sábado, 28 de janeiro de 2012

VARIG


Amo a VARIG. Hoje acordei pensando nela.

Me lembrei, também, da história de um famoso político. Diziam que ele tinha uma memória prodigiosa e conseguia se lembrar dos nomes de quase todo mundo que encontrava. Contam que, um dia, ele se encontrou com um eleitor:
- Oi Fulano, como vai? E a Senhora Dona X, sua mãe?
O eleitor muito sério:
- Ora, não se lembra? Eu lhe disse que ela morreu. E já tem mais de um ano!
O tal político não perdeu a pose:
- Morreu para você, filho ingrato. Para mim, estará sempre viva em meu coração!


Pois é. Amo a VARIG, em cada milímetro do meu cérebro e do meu coração. Quem a conheceu e conviveu com ela sabe: a VARIG não era apenas uma empresa aérea... ela estava encarnada em cada funcionário. Estar na VARIG era praticamente, voar em casa. O sorriso da VARIG era diferente, porque vinha de dentro para fora, da alma para o coração, do coração para o gesto.

Acho que ficaria umas semanas só contando histórias sobre a VARIG... e algumas delas pareceriam contos irreais. Mas é que, muitas vezes, a verdade parece fábula mesmo...

Acordei pensando em viajar novamente. Foi aí que me deu aquela saudade da VARIG. É que os comissários de bordo, por exemplo, embora gentis, solícitos e simpáticos não conseguem ter o jogo de cintura tão conhecido da companhia aérea do meu coração.

Lembro-me, por exemplo, de um de meus últimos vôos no ano passado: serviram uma refeição e, como não tenho o hábito de comer carne, não me encaixei na única opção de alimentação: massa com carne. Não tinha nem como separar uma coisa da outra - todo o molho era de carne. Agradeci e apenas perguntei:

- Há alguma opção possível para quem não come carne?

- Lamentamos, não.


Bem, eram algumas boas horas de vôo. Mas ninguém morre se não comer nada, mesmo sendo vôo internacional. Pedi apenas algo para beber e a sobremesa que, diga-se de passagem, não era lá essas coisas. Não encostei no prato e me preparei para uma leitura, melhor maneira de passar o tempo, em vôos diurnos, a meu ver.

Passados uns vinte minutos, uma outra comissária apareceu “do nada” com uma bandejinha improvisada e, sorrindo, me ofereceu:

- Foi o melhor que pude conseguir. Espero que esteja do seu agrado.

O “espero que esteja do seu agrado” era simplesmente um improviso muito bem arranjadinho: um pãozinho com queijo, embrulhadinho, ao centro; um saladinha de frutas, no canto esquerdo, manteiga e geléia, no cantinho direito. Melhor que isso, só se tivesse uma florzinha. Não resisti. Olhei-a bem no fundo dos olhos e sussurrei a pergunta:

- Você foi da VARIG não foi?

Ela sorriu, acenou com a cabeça. Não foi preciso dizer mais nada.

Nas minhas conjecturas, fico imaginando que, do mesmo modo que eu sinto falta do “sabor VARIG de viajar”, os antigos funcionários, quem sabe, também sintam falta do “sabor VARIG de trabalhar”. É claro que, infelizmente, pelo andar da carruagem, essas gentilezas, essa forma cúmplice de mútuo bem estar, se perdeu ou se perderá, diluído no tempo, pela forma objetiva, prática e impessoal que as outras companhias apresentam. Não que não sejam gentis, não que não sejam competentes, agradáveis, prestativos. Quase todas são, com o que se supõe ser o devido treinamento adequado. Mas sinto isso como treinamento, não como uma forma de fazer parte de uma família, o que faz, do trabalho, uma forma boa de viver.

Por que digo isso? Por que fui professora de muitos funcionários da VARIG. Aliás, mais do que eu poderia imaginar. Quantas e quantas vezes, via alunos e alunas entrando em minha sala de aula ainda uniformizados, muitas vezes atrasados:

- Desculpe, professora, acabei de chegar do vôo.

Uniforme, malinha de viagem e livros, tudo num volume humano só. Cansados, mas... felizes. Tive algumas oportunidades de conversar com eles:

- Escolheu Letras por quê? Quer mudar de profissão? A VARIG é um degrau até a sua graduação?

