sábado, 5 de março de 2011

O NOIVO


Poucas mulheres puderam, como eu, ter tido um príncipe ao vivo e a cores, sondando seus passos de infância.

E esse não era um príncipe encantado. Era humano. Não saíra dos contos de fadas. Podia tocá-lo a qualquer instante. Talvez por isso, na minha adolescência, enquanto minhas colegas colecionavam retratos dos Beatles e respondiam àqueles questionários com nomes de artistas de filmes, cantores ou outros ídolos, nas questões que investigavam quem indicar como modelo de homem para elas, eu colecionava paisagens, escrevia poesias para um alguém indeterminado, mas bem delineado em meu coração e respondia àquela pergunta “quem você escolheria para se casar”, apenas dizendo: um homem que possa guardar com carinho meu rosto em suas mãos. Eu havia vivido isso... e com intensidade. Estava marcada, tatuada por uma vivência inesquecível.

Apenas um muro me separava da realidade desse encantamento. Sua avó morava ao lado e, já aos cinco anos, ele sabia muito bem com quem iria se casar quando crescesse. Descobri isso numa tarde despregada de domingo. Aos cinco anos, eu só conseguia identificar os domingos, por ver toda a família dele almoçando na casa da avó. Ah... o feijão de D. Mariazinha, de gosto e leveza inesquecíveis...

Meu príncipe estava encarregado de levar, lá de casa, o famoso pão-de-ló, obra prima de minha mãe, para a sobremesa da família. Unha e carne, como diziam, estávamos colados um ao outro quando ouvi sua voz límpida e firme entregando o doce a avó, na frente de todos que estavam sentados em torno da mesa:

- Aqui, vó, o bolo da sogra.

Estava firmado o noivado, com os pais, irmãos, tios e avós presentes.

Engraçado, num gesto espontâneo, não premeditado, por coincidência (?), ninguém da minha família. Desde cedo, refletiam-se os caminhos de minha identidade com o mundo. Mas isso é outra história... Voltemos aos fatos.

Senti o coração bater com força. Eu não sabia bem o que significava, mas sabia que, naquele momento, era para sempre. Minha alegria interior era tamanha que colei os pés no chão para não cair, sorriso por dentro, encabulamento por fora, diante do riso solto e descontraído que esta frase simples e ingênua roubou de todos, acompanhado da observação do avô:

- Ora veja só... escolheu a moça de olhos mais lindos que já vi e de alma irmã a sua, meu neto.

Ele era apaixonado pelo avô, então, qualquer coisa que dissesse, era lei. Estava, pois, firmado e confirmado o compromisso, perante o avô e o mundo. Mas ele era assim, ouvia as coisas com a maior simplicidade do mundo e, pelo menos por fora, agia como um homenzinho miniatura, gigante aos meus olhos, senhor das situações, sabendo muito bem o que fazia. O encantamento estava sempre espalhado por toda a parte, permeando a naturalidade com que ele encarava todos os nossos interesses comuns. O encabulamento ficou apenas por minha conta...

Não havia segredos entre nós, pois líamos os pensamentos um do outro, num relance de olhar. Às vezes, nem isso. Os adultos diziam que nossos corações deveriam bater no mesmo ritmo, tão evidente tudo se fazia.

Lembro-me que ele era ligeiramente mais baixo do que eu, mas o suficiente para incomodá-lo. E na única foto que guardei de nós dois, lembro-me que, sem combinarmos, ele levantou um tiquinho os calcanhares exatamente no mesmo momento em que me encolhi toda, o mesmo tiquinho... o suficiente para que a diferença não aparecesse tanto. Essa era a sincronia de nossas atitudes. Eu não me incomodava por ser mais alta, ele já era grande aos olhos da minha alma, mas não queria que ele se visse mais baixo na foto...

Ele não sabia andar até a pracinha sem ser de mãos dadas comigo. Se algum garoto tivesse a gracinha de me chamar de vesga (eu era estrábica), não importava a altura ou a idade do tipo, ele avançava, leão em sua pequenez, pronto mesmo para bater, dizendo:

- São os olhos mais lindos mundo e ela é muito bonita também!

Um pouco possessivo, confesso, pois eu só podia brincar com ele. Mas, àquela altura, estava ótimo para mim. Era o melhor amigo de folguedos que eu conhecia e ele cuidava para que tudo fosse seguro e confortável. Eu me sentia mesmo uma princesa, sem o saber.

Lembro-me de nossa inocência, de nossa naturalidade, de nossa cumplicidade. Foi com ele que me deparei, pela primeira vez, com a aparência do sexo oposto, no sentido literal da palavra. Apertado, num dia qualquer, ele encostou-se numa arvore e fez ali mesmo o que mais precisava fazer. Olhei encantada para o que jamais vira e apenas disse:

- Que aparelhinho prático! Quero ter um também!

Ele voltou-se sério:

- Você não pode ter um!

