sábado, 11 de dezembro de 2010

PRECONCEITO (Alemanha 1)


Visitei a Alemanha, pela primeira vez, na década de oitenta, com um puríssimo preconceito pendurado a tiracolo, de quem ouviu a vida inteira que o povo alemão é rude, não sabe rir, não é gentil. Fui assim, esperando caras fechadas por todos os lados e preparada para enfrentar 20 dias de completa antipatia.

Entramos por Hamburgo, meu ex-marido e eu, vindos de Amsterdã, aquela cidade maravilhosa, super acolhedora, que já mereceu um conto à parte! Desci do hotel direto para um pequeno mercado para comprar frutas. Felizmente, ali, quase todos falam inglês. Foi aí que tive o primeiro e definitivo contato, com esse povo que saía, enfim, das telas de meus filmes de guerra da adolescência para a realidade. O mercado era bem pequeno, digamos, uma pequena venda, com apenas dois funcionários. Na verdade, pareciam ser o casal de donos. Estávamos no caixa, meu “ex” puxando o dinheiro para pagar as contas enquanto eu empacotava as frutas. O alemão do caixa era um senhor corado, gordo e de cara fechada. Pura rabugice, pensei eu. Mas... já que estava na chuva, continuei contrita minha tarefa de empacotamento, ansiosa por ir embora e me largar, ainda que tímida e titubeante, pelas ruas da cidade.

Foi, então, que aconteceu: antes de dar o troco a meu “ex”, o tal senhor olhou-me (sem sorrir) e me estendeu a mão com algo dentro. Instintivamente, estendi a minha, sem saber para quê. Ele, gentilmente, colocou uma pequenina moeda em minha mão e fechou-a delicadamente sem pronunciar palavra. Não sei se sorriu, mas pareceu sorrir. Olhei para ele e para moeda e traduzi, imediatamente, aquele pequeno brinde ao meu coração: bem-vinda a minha casa. Meus olhos se encheram de lágrimas, como boa latina que sou. Agradeci, comovida, entendida a gentileza de tão suave e sutil acolhida. Na rua, já estava com o rosto banhado em lágrimas, meu “ex” sem ter entendido nada, me perguntando o que significava aquilo tudo. Expliquei-lhe finalmente que tinha vindo àquele país com a maior má vontade (ele não sabia), apenas pelo amor de acompanhá-lo em seu capricho consumista (ele era ou é, colecionador de miniaturas de trens, hobby caro de pecinhas minúsculas, cujas fábricas são alemãs). De repente, tudo que eu pensara e construíra em minha mente a respeito do povo, tinha sido divina e poderosamente destruído pela singeleza do toque de alma daquele senhor gordo, corado e... tão gentil!!! Chorava de emoção, de culpa, de gratidão. Por muitos e muitos anos esta moeda me acompanhou, tomando o lugar de honra em meu porta-níqueis, até que, um dia, a perdi. Mas guardo aquele gesto até hoje, num cantinho especial de meu coração.

Daí por diante a Alemanha abriu meu coração para sempre. Não havia um lugar em que eu parasse, abrisse o mapa para me posicionar na cidade e não visse, imediatamente, algum alemão se aproximar: “may I help you?” Que povo maravilhoso! Minhas caminhadas por todas as cidades eram simplesmente magníficas. Fazia-as com sabor de festa, enquanto meu então companheiro passava os dias enfiado nas lojas a busca de seus trenzinhos de brinquedo. Vinte dias de liberdade de caminhadas, colhendo aqui e ali o que a alma deste povo esconde em seu interior. O país é pródigo em belezas naturais e estruturais, em museus, passeios, atrativos os mais variados. É possível andar para cima e para baixo, para todos os lados, no meio daquela língua belíssima, mas incompreensível, sem se perder. Tudo corre a tempo e a hora, numa organização ideal para o turismo com todas as facilidades de deslocamentos.

Nada de excursões. Grupos em que somos contados como carneiros não estavam em meus planos. Assim, a organização e a facilidade de achar-me e deslocar-me independente da língua tornava-se essencial. E a Alemanha é pródiga nesse item. Os trens saem absolutamente no horário, com exceção dos de Frankfurt que saiam com exatos cinco minutos de atraso, mas chegavam ao seu destino no horário estabelecido pelos folhetos. É claro que me refiro à década de 80. Agora não sei como são. O fato é que me senti completamente em casa em todas as vezes que fui lá e não foram poucas... e é o país de onde tenho mais aventuras para contar.

Lembro-me de uma passagem muito interessante no metrô de Munique. Eu estava encarregada, em todas as cidades, de conseguir um mapa miniatura do metrô para compor uma das inúmeras coleções do “ex”, cujo hobby compunha uma lista invejável de itens, entre relógios, mapas, latinhas de coca-cola, canhões de brinquedo, ferramentas, destacando os tais trenzinhos com suas cidadezinhas montáveis, itens aos quais ele dava maior vazão nas viagens.

