sábado, 4 de dezembro de 2010

O PASSAPORTE


Você conhece algo mais fácil do que tirar passaporte com antecedência? Não tem. Com antecedência, claro.

Meu primeiro passaporte demorou muito. Marinheira de primeira viagem e um sistema operacional manual, nos idos tempos da década de 70, me exigiu o fôlego e a paciência de tirar aquele retrato em estúdio de fotógrafo, segurando uma plaquinha com data aparente, no peito, e pano de fundo branco. Quem é da minha geração se lembra: típica foto de bandido em delegacia. Dali, providenciar uma lista inumerável de documentos, guia de banco (essa técnica já existia) e uma fila do caramba, na Polícia Federal da Praça Mauá. E esperar, claro. Ah, quase ia me esquecendo: acordar cedo, como quem entra em qualquer fila pública da época. E levar um lenço, pois lambuzavam todos os dez dedos para tomarem as impressões digitais pelo método de mil novecentos e vovô criança: uma tinta preta horrorosa espalhada em cada dedo, pegajosa, para que as nossas pegadas saíssem impressas na ficha da polícia. Aquela tinta que, uma vez lambuzada, colocava você diretamente em cheque com o desafio de não manchar sua roupa. Pode imaginar, não? Hoje, apesar de algumas exceções, as coisas melhoraram bastante nos órgãos públicos para darmos entrada em documentos. Pelo menos, você pega uma senha e senta. E se livra, também, de alguns desses desconfortos. Naquela época, além dessas técnicas do século passado, você ficava numa fila de dar voltas em quarteirão e era, literalmente, na rua mesmo, fizesse sol ou chuva. É verdade que tinha uma taxa de urgência. Com ela, você conseguia fazer em uns 15 dias, mas, nesse caso, era melhor contratar um tal de despachante. E saía bem caro. Além disso, tinha de enfrentar a fila, na mesma, no dia da impressão das digitais, etc.

Fora dessas circunstâncias, tirar passaporte com mais facilidade, só se fosse o consular ou, então, os chamados especiais, de empresas, etc. Nós, simples mortais, tínhamos de tirar com antecedência mesmo e com todos esses embaraços.

Mas as coisas melhoram com o tempo e foi graças aos primeiros avanços tecnológicos que vivi minha pequena, mas inesquecível aventura com a Polícia Federal, na saída do país, em 1998, às vésperas de um dos congressos mais importantes da minha vida.

Tudo começou com o tal “avanço tecnológico”: era possível tirar passaporte pelo correio! Que maravilha! Depois de duas décadas pelo método confuso, digo, antigo, poder ir ao correio e entregar tudo ali, no balcão, era um pedaço de céu. Com antecedência, é claro, pois demorava um mês para chegar. Indo na Praça Mauá, já se conseguia em 10 dias. Mas com todos aqueles embaraços já descritos.

Eu sempre faço as coisas com antecedência e, se puder ser com conforto, melhor ainda! Então, juntada a tal foto de presidiária com data e pano de fundo branco, a taxa do banco, o passaporte antigo e os documentos de praxe, me mandei para o correio, na esquina de casa, e dei entrada nos papéis. Protocolo em mãos e... esperar. Mas, é claro, não sou tão confiante assim. Eu já tinha minha nacionalidade portuguesa assegurada e, idem, passaporte europeu. Qualquer vacilo burocrático, estaria segura, não perderia a viagem. Já viu alguma taurina agir sem mil metros de segurança a sua volta?

