Senhor
Arturino. Lembro-me de seu sotaque italiano suave e discreto. Muitos anos no
Brasil.
Moro neste
apto desde 1978. Senhor Arturino, meu vizinho de porta, mudou-se no mesmo mês. Arrumamos juntos o hall do elevador do nosso andar. Cedi muito ao bom
senhor que, com delicadezas de gentleman me dizia de suas preferências na
escolha do papel de parede, da luminária...
Ficamos bons
vizinhos desde então, ele já idoso, dizendo que se sentia seguro com jovens ao
lado, caso precisasse de alguma coisa. Fez-nos, vez por outra, sua pizza
inesquecível, que nos servia com uma sangria que ele preparava, comprando cada
fruta com cuidados de "gourmet".
Tinha sido
ourives e estava aposentado. Caminhava todos os dias, jogava bocha (era
apaixonado por bocha...), não fumava, cuidava-se muito para se manter em forma.
E tinha um
carinho desprendido e apegado por mim, dizendo que queria ter tido uma filha
assim.
Passou-se o
tempo. Estávamos em uma manhã de 1979, quando meu pai veio ao Brasil para
passar uns tempos conosco. Estávamos ambos de saída, não sei bem para onde e
conversávamos no hall do elevador, quando o Senhor Arturino abriu a porta para
sair em busca de seu passeio matinal.
Deu-me bom
dia... olhou para meu pai:
- Senhor Vianna!
O que o senhor anda fazendo aqui?
- Arturino!
Ora, esta é minha filha.
Senhor
Arturino olhou-me estupefato. Aproximou-se mais, com lágrimas nos olhos, e
sussurrou-me com voz embargada:
- Carreguei
você no colo tantas e tantas vezes... minha oficina era no mesmo andar do
escritório de seu pai!
Fiquei sem
fala. Ele continuou:
- Como poderia
imaginar que seria você, se não tem mais o sobrenome de seu pai?
De fato,
quando me casei, tirei meu nome de solteira e permaneci apenas com o Fernandes,
que uso até hoje.
Olhei-o
emocionada e não sabia o que dizer. Uma vez, realmente, ele havia dito que
conhecera apenas mais uma Eulalia, uma menininha, filha de um grande amigo. Mas
ficara por isso mesmo.
Amigos
reencontrados, passados revividos, algumas noites passamos todos juntos, os
dois senhores a contarem ou recontarem, um ao outro, piadas e histórias de
"antanhos", como diziam.
O reencontro fez
bem aos dois, fez bem a mim, fez bem a uma amizade que já era doce e suave.
Em 1987, nos
mudamos daqui para uma casa no Humaitá. Era dezembro e, quando ele soube,
embora dissesse que queria que eu me sentisse feliz, na véspera deixou escapar:
- Vou me
sentir muito só... e inseguro por aqui.
- Virei vê-lo,
o senhor sabe!
- Sim, eu sei,
mas não é a mesma coisa do que tê-la ao lado, para qualquer eventualidade.
Senhor Arturino,
apesar de bem idoso, era um homem forte e saudável. Não me preocupei... mas...
fui embora com um aperto forte no coração, até porque eu não estava achando mil
maravilhas sair desse apto que tanto amo. Prova disso é que um ano, dez meses,
vinte e um dias e nove horas depois, estava por aqui, de novo, disposta a nunca
mais sair. Você que acompanha os meus textos, se leu o conto "O
galo", sabe do que estou falando. Minha ida para aquela casa foi mesmo um
pedacinho de provação de vida para mim, aliás, bem duro... mas consertado,
felizmente.
Mas voltemos
ao Senhor Arturino.
Em janeiro,
menos de um mês depois de minha saída, teve um infarto. Só soube dias depois e não consegui localizá-lo.
Logo depois, soube que tinha sido levado pela família de volta a Italia, onde
ficou até sua morte. Não tivemos mais contato e não soube como tudo ocorreu.
Também não tinha o endereço e como pedir notícias. Não sei, sequer, se ele
teria condições de escrever-me ou coisa assim.
Dois anos
depois, já de volta para casa, ops... para este apto, uma senhora, um dia,
tocou a campainha.
Era uma das
irmãs do meu querido vizinho, querendo dar-me a notícia de que ele tinha
falecido. Acrescentou que falava muito em mim, motivo que a fizera procurar-me.
Viera para
acertar as questões de herança e não queria deixar de me ver para me conhecer e
dar-me algumas fotos dele, para guardar de recordação.
Passei alguns
dias com o coração... com a alma apertada. Pensei no quanto teria sido
importante eu estar aqui, na hora em que, realmente, precisou de mim.
Não se pode
prever tudo na vida. E eu não poderia imaginar que, naquela última manhã em que
nos vimos, ele supusera (ou previra?) ter sido nossa delicada despedida, nosso
verdadeiro adeus.
Guardo a
lembrança de seu sotaque e de sua gentileza em meu coração. Guardo sua voz e
seu sorriso de amigo mais velho, com cuidados de pai. Guardo seu abraço de "reencontro",
naquele dia, no hall do elevador. E de nossa surpresa por constatarmos ser este
um mundo pequeno, onde corações marcam, sem que saibamos, reencontros não
esperados.
Gostaria de
ter estado aqui, quando precisou de mim. Mas, ao mesmo tempo, fico feliz por
saber que, na Itália, fui uma constante em suas alegres recordações do Brasil.
Tenho um
grupinho "lá em cima", de
que gosto muito. Quem sabe, a estas horas, Senhor Arturino não estará às voltas
com meu primo Manuel, por vezes, falando desta "menina" que, muitas
vezes, carregaram no colo...
Eu,
"daqui", com certeza, os carrego juntinhos em meu coração.
2 comentários:
Óla,
Foi a primeira vez que li seu blog, que dar os parabéns pelo texto, muito bom mesmo. Sou blogueiro faz tempo, e já conheci blogs ótimos, e o seu entra na minha lista. Parabéns !!!
Reencontros afetivos são sempre uma forma de gratidão.Um presente Cósmico.
Postar um comentário