A mim, não custava nada bambolear pela cidade a busca de mapinhas de metrô pequenos e bonitos (pois nem sempre eram oferecidos no metrô) para enfeitar o corredor de nosso apartamento. Eu não fazia lá muita questão desse tipo de enfeite, embora ficasse gracioso, confesso. Do que eu gostava mesmo era ter de serpentear pela cidade com o pretexto de encontrá-los. Perdia-me sem mapas (muitas vezes, abandonava os mapas e adorava me perder pelas ruas), justamente para buscar um mapa, imagine! Para mim, soava interessante. Pois bem, em Munique, não achava um mapinha que prestasse. Resolvi, enfim, ir direto ao metrô. Falaria com algum encarregado, perguntando onde poderia encontrar a minha prenda. Acabei por achá-lo, dias depois, numa banca de jornal escondida, mas, antes disso, teria de passar por uma pequena, mas deliciosa aventura:

Desci do hotel, num horário compatível com o pedido. Metrô sem muito movimento, tudo bem arquitetado em minha mente, pois, a essa altura, eu já estava entendendo um pouco como se fala com o povo alemão e em que situações a aproximação é mais promissora. É exatamente como os chiliques que também temos em nossa cultura e não nos damos conta que existem: tudo tem seu tempo e hora...

Me dirigi à bilheteria e foi onde eu entrei em contato, pela primeira vez, com o espírito de humor germânico. Fiquei ensaiando como falaria em inglês, já que o francês, língua de minha preferência, não é tão usada assim nos outros países europeus. Busquei meu sorriso mais significativo de socorro e perguntei ao jovem que estava atendendo: do you speak English? Aceno negativo. French? Não. Spanish? Não. Portuguese? Não. Caramba... então, ele sorriu (eu aprendera a ler o sorriso alemão!) e apenas me perguntou: Deutsch? Aí, sim, sorrimos os dois. São assim as piadas alemãs.

Eu não falava o único idioma que seria necessário falar naquele momento... tanta erudição jogada fora... Fora? Não: dentro! Ele deixou outro funcionário no lugar dele, deu a volta, saiu da “gaiola” e se dirigiu a mim gesticulando de modo a me fazer entender que eu me expressasse como desse. Isso é a rudeza alemã? É assim que eles tratam mal a gente? Valha-me um cartucho de sal! Francamente, eu não encontro isso em muitos lugares da terra...

Apontei para um out door com o mapa do metrô na parede. Vale o aparte: lá há mapas enormes, onde você pode ver todo o trânsito das incontáveis linhas de metrô – em alguns deles, você clica o botão com o nome da estação de destino num pequeno mostruário abaixo desse mapão e nele acende-se o roteiro, partindo da estação em que você se encontra até chegar à estação de destino. Assim, você pode acompanhar o trajeto, inclusive as baldeações, se necessário, sem precisar falar uma palavra de alemão.

Bem, voltemos ao conto: apontei para um desses mapões e fiz um gesto com as mãos, mostrando que gostaria daquilo em tamanho pequenininho. O jovem entendeu prontamente e fez aquela expressão de “lamento, mas não temos”. Fiz um gesto como quem pergunta onde poderia achar. Ele fez cara de quem não sabia, mas algo em seu olhar iluminou-se. Imaginei que ele tinha resolvido o meu problema. Fez sinal para que eu esperasse e sumiu entre as pessoas, entrando por uma porta restrita aos funcionários. Passei uns vinte minutos à espera. Se não estivesse na Alemanha juraria que ele tinha me deixado na mão. Mas não. Ele voltou com algo e me entregou. Imagine você: ele estava me dando um mapa daqueles enormes, um out door que caberia na parede de uma sala! Não posso pensar em como ele conseguiu aquilo, só para agradar a uma turista que ele nem conhecia. Mas fez. Olhei para ele estarrecida, com um olhar de admiração incontestável. Ele apenas sorriu singelamente, o melhor que um alemão convicto sabe fazer, acenou gentilmente a cabeça, como quem diz que “não foi nada, foi um prazer” e retirou-se para seu guichê. Sorri para ele, ainda, de longe, deixando bem claro o meu reconhecimento e minha gratidão. Eu não tinha a mínima idéia de para que aquele mapa me serviria, em casa, mas isso era o de menos. O que valera, ali, fora a boa vontade, a elegância, a delicadeza.

Ah, a Alemanha... de povo sério, de alma gentil. E de um humor que poucos sabem entender. Acho que ela vale mais um conto, um conto de natal, na semana que vem...

3 comentários:

pblower disse...

uando vamos voltar a visitar a terra?
beijocas

Eulalia disse...

Por mim, muito em breve, pois fiquei com saudades só de escrever... (risos) Vamos?

Celina disse...

eu sei como é ter saudades só de escrever... e que delícia quando a gente muda tudo, toda uma pré ocupação. que delícia de "contei uma estória"! Mudar é a única certeza que eu tenho na vida.
Acabo de ler seu comentário! Querida, por conta das mudanças, acho que vamos nos ver em breve! Ao vivo! muitas bjokas!