sábado, 12 de março de 2011

O NOIVO (2)


Como prometi na semana passada, o resto do conto sobre meu amor de infância - a bifurcação do caminho:

Num belo (belo???) dia, soube que iríamos nos mudar da Tijuca para o Méier. Eu não sabia onde era, mas qualquer lugar que fosse maior do que a distância de um muro representava o outro lado de um mundo longínquo e desconhecido. Corri em prantos para ele. Eu seria levada embora! O que iríamos fazer? A dor era intensa; o susto, tamanho; a angústia, fatal. Pensei que não agüentaria a força do medo pulsando dentro de mim. O coração explodia, quase não conseguia respirar. Choramos os dois. Muito. Minhas mãos, coladas às dele, suavam. As dele também. Eu não via saída, só via o fim. E o silêncio dele, vê-lo pela primeira vez sem resposta, inaugurou em mim, o conhecimento das forças irrefutáveis dos rios da vida. Primeira sensação de morte. Eu não estava indo embora, estava sendo arrancada da felicidade.

Seus olhos azuis encontraram os meus, avermelhados pelo baque do abismo que a vida urdia contra nós. Sabia o que se passava em sua cabecinha masculina, impotente para me salvar. Sabia, sabia de cor e salteado, como sempre. Sabia de sua dor, no momento, tão profunda como a minha. Não se tratava de um dentinho a ser retirado. Que tipo de carinho poderia ser mantido, acolhido, que amor protegido e resguardado, diante do sacrilégio daquele momento?

Esta é a última lembrança nítida que tenho das palavras de meu doce companheiro:

- Não chore, não vamos chorar. Estamos com seis anos, um dia, vamos ter dezesseis. E quando tivermos dezesseis, vou achar você e já seremos grandes e vamos nos casar.

Não casamos, não nos encontramos. Mas não namorei ninguém, até os dezesseis anos de idade. Paquerei muito, brinquei muito, mas meu primeiro beijo só foi dado, quando, aos dezesseis, finalmente, consegui perceber que o verdadeiro significado de meu noivado era com esse perfil lindo de figura masculina, preservado, para sempre, graças ao convívio com aquele pequeno e doce príncipe de infância.

Vivi a vida, me casei, me separei, namorei muito. A imagem do masculino que ele perfilou, para mim, buscou moldar a visão de um homem companheiro e um parceiro de caminhada, o perfil que você, neste pequeno relato, pode vislumbrar.

Mas a história não acaba aí. Aos dezoito, a vida me fez encontrar a irmã mais velha dele. Coisas que não dá para explicar. Durante a conversa, nos reconhecemos, não me lembro como. Ela me deu o número do telefone deles. Eu não tinha um. O contato estaria, portanto, em minhas mãos, a não ser que a ele interessasse se mover, através da irmã, que sabia onde me achar, pelo endereço que lhe dei, um papel qualquer, talvez perdido em sua bolsa para sempre. Eu estava namorando. Ele, não sei. Não nos encontramos, não nos falamos. Cheguei a ligar uma vez, ninguém atendeu. Não liguei mais. Anos depois, talvez uns dez ou quinze, já casada, buscamos um dermatologista para resolver um problema de pele de meu ex-marido. Por coincidência da vida, era seu tio! Foi ele quem me reconheceu, perguntou se eu não era a menininha, filha do Sr. Joaquim, que havia morado na Rua Marechal Trompovsky, na Tijuca. Eu mesma. Me deu notícias de meu amiguinho, casado e com dois filhos. Perguntei se estava feliz. Ele disse que sim. Perguntei se era ortodontista, como o avô. Ele disse que sim, e dos bons. Sorri. Pedi que lhe dissesse que mandava um beijo e recomendações a toda a família. O avô tinha falecido, ele e o pai (também dentista) trabalhavam juntos no consultório que fora do avô. Era o fio de informação que seria vital para mim, muitos e muitos anos depois.

A vida passou. Me separei, tive outros relacionamentos. Fiz 50 anos. Me lembrei dele, no dia do meu aniversário. Bodas de ouro. Ele também fizera. Uma imensa gratidão brindou meu coração. Imensa. Imensa. Quis mandar um cartão de aniversário, acompanhado da manifestação dessa gratidão que transbordava pelos meus poros.

Busquei o catálogo telefônico. Achei o sobrenome do avô e o endereço do consultório (o tal fio de informação, dado pelo dermatologista, há mais de vinte anos atrás). Daí a achar o número de telefone atual foi um pulo, pois sabia o nome do novo dentista de cor, claro. Liguei. Ele não estava. Tinha outra clínica, também, em outro lugar. Mas eu só queria conferir o endereço. Não queria entrar em sua vida e, sinceramente, não estava pensando nele entrando na minha. Mas havia uma profunda paz, uma imensa gratidão que urgia em se manifestar. De repente, também quis conferir a sua voz. Liguei para a tal outra clínica. Chamei pelo nome:

- Dr. (...), está?

Mas eu já havia reconhecido a mesma voz pelo alô, só que adulta. Ele confirmou:

- Ele mesmo.

