sábado, 6 de abril de 2013

APERTOS


Outro dia, aguardando um exame de rotina, numa clínica - aliás, casa belíssima, muito bem preservada, estilo bem antigo - vi uma moça entrar e sair do banheiro, com cara de quem está em apuros. Logo percebi: não achava o interruptor de luz. Um estalo de lembrança, como uma flecha, passou pelo meu cérebro e explodiu em minha boca:

- Aí, do lado de fora!

Imediatamente ela virou-se, acendeu a luz pelo interruptor externo e entrou como uma flecha quase tão rápida como meu pensamento. Imaginei o aperto. Sorri. Não do fato, mas da lembrança.

1975. Se você acompanha meus contos, sabe que fui visitar meu pai, pela primeira vez, em Portugal, depois de cerca de doze anos sem vê-lo. Os contos “Saia justa” e “Moço mesa” contam alguns detalhes dessa visita. Mas, naquele instante, a flecha dirigiu-se para um canto engraçado da memória: o canto dos “apertos desesperados”.

Depois de tantos anos sem ver meu pai, confesso que o encontro, no começo, me deixou pisando em ovos. No dia seguinte, a sensação já tinha ido embora, mas, na chegada, me senti toda cerimoniosa, como uma visita. E, claro, ele tinha mil anos para me contar em poucas horas. Nem se deu conta que eu acabava de chegar de viagem. 

Chegamos no final da tarde, meu ex e eu, e, enquanto esperávamos pelo jantar, nos sentamos na sala de visitas. Até ali, tudo bem, meu organismo estava, digamos, numa “zona de conforto”. 

Ao nos levantarmos para o jantar, ele me indicou um lavabo e eu esperava, então, usá-lo por completo... mas, ali, era mesmo só um lavabo no sentido literal do termo: pia para lavar as mãos. Eu, ainda na “zona de conforto”, não pedi nada mais “completo”. Jantamos e pensei que ele iria nos indicar o quarto, mas nada. Emendou numa conversa longa de quem ficara anos à espera. 

Sentada, ainda me sentia na “zona de conforto” e engrenei no papo sem outras preocupações. As horas passaram e, quando nos demos conta, eram quatro da manhã. Finalmente, nos levantamos para ir dormir. Foi quando senti a urgência do aperto. Ir ao banheiro imediatamente era a palavra de ordem.

Subimos as escadas e ele, gentilmente, nos disse:

- Vou usar o banheiro rapidamente para deixa-los à vontade.

Quase morri, num sorriso de aparente agradecimento. Mas soube, pelo menos, onde era o banheiro. Para quem já tinha esperado tanto tempo, uns minutinhos a mais não fariam diferença. 

- Está livre, disse ele ao bater à porta de nosso quarto e se fechando no dele. 

Finalmente, caminho livre. “Agora, ninguém me segura”. Atravessei o hall superior e me atirei no banheiro às escuras. Achar o interruptor era uma questão de segundos. Só poderia estar perto da porta.

Ocorre que segundos podem durar séculos numa hora dessas e eu não sabia mais para que lado me virar. Tudo breu, pois ele também apagara a luz do hall. Esqueci-me da luz, e procurei me achar no escuro. O banheiro era enorme, desses de casa centenária, com mil coisas e armários, como pude ver só depois. Foi mesmo um sufoco achar o vaso e me lembro até hoje que foi o maior aperto "desse tipo" que já passei na vida. 

Caso resolvido, desses que tiram lágrimas dos olhos, parece que a cabeça começa a funcionar com mais clareza. E foi só então que, com calma, tateando aqui e ali, acabei por descobrir que o interruptor acendia pelo lado de fora, junto com a luz do hall.

Aprendizado feito, desde então, quando entro numa casa antiga e preciso do banheiro, pode contar que, se não acho o ponto de luz imediatamente, abro a porta e já passo a mão pelo lado de fora.

Enquanto pensava nesse aperto que passei, rindo à toa comigo mesma, na sala de espera da tal clínica, a moça saiu do banheiro, aproximou-se e se sentou ao meu lado:

- Desculpe, nem agradeci. Mas é que eu estava tão apertada... nunca tinha vindo aqui.

- Eu também não. Percebi o que era, pois passei por um aperto desses na casa de meu pai, em Portugal, quando fui lá pela primeira vez.

- Seu pai é português?

- Era.

- O meu também.

E, claro, engrenamos num papo à lusitana, com detalhes de coisas portuguesas, no Brasil. E, como boas cariocas que somos, nos despedimos como “velhas amigas de infância”...
 
O que ficou, no entanto, foi o gosto do passado e, por um desvio de memória, que nunca sabemos explicar como acontece, avivaram-se as visitas que recebi dos parentes que vieram ver meu pai para conhecerem “a prima” do Brasil. 

Lembrei-me dos presentes que me traziam de suas Quintas: jamais vinho, por respeito ao vinho do meu pai... e lhes sobrava trazerem couves e compotas, azeites e coelhos... coelhos que depois eu soltava na Quinta, pois jamais teria coragem de comer umas coisinhas tão graciosas que afagara com as mãos... 

E me veio, de repente, mais do que tudo, a sensação forte do vinho verde português, que nos era servido no almoço e no jantar, vindo diretamente de Dume, a Quinta do meu pai.

E passei a lembrar-me de coisas da mocidade, dos sabores que eu costumava buscar... de meus antigos hábitos e meu amor pelo vinho tinto e do Porto, que saboreio até hoje. Vinho verde... não mais... era só o de São Martinho de Dume, Braga, Portugal.

E sorri dos meus sabores... e... acabei por sorrir dos sabores da vida.

Tudo por causa do olhar aflito de uma moça e dos interruptores “externos” que ainda povoam casas antigas.

2 comentários:

Celina disse...

;) Adorei essa recordação! Só mesmo vocë para transformar isso num conto gostoso de ler até o final.

Eulalia disse...

Fora o aperto, o resto foi bem bom!... rs