sábado, 20 de abril de 2013

O MÉDICO


Doutor Paulo atende seus pacientes na Penha, um bairro do subúrbio carioca. De carro, leva-se cerca de 50 minutos para chegar lá, se o trânsito estiver bom. É preciso atravessar uma das avenidas mais atravancadas do Rio, a que serve de saída para quase todo o subúrbio e também para outros Estados do Brasil.

Ele apareceu na minha vida em 1992, quando tive um gravíssimo acidente com minha mão direita: queimei-a por completo com óleo fervente. 

A situação é indescritível e vou privar você dos detalhes. Não valem a pena em qualquer hipótese, muito menos em um conto de gratidão à vida. Mas queimei a mão de tal forma que o que sobrou de queimaduras pelo resto do corpo me passaram despercebidas, por causa dessa dor.

Após ser atendida numa emergência, só deveria tirar as ataduras, segundo me informaram, em próxima consulta. Mas, menos de dois dias depois, começou a doer até o cotovelo. Foi quando um colega de trabalho do meu ex, que também já havia queimado sua mão em um passado distante, sugeriu que eu fosse ao tal do Doutor Paulo, seu cunhado, que tinha cuidado dele na ocasião.

O tal médico nem era especialista, mas clínico geral. Não sei por que, não discuti. Quis o Dr. Paulo e não outro médico qualquer super hiper especialista em queimaduras. 

Tem coisas que a gente não sabe explicar. Cisma e pronto. E não adiantava argumentar que era muito longe de casa, mesmo numa situação grave como essa. Eu queria ir no Doutor Paulo e com a gravidade e a dor do momento, não cabia discussão.

O consultório era bem simples, como são a maioria dos consultórios de médicos do subúrbio carioca. Entrei sem muitas explicações, pois o motivo era óbvio. Lembro-me de que, quando ele tirou as ataduras, não resistiu a fazer uma cara meio esquisita. Eu traduzi como nojo e só soube o que realmente representou um ano depois. Mas deixo para contar, mais adiante, o verdadeiro significado.

O médico fez  um curativo sem descrições literárias. Este não é um conto de terror. Em seguida, me receitou antibióticos e anti-inflamatórios fortíssimos.

Tenho uma aversão natural e física a anti-inflamatórios. Meu estômago não aguenta tomá-los e a impressão é de que vou morrer envenenada a qualquer momento. Antibióticos tudo bem... mas anti-inflamatórios são o meu desespero. Mas ele não arredou pé. 

O que mais me chamou a atenção nele foi a  seriedade e até uma certa rudeza. Homem bem mais moço do que eu, mas firme, seguro, seriíssimo... para não dizer carrancudo. Embora estivesse com muita dor e, nesses casos, geralmente não conseguimos dar atenção a detalhes, não me escapou a impressão de que aquele homem nunca deveria ter sorrido na vida. E pensei que poderia estar exagerando nos procedimentos, embora minha mão estivesse mesmo muito feia. Uma de minhas cunhadas, ao insistir para vê-la (pois eu a escondia sempre), não resistiu e soltou esta prenda:

- Nossa, parece mão de filme de terror.

E o pior é que parecia mesmo.

Mesmo assim, uma semana depois, pedi arrego:

- Doutor, por favor, quando posso suspender o anti-inflamatório? A dor da queimadura é tanta que não enlouqueço porque não consigo mas... com esse estômago conturbado, revolucionando-se a todo instante estou chegando além dos meus limites. 

Certamente, eu deveria estar meio verde de tão pálida e de tanto passar mal. Mesmo assim, ele só suspendeu o anti-inflamatório passados sete dias, mantendo apenas o antibiótico. E foi aí que aconteceu: dois dias depois, eu continuava com uma dor indescritível, mas, pelo menos, o meu estômago estava em paz. Quando entrei no consultório, fui recebida com essa observação:

- Hoje você está com outra cara! 

Não resisti:

- A minha cara é essa. A outra é que era outra. Agora estou com dor, mas consigo sobreviver.

O homem não resistiu e, pela primeira vez, sorriu. Olhei para ele, me lembro muito bem, com lágrimas nos olhos:

- Ah, doutor, como me fazia falta um sorriso nessa dor.

Acho que ele se deu conta. E parece que foi um estalo de vida. Daí por diante, nossa relação mudou completamente e ele passou a me receber sorrindo. Foi quando vi o quanto ele sabia ser acolhedor.
Hoje, como terapeuta, conheço por dentro o valor do sorriso. E não importa o que eu esteja sentindo nas entranhas. Aprendi. Meus clientes sempre são recebidos com um sorriso sincero e acolhedor. Faz toda a diferença...

Mas voltemos aos fatos.

Estive nesse trajeto Copacabana-Penha por duas semanas seguidas, de dois em dois dias. Quando passei a ir duas vezes por semana, um mês depois, já estava dirigindo. Com muita dificuldade, mas estava. A partir daí, as visitas foram se espaçando até 1996. Esses detalhes são importantes para você saber como o relacionamento médico-paciente foi-se estreitando. Passamos a ser amigos e uma parte do sucesso do tratamento, com certeza, se deu por conta dessa imensa cumplicidade que estabelecemos.

Com o tempo, passei a ter minhas intimidades. Quando entrava na sala da consulta, punha minha mão para trás, como uma criança que quer fazer suspense. Algumas vezes, eu amarrava, no pulso, um laço de fitas desses de embrulhar presentes. Sentávamos à mesa e observávamos a evolução da recuperação. Falávamos da mão, como se ela fosse uma terceira pessoa, sendo examinada por dois observadores:

- Agora podemos passar para a fase de infiltrações, vamos ver como podemos melhorar esta outra parte...