Perguntei por que, como se fosse o maior e mais burro impedimento do mundo. Lembro-me de sua solenidade:

- Se você tivesse um, seria um menino e não poderia se casar comigo, quando crescesse.

Pronto, ali mesmo, fazendo xixi, ele conseguiu, num só ato, resolver suas necessidades práticas e momentâneas, desfazer os complexos que algum adepto de Freud levaria anos para tirar de mim quando eu crescesse, me conceder o conhecimento saudável das diferenças e me dar a alegria inenarrável de tê-lo como parceiro. Ficou tudo certo, no mesmo segundo, e eu jamais iria querer ter aparelhinho prático algum.

Chegamos em casa (a casa da avó) e a primeira coisa que ele fez foi contar a aventura à velha senhora (adultos grisalhos são velhos para crianças de cinco anos ainda mais quando já são avós...), brincando ingenuamente com a minha ignorância. Ela sorriu e, sábia, confirmou as informações daquele menino tão esperto...

Não sei exatamente como aconteceu, mas deve ter sido no mesmo dia: tomamos banho juntos, em sua casa, dentro de uma banheira daquelas antigas, colocadas naqueles banheiros brancos e monstruosos, típicos das casas tijucanas da década de cinqüenta. A água era fria, embora a chuveirada fosse das boas. Mas ele parecia intuir minhas necessidades tão logo surgissem e mal nos ensaboamos e saímos da última chuveirada, a primeira coisa que fez foi saltar da banheira, molhando todo o chão para pegar uma toalha, me enrolar e me esfregar bastante as costas, dizendo a avó:

- Ela tá com frio, vó, arrepiada, vamos secar depressa.

Não me lembro de outro banho, mas a gentileza deste foi suficiente para guardar mais esta pérola em meu coração. Para a sábia e esperta avó, talvez para tirarmos qualquer dúvida sobre a sexualidade infantil; para nós dois, apenas mais uma oportunidade de estarmos juntos e felizes. Tal era a nossa inocência e, talvez, tal a certeza, entre nós, de que, provavelmente, tudo teria o seu tempo.

Eu ficava de castigo com freqüência. Meus crimes se resumiam a apenas um: não queria comer. Ficava, por conta disso, horas a fio (para mim, horas... e... infindáveis), num canto da sala de visitas, de cara para a parede. Mas de nada adiantava. Depois disso, a comida, com mais razão ainda, simplesmente não descia. Nos dias de castigo, meu pequeno amigo se negava a ir brincar na pracinha ou ia apenas para catar umas sementinhas dessas de estalinho que as crianças gostam de pisar (ou gostavam, quando infância nas praças ainda existia). Colocava tudo numa caixinha de fósforos e me esperava sair do castigo. Então, pulava o muro e espalhava pelo chão do meu quintal aquele tapete de sementes para que pudéssemos nos divertir juntos, pisando uma a uma...

Meu estômago era travado por razões advindas da família complicada que povoou a minha infância. Coisas já analisadas, que não puderam ser resolvidas com a mesma simplicidade de quando quis ter um pênis ao ver o de meu noivo, pela primeira vez. Afinal, os terapeutas precisam de nós para consumarem sua vocação... e nós, muitas vezes, precisamos deles para nos olharmos melhor no espelho. Agradeço sinceramente ao meu por isso.

Mas voltemos ao caso: meu estômago era travado. Não era birra nem teimosia. Era travado mesmo, fechado a sete chaves e eu, literalmente, diante de um irmão muito mais velho e prepotente olhando sério para mim dizendo que, naquele dia eu ia comer de qualquer jeito, ficava pensando por que não poderíamos nos alimentar de ar e brisa e não de comida. Minha teimosia era essa... e castigo sempre, o que não adiantava muito, pelo contrário.

Meu noivo, no entanto, era paciente e sempre me esperava sair do suplício. Estava a postos, do outro lado do muro, esperando para me ver. Quantas vezes (inumeráveis!), ao pular o muro e perguntar se já tinha almoçado, diante da minha negativa, dizia que não tinha almoçado também e que estava me esperando. Eu lhe dizia que não iria comer de jeito nenhum, mas, jeitosinho, ele me convidava apenas a ficar olhando, enquanto ele comia. Foi assim que conheci o gosto inesquecível do feijão de D. Mariazinha. Uma garfada para ele e, talvez, dez para mim, tiradas do mesmo prato. Hoje, penso que, talvez, ele já tivesse almoçado todas aquelas vezes e usava esse ardil para me fazer comer... e eu comia tudinho. É bem provável que fosse lá idéia da D. Mariazinha, experiente da vida e das crianças. Fosse o que fosse, ele cumpria seu papel, com a leveza de um pequeno anjo.

