Outro dia, aguardando um exame de
rotina, numa clínica - aliás, casa belíssima, muito bem preservada, estilo bem
antigo - vi uma moça entrar e sair do banheiro, com cara de quem está em
apuros. Logo percebi: não achava o interruptor de luz. Um estalo de lembrança,
como uma flecha, passou pelo meu cérebro e explodiu em minha boca:
- Aí, do lado de fora!
Imediatamente ela virou-se,
acendeu a luz pelo interruptor externo e entrou como uma flecha quase tão
rápida como meu pensamento. Imaginei o aperto. Sorri. Não do fato, mas da
lembrança.
1975. Se você acompanha meus
contos, sabe que fui visitar meu pai, pela primeira vez, em Portugal, depois de
cerca de doze anos sem vê-lo. Os contos “Saia justa” e “Moço mesa” contam alguns
detalhes dessa visita. Mas, naquele instante, a flecha dirigiu-se para um canto
engraçado da memória: o canto dos “apertos desesperados”.
Depois de tantos anos sem ver meu
pai, confesso que o encontro, no começo, me deixou pisando em ovos. No dia
seguinte, a sensação já tinha ido embora, mas, na chegada, me senti toda
cerimoniosa, como uma visita. E, claro, ele tinha mil anos para me contar em
poucas horas. Nem se deu conta que eu acabava de chegar de viagem.
Chegamos no final da tarde, meu
ex e eu, e, enquanto esperávamos pelo jantar, nos sentamos na sala de visitas. Até
ali, tudo bem, meu organismo estava, digamos, numa “zona de conforto”.
Ao nos levantarmos para o jantar,
ele me indicou um lavabo e eu esperava, então, usá-lo por completo... mas, ali,
era mesmo só um lavabo no sentido literal do termo: pia para lavar as mãos. Eu,
ainda na “zona de conforto”, não pedi nada mais “completo”. Jantamos e pensei
que ele iria nos indicar o quarto, mas nada. Emendou numa conversa longa de
quem ficara anos à espera.
Sentada, ainda me sentia na “zona
de conforto” e engrenei no papo sem outras preocupações. As horas passaram e,
quando nos demos conta, eram quatro da manhã. Finalmente, nos levantamos para
ir dormir. Foi quando senti a urgência do aperto. Ir ao banheiro imediatamente
era a palavra de ordem.
Subimos as escadas e ele,
gentilmente, nos disse:
- Vou usar o banheiro rapidamente para deixa-los à vontade.
Quase morri, num sorriso de
aparente agradecimento. Mas soube, pelo menos, onde era o banheiro. Para quem
já tinha esperado tanto tempo, uns minutinhos a mais não fariam diferença.
- Está livre, disse ele ao bater à porta de nosso quarto e se fechando
no dele.
Finalmente, caminho livre. “Agora, ninguém me segura”. Atravessei o
hall superior e me atirei no banheiro às escuras. Achar o interruptor era uma
questão de segundos. Só poderia estar perto da porta.
Ocorre que segundos podem durar
séculos numa hora dessas e eu não sabia mais para que lado me virar. Tudo breu,
pois ele também apagara a luz do hall. Esqueci-me da luz, e procurei me achar
no escuro. O banheiro era enorme, desses de casa centenária, com mil coisas e
armários, como pude ver só depois. Foi mesmo um sufoco achar o vaso e me lembro
até hoje que foi o maior aperto "desse tipo" que já passei na vida.
Caso resolvido, desses que tiram
lágrimas dos olhos, parece que a cabeça começa a funcionar com mais clareza. E foi
só então que, com calma, tateando aqui e ali, acabei por descobrir que o
interruptor acendia pelo lado de fora, junto com a luz do hall.
Aprendizado feito, desde então,
quando entro numa casa antiga e preciso do banheiro, pode contar que, se não acho
o ponto de luz imediatamente, abro a porta e já passo a mão pelo lado de fora.
Enquanto pensava nesse aperto que
passei, rindo à toa comigo mesma, na sala de espera da tal clínica, a moça saiu
do banheiro, aproximou-se e se sentou ao
meu lado:
- Desculpe, nem agradeci. Mas é que eu estava tão apertada... nunca
tinha vindo aqui.
- Eu também não. Percebi o que era, pois passei por um aperto desses na
casa de meu pai, em Portugal, quando fui lá pela primeira vez.
- Seu pai é português?
- Era.
- O meu também.
E, claro, engrenamos num papo à
lusitana, com detalhes de coisas portuguesas, no Brasil. E, como boas cariocas
que somos, nos despedimos como “velhas
amigas de infância”...
O que ficou, no entanto, foi o
gosto do passado e, por um desvio de memória, que nunca sabemos explicar como
acontece, avivaram-se as visitas que recebi dos parentes que vieram ver meu pai para
conhecerem “a prima” do Brasil.
Lembrei-me dos presentes que me
traziam de suas Quintas: jamais vinho, por respeito ao vinho do meu pai... e
lhes sobrava trazerem couves e compotas, azeites e coelhos... coelhos que depois
eu soltava na Quinta, pois jamais teria coragem de comer umas coisinhas tão
graciosas que afagara com as mãos...
E me veio, de repente, mais do
que tudo, a sensação forte do vinho verde português, que nos era servido no
almoço e no jantar, vindo diretamente de Dume, a Quinta do meu pai.
E passei a lembrar-me de coisas
da mocidade, dos sabores que eu costumava buscar... de meus antigos hábitos e
meu amor pelo vinho tinto e do Porto, que saboreio até hoje. Vinho verde... não
mais... era só o de São Martinho de Dume, Braga, Portugal.
E sorri dos meus sabores... e...
acabei por sorrir dos sabores da vida.
Tudo por causa do olhar aflito de
uma moça e dos interruptores “externos” que ainda povoam casas antigas.
2 comentários:
;) Adorei essa recordação! Só mesmo vocë para transformar isso num conto gostoso de ler até o final.
Fora o aperto, o resto foi bem bom!... rs
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