Vinte e cinco dias depois (vinte e cinco dias e não trinta!!!), recebi a notificação de entrega e me mandei para o correio. Ele estava lá, lindinho, fofinho, me esperando. Assinei todos os recibos de entrega (um monte!) e trouxe minha jóia para casa. Abri para conferir com mais calma. Tudo certo, com exceção da... data de nascimento! O dia e o mês estavam certos, mas o ano, veja só, era 1995. Oficialmente, portanto, eu tinha apenas 3 anos de idade! Achei um absurdo sem nexo. Como teriam errado desse jeito? Como teriam achado um ano assim? Eu nasci em 1951. Não dava nem para imaginar a troca de 1955 por 1995. Mesmo fazendo um trabalho sem atenção ou automatizado, como o funcionário conseguira essa proeza? E não daria tempo para modificar, mesmo que eu fosse diretamente à Praça Mauá. Faltavam apenas dez dias para a viagem e eu tinha mil coisas a fazer. Estava em meados de junho, o congresso começaria no dia 25, no Porto, Portugal e eu tinha provas dos alunos para corrigir, notas para entregar, arrumar a mala, enfim, todas as atolações de viagem em final de semestre letivo. Sem contar com os últimos preparativos de minha apresentação no congresso, já que eu era uma das palestrantes! Nem pensar em tentar a trabalheira de consertar o passaporte. Mas eu queria sair com passaporte brasileiro, pois, quem viaja sabe como é bom sair com o brasileiro, entrar lá com o europeu e fazer o caminho de volta ao inverso. Significa, literalmente, livrar-se de quatro (quatro) grandes filas de engarrafamento nos setores de migração: quem é “de casa” passa mais depressa, quando não passa direto. O que fazer, então? Ora... tentar sair com aquele mesmo e “ver se cola”. Típico jeitinho brasileiro, que todos conhecemos. Afinal, o erro não tinha sido meu!

Resolvi, por via das dúvidas, levar minha certidão de casamento, anexada ao passaporte, minha identidade básica, mais genuína que minha carteira de identidade. Ao tirá-la da pasta de documentos para anexá-la ao passaporte, tive a curiosidade de relê-la. No final, a averbação de meu divórcio: 18 de dezembro de 1995. Ah... estava lá! O funcionário deveria estar bem distraído, quem sabe, conversando com a namorada ao telefone, quando fez uma miscelânea nos meus dados, misturando o ano do meu divórcio com a data de nascimento! Tinha sido isso. Explicada a confusão. Ok, vamos transformar isso num argumento, levar o documento original e ver no que dá.

E foi o que fiz: o funcionário, quer dizer, o agente federal abriu o passaporte em frente a uma viajante com cara de inocente, super calma e feliz. Mas não adiantou, ele viu a data e não deixou passar barato:

- Seu documento está errado. Aqui consta nascimento em 1995.

Tentei brincar:

- Está correto, é a data do meu divórcio. Nasci, de novo, nesse ano.

Ele não deu chance, embora esboçasse um leve sorriso:

- Mas está oficialmente errado, não posso deixar passar.

Continuei tentando brincar:

- Tem razão, faltam a fralda e a mamadeira. Só que não posso deixar de viajar de jeito nenhum. Tenho uma palestra em um congresso no dia 25, depois de amanhã. Nem pensar em não viajar hoje. Chegarei a Lisboa amanhã, dia 24, sigo direto para o Porto, durmo e apresento meu trabalho no dia seguinte! Tenho de viajar nem que seja no bagageiro (tentava mostrar bom humor para ver se ele não emplumava)

- Não posso deixá-la viajar com a documentação errada!

- Mas o erro não foi meu! Você está vendo! Estou levando minha certidão de casamento junto para mostrar, se for o caso. Não posso deixar de ir. Recebi assim do correio, às vésperas da viagem, não deu tempo nem de verificar! Se preciso, chame seu supervisor, faça qualquer coisa, estamos a três horas do vôo e vocês podem consertar ou verificar o que quiserem. Mas eu tenho de ir!


Eu estava tentando garantir minha volta sem grandes embaraços ao solo pátrio, com o passaporte nacional. Mas já estava pronta para puxar o outro, se fosse necessário. O supervisor chegou trazendo o passaporte, entre sério e solícito, pois sabia a bomba que tinha nas mãos. Falou delicadamente:

- Por mim, uma vez que o erro não lhe cabe, eu a deixaria passar, mas a senhora não conseguiria entrar em outro país com essa data errada!

