sábado, 30 de novembro de 2013

NAVIGO



Saber aproveitar as facilidades que uma cidade pode oferecer é indispensável para uma viagem melhor. 

Foi assim que, orientada por Celina, uma amiga que entende tudo de viagens, pude aproveitar melhor minha última estadia em Paris. E um dos confortos foi ter em mãos o "Navigo", um cartão-passaporte para uso no transporte público. Você paga por uma semana e fica livre de filas. E pode renovar a cada semana. É uma maravilha... mas...

O problema, na verdade, não foi com o cartão. Foi mesmo com a comunicação. E "traduzir" contextos culturais é quase impossível para qualquer viajante de língua estrangeira.

Bem... você pode usar este cartão à vontade, por uma semana, no sistema pré-pago. E eu estava usufruindo literalmente da facilidade, pois se há uma coisa que gosto de fazer é caminhar muito... e Paris é pródiga em lugares para visitar. 

Numa dessas, estava fazendo uma conexão entre o metrô e a linha C. Como são sistemas um pouco diferentes, as tarifas também são diferentes, o que exige que um portador do cartão "Navigo" tenha de passar por outra roleta, para fazer a conexão.

Foi aí que deu o problema: eu saí da plataforma da linha C e, imediatamente, me dirigi para a linha 8 do metrô. Só que o cartão não funcionou. Não liberava a roleta de jeito nenhum.

Ué... o que estava acontecendo? Me dirigi à bilheteria, pois tecnologia também falha. Só não contava que gentileza também falha, em qualquer lugar do mundo... e aquele francês era um dos exemplares da espécie "grosseria".

Estupidez à parte, mostrei meu cartão e disse-lhe que não estava funcionando. Ele tomou o cartão, conferiu que era válido e "rosnou" algo que não entendi. Pedi que repetisse e ele, de novo rosnou algo que decifrei como um enigma: parecia me dizer para colocar "a mão à direita".

Enquanto ele atendia o seguinte da fila, sem me dar mais a menor atenção, tentei desvendar o que queria dizer. A ordem não coincidia com a prática. Mão à direita? Será que meu francês estava tão ruim assim? Eu não deveria ter entendido ou, na certa, seria uma expressão idiomática.

Como linguista, optei pela expressão idiomática e me dirigi às roletas devagar, tentando desvendar o enigma. 

Vi, ao lado direito da última roleta, uma máquina de atendimento automático, de validação desse tipo de cartão. Ah, provavelmente, se eu tivesse entendido as palavras da frase e se a frase era uma expressão idiomática, talvez pudesse querer dizer que eu teria de me dirigir à máquina, à direita, para revalidar meu cartão. Esses comandos modernos automáticos fazem de tudo! E como meu cartão estava com créditos, talvez fosse apenas para revalidar o mesmo. Tecnologia consertando tecnologia. Tudo bem.

Ao chegar no terminal, no entanto, havia um aviso informando que a máquina estava fora de uso.

Ele era funcionário, deveria saber que a máquina não estava funcionando... a segunda hipótese, então, era mais plausível: eu não tinha entendido a ordem.

Voltei ao guichê. Disse que não tinha conseguido.

O homem, visivelmente irritado, achou que eu era burra em francês e sapecou a ordem em inglês. 

Meu inglês é macarrônico, mas entendi muito bem que havia duas palavras bem distintas na frase: "mão" e "direita". 

Não é possível. Será que era mesmo uma expressão idiomática e comum a duas línguas tão distintas? Muito estranho...

Voltei duplamente pensativa para o local do crime, ops... para as roletas. 

Mão... direita... mão... direita...

Entendi a mesma coisa em duas línguas. Meu cérebro se negava a deslindar o mistério.

Ora bolas, paciência. O cara é funcionário e eu sou usuária. Não é possível que, grosseiro ou não, ele se negue a me ajudar. 

Voltei ao guichê, dizendo, literalmente, que precisava de ajuda. E sapequei a frase nas duas línguas, direto, uma emendando na outra, para conferir. 

Anjos existem...

Um outro atendente se aproximou do balcão e, provavelmente, tinha acompanhado toda a novela, sem que eu tivesse percebido. Sorriu, deu a volta, abriu a porta que separa o guichê do público e me fez um sinal para acompanhá-lo. 

Minha fé na humanidade renasceu. Existem pessoas que são... humanas!

Caminhamos em direção à última roleta à direita. Ele colocou a mão dele sobre o sensor (onde eu deveria colocar o cartão) e fez sinal para eu passar. Olhei para ele incrédula e não dei um passo.

Ele sorriu, novamente, e foi mais enfático, convidando-me para passar pela roleta.

Obedeci, completamente intrigada!

A roleta cedeu, passei...

Fiquei mais incrédula ainda. Como pode? Perguntei se me cartão continuava válido. Ele disse que sim, mas não me deu tempo de perguntar o que tinha acontecido. Virou-se e voltou ao trabalho.

Fiquei encafifada com o fato por uns dois ou três dias, até que, em outra oportunidade, aconteceu a mesma coisa. O cartão não funcionou, fui ao guichê, o atendente checou o meu cartão e deu a mesma ordem. Me dirigi à roleta, coloquei a mão na roleta indicada e funcionou. Foi aí que entendi que eles liberavam a roleta para a passagem. Só não entendo por que, nestes casos, não funciona com o cartão e, sim, com a mão... 

E quem iria adivinhar que uma ordem como "mão à direita" significaria "colocar a mão no lugar do sensor, na roleta da direita para que a geringonça funcione"? 

Com certeza, só mesmo um francês ou, pelo menos, só alguém já inserido no contexto parisiense entenderia...  jamais um viajante, estrangeiro ou não.

Hábitos culturais...

Você pode ser PHD na língua, mas sem convivência a "roleta" às vezes não funciona...

3 comentários:

João Carlos disse...

Poizé...
Cultura é cultura...
Tentei fazer o mesmo no metrô do Rio porque deu problema parecido e não funcionou.
E olha que nasci, cresci, vivi e continuo vivendo nesta Marvelous City.
Ou seja, sou pós-PHD em Rio de Janeiro pra resolver o problema.
Evidentemente, vocês leitores hão de crer que isto é uma piada.
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E é mêrmu.
;-)

carlos alberto disse...

Um grande teste de paciência e muito bem superado. Pena que o funcionário não aproveitou a oportunidade para exercitar a gentileza.

pblower disse...

Celina e eu aqui em Paris nos deliciamos com o seu texto. Muitos beijos