Inventei um nome: Maria de Fátima. Perguntei se atenderia o meu filho. Só queria encompridar o papo, conferir o som, no meu coração. A gentileza era a mesma. No fundo, era ele. Poderia mandar o meu cartão, sem problemas. Disse que ligaria para o outro consultório, pois seria mais perto para mim. Motivo encontrado para não marcar nada, para desligar, para não ter de dar um nome de um filho que eu não tinha.

Fiz o que havia me proposto: um agradecimento pela figura tão linda que tinha povoado a minha infância. Não havia mesmo outra intenção. Aos cinqüenta anos, revivendo os caminhos de minha vida, reconhecia nele, muitas de minhas escolhas. Não disse, mas sabia. Mandei o cartão e fiquei em paz. Não dei pistas, não deixei meu número de telefone, apenas o meu endereço de remetente. Lingüista, escrevi de tal forma que ele se sentisse apenas contemplado pela gratidão, carinhosa e delicadamente. Segui em paz. Para mim, havia completado o ciclo, fechado com chave de ouro, não deixando em aberto uma vivência tão linda e tão importante em minha vida. O personagem coadjuvante tinha o direito de saber o quanto fora importante para a formação do meu feminino. Os dias se passaram. Esqueci o fato.

Sinceramente, não pensei que os homens fossem tão curiosos quanto as mulheres ou, talvez, também tão preciosos em suas memórias. Não sei quanto tempo depois, talvez um mês, recebi um telefonema. Uma secretária:

- Um momento, Dr. (...) vai falar.

Dr. (...)? Eu não fui a médico algum... do outro lado da linha, a minha infância se manifesta:

- Você não tem idéia do trabalho que me deu achar você!

Eu ri, com a mesma cumplicidade de quarenta e cinco anos atrás.

- Foi mesmo?

O riso dele também era o mesmo:

- Claro, não sei nada de você, não sei se está casada, se podia ligar sem problemas, passei pela porta de seu prédio um monte de vezes, seu número não está na lista telefônica, consegui um telefone de um vizinho seu que me deu seu número (coincidência da vida mesmo, pois era o único vizinho, no prédio inteiro, que tinha o meu número de telefone...) e coloquei minha secretária para ligar para você direto, mas só caía na sua secretária eletrônica. Quero te ver.

Tudo isso assim, num fôlego só.

Nos vimos, ainda cheguei a ver seu pai vivo, numa das salas de seu imenso consultório. Velhinho, morreu pouco depois de minha visita, mas me reconheceu:

- Ah, sei, você era aquela amiguinha, vizinha da casa da minha mãe...

Sorriu para mim, me abraçou tão carinhosamente que me surpreendi com a emoção que senti. Naquele momento, me senti abraçando as emoções fiéis do passado, vendo nele, o que se tinha conservado de traços imutáveis. D. Mariazinha, a avó, estava viva, com perto de cem anos! Segundo ele, continuava a mesma... como eu gostaria de tê-la reencontrado!... Mas não cheguei a vê-la, morando fora do Rio. Meu amiguinho teve mais irmãos, depois que nos separamos. São cinco filhos, ao todo, quando eram apenas três naquela época. Cheguei a conhecer sua irmã mais nova. Uma gracinha! Também conheci seu filho mais velho. Um belo rapaz, seguindo os passos do pai.

Meu amigo mudou muito, é um homem de negócios, de vida particular muito conturbada, tem lá os seus problemas. Pelos meandros de nossos caminhos, seus princípios de vida se diferenciaram muito dos meus. Traçamos percursos tão diferentes que não consigo reconhecê-lo com os traços de infância. Tantas coisas devem ter acontecido...

Nos falamos por telefone vez por outra. Talvez tenha ido uma ou duas vezes a seu consultório, atualmente tão perto do meu, para um brevíssimo café. Ele também me visitou algumas vezes. Consigo ou tento reconhecer alguns traços, tão poucos, do que restou de meu querido amiguinho... prefiro imaginar que seja feliz, muito feliz, pois era assim que meu coração gostaria de encontrar quem me fez tanto bem.

Brinco ao dizer-lhe que nem ele mesmo conseguiria tirar de mim o que guardo de nossa infância. Mas a gratidão continua a mesma, tatuada em meu coração.

4 comentários:

Valéria Hinojosa disse...

Sublime e lindo. Estou aqui calada, simplesmente emocionada.
Parabéns pelo dom que tem de tocar
nossos corações. Val

Celina disse...

Lágrimas... e emoção! Minha querida, que estória de era uma vez de verdade! No meio do texto me deu um nó na garganta, uma vontade de sentir as certezas de quando somos crianças. Muito obrigada. bjs

Virgínia Bravo disse...

Querida!Recordações como essas são valiosas!
Me trouxe recordações da minha infancia!Que bom é ter essas memorias e poder passar para o papel assim tão maravilhosamente!
Meu amor
bjs Vi

pblower disse...

Eu queria que esta história tivesse parte 3...