depois, juntando as mãos, como imitando um barco flutuando através do mar, perguntou:

- “ Or by ship?”

Entendi a pergunta: era para ir de avião ou de navio? Claro, de navio, é bem mais barato. Leva uns dois meses, mas quem tem pressa? O importante, no entanto, não foi isso. O que me chamara a atenção fora o jeito engraçado com que ele gesticulara. Tão engraçado, que não resisti: propositadamente, copiei seu gesto, tentando caricaturizá-lo ao extremo: juntei as mãos e as fiz flutuarem no ar escandalosamente, exatamente como ele fizera e repeti:

- “By shshiiippp!”

O senhor não resistiu. Soltou uma gargalhada tão gostosa e contagiante, que pensei que o mundo estaria todo feliz naquele momento. Comecei a rir também, contagiada e, logo, despregadamente. O funcionário ao lado, que a tudo assistira, caiu num riso solto, idem. E os três não conseguiam parar. Rimos de torcer, como quem pede para parar pelo amor aos deuses. Mas não conseguíamos. Era terrivelmente contagiante, como se fosse a piada do século, como se as crianças que habitavam em nós surgissem à tona, ao mesmo tempo.

Nesse momento, entrou um cliente, um desses alemães bem carrancudos. Olhou para nós três com olhar de quem não estava entendendo nada e também de reprovação. Éramos loucos ou coisa assim? Acenou com a cabeça e... retirou-se da agência. Pronto! Foi o suficiente para rirmos em dobro pelo ridículo que deveríamos ter passado ao carrancudo senhor...

Rimos muito muito muito. Rimos como amigos de infância que se encontram para uma tarde de aventuras e piadas. Rimos como seres humanos que se encontram felizes, independentes de raça, religião, cultura, língua ou crenças. Rimos cúmplices. Jamais me esquecerei. E por mais que tente, não consigo reproduzir a profundidade desse momento em palavras. Se puder, busque você imaginar o puro encantamento: “ by shshiiippp!”

Ah, Alemanha, cujo colorido e aventuras povoam meu coração...

Saí da agência levando na mente aquele rosto corado e simpático, a barba branca, a pança avantajada, os olhinhos azuis... e... principalmente, aquela gargalhada franca e contagiantemente gostosa.

E... de repente... tive a indescritível sensação de ter descoberto onde Papai Noel se esconde durante o ano: Quem diria!... Funcionário dos correios! Nada mais apropriado...

2 comentários:

Celina disse...

Querida,
Amei esse momento. São minutos como esse que perduram na memória, emoldurando uma visita a um lugar. Rir assim, é inesquecível. E encontrar Papai Noel em plena agência dos Correios na Alemanha, não tem preço!
beijos

Natália Ramos disse...

Que linda a história! Havia também lido a parte 1 da mesma! Você narrou a história de maneira tão contagiante que senti como se eu mesma estivesse lá! Adorei ler a sua história, e por 2 motivos:

1) É uma história linda, linda mesmo!
2) Eu pretendo ir para a Alemanha, e juro: Também esperava encontrar gente carrancuda e fria lá... até ler seu conto e ter meu preconceito desmoronado! Muito obrigada, de coração!