Aliviada, então, mostrei o outro passaporte:

- Então, está tudo certo: o senhor me deixa sair com esse que eu entro com esse outro no outro país.

Com esse argumento, ele só pode ceder e me fez prometer que consertaria o passaporte tão logo voltasse ao Brasil.

Felizmente, tinha os dois passaportes, senão, talvez não tivesse viajado, curtido um dos melhores congressos de que participei, além de poder ter vivido uma das grandes aventuras amorosas de minha vida: meu encontro com um africano gabonês de sonhos. Mas isso eu conto em outro conto.

Voltando ao Brasil, corretinha como sou, fui super fiel a minha promessa: me apresentei à Polícia Federal para o acerto. A primeira coisa que o funcionário fez foi perguntar como eu tinha conseguido viajar com aquele documento. Quando soube de meu outro passaporte, apenas disse:

- Então, pode deixar como está! A senhora usa esse assim mesmo até a data de validade. E utiliza o outro para entrar nos outros países.

Pode acreditar? Foi isso mesmo. Ele deveria ser irmão daquele outro que carimbou a data errada. Só podia ser. Tão competente e sério quanto aquele... marca de família.

Eu deveria ter feito um escândalo, mas, sinceramente, iria dar tanto trabalho e eu estava em um momento tão atribulado de minha vida que acabei deixando passar. Afinal, não planejava viajar tão cedo e, na verdade, tirei outro passaporte dois anos depois por conta de uma outra viagem. Aleguei ter perdido o anterior. Na verdade, o que eu queria era guardar como lembrança o erro inconseqüente - ou, quem sabe, inconsciente? - de alguém que colocou o ano de meu nascimento para uma “nova vida” em um de meus documentos oficiais... presentes da vida...

Agora, para tirar um passaporte, você faz tudo por internet e vai lá, em algum lugar perto de casa, apenas para assinar, tirar uma foto digital e colocar seus dez dedos numa máquina também digital, sem necessidade de sujá-los com aquela tinta preta horrorosa. E faz isso com hora marcada, sem precisar esperar, pois, desde sua inscrição pela internet, você pode escolher posto, dia e hora para entregar os documentos, tirar foto e imagens das impressões digitais. Muito chique. Depois de uns 10 dias, passa por lá e pega sua jóia. O único problema é que, na inscrição pela internet para preencher o formulário e marcar a data de entrega dos documentos no posto, dependendo da época do ano, você só consegue vaga daí a um mês.

Mesmo assim, tirar passaporte, hoje em dia, é realmente muito simples: tudo computadorizado, automaticamente conferido, pois você é um número bem delineado nas máquinas do sistema... e não passa pela possibilidade de viver a aventura de ter de brincar com um oficial da migração para conseguir sair de seu país.

Mas tudo isso, é claro, se tomar essas providências com antecedência, pois, se quiser deixar para a última hora, ah... vai ter de viver tudo que eu vivi (com exceção da foto de presidiário e a tinta preta nos dedos), só que no aeroporto internacional, setor da polícia federal – migração -, enfrentando uma fila de mais de duzentas pessoas, todas igualmente apressadas e atrasadas como você. Soube disso, por uma amiga, dessas que deixa as coisas para o último minuto. Mas se você quiser arriscar essa forma ancestral, conhecerá um pedacinho das tormentas que vivíamos no século passado. E, quem sabe, de brinde, viva suas próprias aventuras...

2 comentários:

Celina disse...

adorei essa volta ao passado! meu primeiro passaporte foi tranquilo (mas com dedos sujos e todo o resto), já o segundo, tive que acampar no estacionamento do Rio Sul às 4 e meia da manhã 2 vezes! Só consegui na segunda. Já a foto, a minha saiu mais para terrorista! bjs encalorados!

Escritora Tânia Barros disse...

Sim, hoje é fácil e rápido. Tirei o meu tb. assim. Sete dias e estava pronto. E ainda me permitiram tirar outra foto digital (na P.F.), pois achei que, na primeira tentativa, fiquei com o rosto muito sério. (risos)