Conversávamos sobre tudo... eu não me lembro que tudo era esse, mas ouvia os adultos dizerem que esses dois vivem conversando o dia todo, não sei o que tanto eles têm para assuntar... Tínhamos nosso canto para conversar. Sempre o mesmo na casa da avó e também sempre o mesmo, quando era no meu quintal. Lembro-me, como se fosse em um filme, da avó que olhava da janela da cozinha e, de vez em quando, sorria para nós. Ninguém se aproximava, nossas conversas eram íntimas, por certo, e muito longas e respeitadas por todos. Afinal, éramos noivos. Como eu gostaria de saber, hoje, o que tanto tínhamos para falar, aos cinco ou seis anos de idade...

Aliás, o aniversário de seis anos dele foi inesquecível. Tantas e tantas crianças, correndo de um lado para outro... e, por incrível que pareça, só me lembro de um único e contundente detalhe: meu amigo, perdão, meu noivo, com aquela cara que eu bem conhecia nele, de quem vai aprontar alguma, se aproximou de mim, com dois alfinetes na mão:

- Vamos sair furando as bolas de todo mundo?

Coisas de menino... mas essa menina, aqui, muito séria redargüiu:

- Isso não se faz, é maldade, eles vão ficar tristes e chorar.

Ele não era menino de abrir mão de seus caprichos... mas também não era príncipe de desonrar os desejos de sua princesa. Eu acho mesmo que eu sempre o colocava em maus lençóis consigo mesmo por causa disso, mas só me lembro desse fato, em particular. Sumiu. Mais um pouco, ele voltou, com os dois alfinetes: estava resolvida a história: ele tinha falado com a mãe e conseguido tirar mais um bando de bolas de gás dos enfeites da festa e estava tudo certo: nós furávamos e, logo depois, oferecíamos outra. E assim foi feito para a alegria dele e minha. Danadinho...

No cotidiano, brincávamos de casinha e ele sempre ia fazer as compras, trazendo pedacinhos de folhas e flores para minhas panelinhas de brinquedo. Também nos divertíamos com corridas de carrinho e outras coisas de menino, dos brinquedos fantásticos que ele trazia da casa de sua mãe para nosso devaneio.

Meu homem já sabia o que seria quando crescesse: ortodontista, tão bom quanto o avô. Vivia namorando o boticão, as pinças, a maleta, o jaleco e tudo mais que faz do dentista um médico de grande parte de nossas amarguras da infância e da adultícia. Eu não tinha nenhuma dúvida de que ele seria o melhor dentista do mundo. E foi por isso que, quando meu primeiro dentinho amoleceu, foi para ele que corri. Este foi o único momento, em toda a nossa infância, que me lembro de nos termos enfiado atrás da porta, às escondidas. Ele, com as mãos impecavelmente lavadas, eu e o boticão do avô.

Para mim, foi o único momento em que me senti em risco, mas minha confiança nele era mesmo inabalável. E foi tecnicamente, com perícia inusitada que meu primeiro dente foi arrancado num desses domingos familiares, por esse profissional precoce. Só então - terminada a operação que, diga-se de passagem, não doeu nem um pingo - ele se aproximou do avô, sussurrou-lhe ao ouvido e o trouxe puxado pela mão para a saleta de visitas onde havia me deixado, olhando de longe, mão na boca, pressionando um algodão contra o orifício deixado pelo dente extraído. Mostrou o feito e perguntou se estava tudo bem, apresentando o dente retirado e pedindo que o avô fizesse o exame de minha boca. Extração perfeita, diploma-mirim concedido, diante de toda a família, sob a voz de comando do avô, orgulhoso da traquinagem perfeita de seu neto, incluindo o cuidado profissional da consultoria posterior. Perdi meu primeiro dentinho, mas não perdi a ventura do amor, da dedicação, do cuidado.

As aventuras se perderiam, em linhas incontáveis, mas o que foi posto é mais do que suficiente para mostrar o quanto esse pequeno menino, de grande estatura para mim, contribuiu para a imagem do masculino que trago em meu perfil psicológico. É suficiente, também, para que entenda o que foi nossa despedida, comandada pela tranqüilidade desse meu pequeno grande herói.

Mas está ficando muito longo e o melhor está por vir. Conto o restinho na semana que vem.

5 comentários:

Anônimo disse...

Que conto gostoso, querida! Que maravilha de noivo e de significado.
Já estou à espera do melhor... :)
Beijos

vanessa cony disse...

Que graça!!!O amor assim ,sentido de uma forma tão pura!Estou ansiosa pelo resto da tua história! Beijo no coração.

Celina disse...

Eulália querida,
estou de volta a Londres e finalmente conectada! e que presente esse conto, com gosto de romance, com cheiro de infância, cores de rosa e de azul! e que vontade de continuar lendo, lendo... Que bom viver isso e melhor ainda saber contar assim!
ps obrigada pela sempre companhia de viagem! bjs

Virgínia Bravo disse...

espero ansiosa pelo final desse conto saboroso ...bjs Vi

pblower disse...

Eu adoro esta história!