sábado, 13 de abril de 2013

O VIZINHO



Senhor Arturino. Lembro-me de seu sotaque italiano suave e discreto. Muitos anos no Brasil.

Moro neste apto desde 1978. Senhor Arturino, meu vizinho de porta, mudou-se no mesmo mês. Arrumamos juntos o hall do elevador do nosso andar. Cedi muito ao bom senhor que, com delicadezas de gentleman me dizia de suas preferências na escolha do papel de parede, da luminária...

Ficamos bons vizinhos desde então, ele já idoso, dizendo que se sentia seguro com jovens ao lado, caso precisasse de alguma coisa. Fez-nos, vez por outra, sua pizza inesquecível, que nos servia com uma sangria que ele preparava, comprando cada fruta com cuidados de "gourmet".

Tinha sido ourives e estava aposentado. Caminhava todos os dias, jogava bocha (era apaixonado por bocha...), não fumava, cuidava-se muito para se manter em forma.

E tinha um carinho desprendido e apegado por mim, dizendo que queria ter tido uma filha assim.

Passou-se o tempo. Estávamos em uma manhã de 1979, quando meu pai veio ao Brasil para passar uns tempos conosco. Estávamos ambos de saída, não sei bem para onde e conversávamos no hall do elevador, quando o Senhor Arturino abriu a porta para sair em busca de seu passeio matinal.

Deu-me bom dia... olhou para meu pai:

- Senhor Vianna! O que o senhor anda fazendo aqui?

- Arturino! Ora, esta é minha filha. 

Senhor Arturino olhou-me estupefato. Aproximou-se mais, com lágrimas nos olhos, e sussurrou-me com voz embargada:

- Carreguei você no colo tantas e tantas vezes... minha oficina era no mesmo andar do escritório de seu pai!

Fiquei sem fala. Ele continuou:

- Como poderia imaginar que seria você, se não tem mais o sobrenome de seu pai?

De fato, quando me casei, tirei meu nome de solteira e permaneci apenas com o Fernandes, que uso até hoje. 

Olhei-o emocionada e não sabia o que dizer. Uma vez, realmente, ele havia dito que conhecera apenas mais uma Eulalia, uma menininha, filha de um grande amigo. Mas ficara por isso mesmo.

Amigos reencontrados, passados revividos, algumas noites passamos todos juntos, os dois senhores a contarem ou recontarem, um ao outro, piadas e histórias de "antanhos", como diziam.

O reencontro fez bem aos dois, fez bem a mim, fez bem a uma amizade que já era doce e suave.

Em 1987, nos mudamos daqui para uma casa no Humaitá. Era dezembro e, quando ele soube, embora dissesse que queria que eu me sentisse feliz, na véspera deixou escapar:

- Vou me sentir muito só... e inseguro por aqui.

- Virei vê-lo, o senhor sabe!

- Sim, eu sei, mas não é a mesma coisa do que tê-la ao lado, para qualquer eventualidade.

Senhor Arturino, apesar de bem idoso, era um homem forte e saudável. Não me preocupei... mas... fui embora com um aperto forte no coração, até porque eu não estava achando mil maravilhas sair desse apto que tanto amo. Prova disso é que um ano, dez meses, vinte e um dias e nove horas depois, estava por aqui, de novo, disposta a nunca mais sair. Você que acompanha os meus textos, se leu o conto "O galo", sabe do que estou falando. Minha ida para aquela casa foi mesmo um pedacinho de provação de vida para mim, aliás, bem duro... mas consertado, felizmente.

Mas voltemos ao Senhor Arturino. 

Em janeiro, menos de um mês depois de minha saída, teve um infarto. Só  soube dias depois e não consegui localizá-lo. Logo depois, soube que tinha sido levado pela família de volta a Italia, onde ficou até sua morte. Não tivemos mais contato e não soube como tudo ocorreu. Também não tinha o endereço e como pedir notícias. Não sei, sequer, se ele teria condições de escrever-me ou coisa assim.

Dois anos depois, já de volta para casa, ops... para este apto, uma senhora, um dia, tocou a campainha. 

Era uma das irmãs do meu querido vizinho, querendo dar-me a notícia de que ele tinha falecido. Acrescentou que falava muito em mim, motivo que a fizera procurar-me.

Viera para acertar as questões de herança e não queria deixar de me ver para me conhecer e dar-me algumas fotos dele, para guardar de recordação.

Passei alguns dias com o coração... com a alma apertada. Pensei no quanto teria sido importante eu estar aqui, na hora em que, realmente, precisou de mim. 

Não se pode prever tudo na vida. E eu não poderia imaginar que, naquela última manhã em que nos vimos, ele supusera (ou previra?) ter sido nossa delicada despedida, nosso verdadeiro adeus.

Guardo a lembrança de seu sotaque e de sua gentileza em meu coração. Guardo sua voz e seu sorriso de amigo mais velho, com cuidados de pai. Guardo seu abraço de "reencontro", naquele dia, no hall do elevador. E de nossa surpresa por constatarmos ser este um mundo pequeno, onde corações marcam, sem que saibamos, reencontros não esperados.

Gostaria de ter estado aqui, quando precisou de mim. Mas, ao mesmo tempo, fico feliz por saber que, na Itália, fui uma constante em suas alegres recordações do Brasil.

Tenho um grupinho "lá em cima", de que gosto muito. Quem sabe, a estas horas, Senhor Arturino não estará às voltas com meu primo Manuel, por vezes, falando desta "menina" que, muitas vezes, carregaram no colo...

Eu, "daqui", com certeza, os carrego juntinhos em meu coração.

2 comentários:

Nossa Jovem Guarda disse...

Óla,

Foi a primeira vez que li seu blog, que dar os parabéns pelo texto, muito bom mesmo. Sou blogueiro faz tempo, e já conheci blogs ótimos, e o seu entra na minha lista. Parabéns !!!

Carlos Alberto disse...

Reencontros afetivos são sempre uma forma de gratidão.Um presente Cósmico.