Um dia, confessei:


- Cheguei a pensar que iria perder esse dedo aqui.


- E eu estava o tempo todo tentando salvar a sua mão...

Fiquei completamente impactada:

- Como assim? Por que não me disse?


- Não tive coragem... você me perguntava todas as vezes, quanto tempo levaria para você escrever de novo!

Foi, então, que entendi e como já tinha mais intimidade, não escondi:

- No primeiro dia, quando você olhou para minha mão, tive a impressão de que sentiu nojo.


- Não, não era nojo... quando a olhei, tive a impressão de que tinha batalhas a vencer para salvá-la. E acessei meus colegas para ver se passaria você para eles.

Foi só então que soube que Doutor Paulo era professor universitário e, por todo o tempo, foi assessorado por vários colegas para levar adiante meu tratamento. E soube que, nos primeiros meses, eu tive uma equipe por trás dele, pronta para entrar em ação, se fosse necessário. 

Em sua simplicidade e para me poupar de desesperos, ele levou toda a história sem nada me dizer, para manter-me psicologicamente calma o suficiente no meu restabelecimento. E resolveu assumir a responsabilidade de não me dizer. Percebi o tamanho do  risco que assumiu como profissional.

Algo na minha intuição o escolheu e algo, na intuição dele, assumiu este risco para me ajudar a enfrentar uma das grandes dificuldades de minha vida.

Nesse dia, lembro-me bem, eu chorei de gratidão. E, se já havia uma cumplicidade, passou a existir uma amizade consagrada. Nesse período, ele acabou por me contar que estava pensando em fazer uma pós-graduação, mas estava com dificuldades quanto à formulação do projeto. Como professora universitária, passei a dar-lhe dicas de metodologia científica e nossas consultas, além de consultas, passaram a ser encontro de amigos.

E foram assim durante os quatro anos seguintes. Até que recebi alta completa.

Elegi 2006 como ano da gratidão. É que me dei conta de que vamos passando a vida e não percebemos o quanto de pessoas e situações especiais nos ajudaram a viver e a enfrentar terríveis dificuldades. E, é claro, Doutor Paulo era um dos nomes de topo de lista.

Foi muito difícil encontrá-lo, pois havia mudado de lugar de atendimento. Ainda era na Penha, mas, agora, ele não tem mais um consultório e, sim, uma clínica. Nunca vi um sucesso tão bem merecido!

Marquei a consulta, sem me comunicar com ele. A secretária era outra. Perguntou se eu tinha ficha. Disse-lhe que não sabia, pois fazia dez anos que não ia lá. Não achou. Deveria estar guardada com fichas antigas, não imediatamente accessíveis. Em 1992 não se usava computador! As fichas ainda eram feitas à mão! Eu disse que , provavelmente, ele nem se lembraria de mim, não fazia diferença. 

A sala de espera estava repleta. Eu, provavelmente, esperaria muito. Mas, ali, nada disso importava. Pelo contrário, fiquei muito feliz por vê-lo repleto de pacientes.

-D. Eulalia, por favor, sua vez. 

Entrei na pequena, simples, mas aconchegante sala de consultas. Ele não mudara nada... apenas os anos tinham-lhe dado uns abundantes quilinhos a mais. Ao me ver, ele levantou-se imediatamente:

- Como vai a dona da mão mais linda do mundo?


- Você se lembrou!


- Claro! Essa história é inesquecível!!!

Instintivamente, repeti a brincadeira e coloquei minha mão para trás. Nos abraçamos, minha gratidão transbordando pelos poros.

- O que traz você aqui?


- Isso! 

Coloquei minha mão sobre a mesa, na mesma postura em que a examinávamos antigamente. Ele pegou minha mão, examinou-a e perguntou:

- Ela está ótima, a recuperação foi fantástica!


- Isso foi fruto do que seu trabalho, de sua dedicação e é por isso que estou aqui.


- Como assim?

Expliquei-lhe sobre meu ano da gratidão e ele, com certeza, estava no topo da lista. Era um dos primeiros que recebia minha visita.

É claro que, para um médico acadêmico, sério e objetivo como ele, estava sendo difícil de entender. Eu tinha saído da minha casa, distante, só para agradecer? Muito esquisito.

- Paulo. Esta mão, hoje, aplica Reiki. Ela continua sendo a base do meu trabalho. Não serve apenas para o que servia antes, mas para muito mais. Como poderia deixar passar em branco tanta gratidão?

Falamos de tudo, de amenidades, de sua nova clínica, de nosso trabalho. Da vida. E... tenho certeza... especialmente... da gratidão.

Voltei para casa feliz. E, tenho certeza, deixei uma flor linda no coração daquele anjo.

5 comentários:

Carlos Alberto disse...

"As pessoas felizes lembram o passado com gratidão, alegram-se com o presente e encaram o futuro sem medo".

Epicuro

Eulalia disse...

Que pensamento lindo, Carlos! Obrigada!

Celina disse...

querida, que conto mais maravilhoso. A cada um conheço mais um pouco do muito que você é. Esse sentimento de gratidão, quando é assim profundo e cheio de significado, é um alimento para a alma.

Miriam disse...

"É que me dei conta de que vamos passando a vida e não percebemos o quanto de pessoas e situações especiais nos ajudaram a viver e a enfrentar terríveis dificuldades."
Você é assim na minha vida!!
Bjs. com muito carinho e gratidão!!

Eulalia disse...

Celina, obrigada pelo comentário!

Miriam, é bom quando podemos ser assim, um na vida do outro, né? Obrigada!