- Não, professora, estou cuidando de meu futuro. Quero subir na empresa. O objetivo final é conseguir as escalas dos vôos internacionais.

- Você gosta tanto assim de viajar?

- Gosto, mas, acima de tudo, trabalhar na VARIG é o que conta. Você não imagina o que é trabalhar lá.

- E como você faz para conseguir estudar com tantos vôos?

- Ué, você mesmo vê. A gente se vira!


Não ouvi isso de um ou dois alunos, mas de vários. E, vezes sem conta, ouvi o quanto eles gostavam da empresa, do que era ser de lá. Fora alunos, tenho duas amigas que foram funcionárias da VARIG. Uma saiu porque se aposentou, outra porque a VARIG acabou.

Deduzi que este amor pela empresa só poderia ter, como conseqüência, esse tratamento tão extraordinário aos clientes. Um funcionário excepcionalmente satisfeito, só poderia nos tratar tão bem quanto visitas em sua própria casa. Mas é que tinha mais: na verdade, eles sentiam como se a empresa fosse deles e não eles da empresa. Faz toda diferença...

Gostaria de contar uma passagem em especial, a da minha volta de Portugal, trazendo meu pai a tiracolo, para morar no Brasil. Se você leu o conto “Golpe de mestre” sabe a que aperto me refiro: meu pai, mal convalescente, precisando enfrentar uma viagem tão longa...

Na verdade, antes mesmo de embarcar para Portugal, eu já havia levantado a hipótese de traze-lo. Assim, desde aqui, já tinha me dirigido à VARIG para perguntar que tipo de apoio poderia ter deles. E já sabia: eles dariam todo o apoio, desde que ele estivesse em condições de viajar e com o aval escrito de um médico responsável.

Assim, uma vez em Portugal e tendo recebido todos os cuidados necessários durante dez dias, o médico disse que ele estaria, sim, pronto para enfrentar a viagem, desde que seguisse todas as recomendações tão logo chegasse aqui. Ok. Ao comprar as passagens e com a declaração do médico nas mãos, pedi a ajuda para o apoio necessário. O que ouvi, foi o seguinte:

- Estamos prontos para prestar toda a ajuda necessária, desde que ele atravesse a Polícia Federal em pé e sozinho, ou seja, sem a nossa ajuda. Não podemos interferir nesta etapa, não com apenas esta documentação.

Em outros termos, para ser considerado um passageiro doente, a burocracia do aeroporto e dos vôos era tamanha, que era mais fácil considera-lo um passageiro comum, isto é, desde que o médico assim achasse conveniente.

Meu pai era, antes de tudo, um osso duro de roer. Desses portugueses de antigamente, que estão doentíssimos agora e, de repente, não se sabe como, estão de pé. Pois é. Na véspera, ainda fui à VARIG. Me encaminharam para uma salinha para que eu explicasse as condições em que eu achava que meu pai se encontrava. Disse-lhes que estava bem, mas que seria custoso, por exemplo, movimentar-se muito, levantar-se, enfim, exigir esforços mais do que o mínimo necessário. Fui encaminhada para outra sala e uma jovem senhora me aconselhou, então, que alguns cuidados fossem tomados: enfaixar as pernas, para evitar que inchassem, se o médico achasse aconselhável. E, por via das dúvidas, quem sabe, que ele usasse fraldas, pois não precisaria levantar-se mais do que desejaria, se fosse o caso. Ainda me perguntou que tipo de alimentação poderia ingerir. Todos esses cuidados jamais seriam pensados por mim. Detalhes desse tipo me foram solicitados. E, diga-se de passagem: não estávamos voando pela primeira classe... era pela econômica mesmo...

Preparei-me, enfim, para a novela “aeroporto”. Pensei com meus botões: a gente passa pela Polícia Federal, eu procuro o balcão da VARIG e, lá na área internacional, a gente vê que tipo de conforto poderemos conseguir até o vôo.

Chegamos ao aeroporto e, no check in, a primeira identificação:

- Sr. Joaquim Pereira Vianna, seja bem-vindo ao nosso vôo. Temos anotado, aqui, um atendimento prioritário. Faremos tudo para que tenha uma boa viagem. Assim que passar pela Polícia Federal, estaremos atentos a suas necessidades.

E qual não foi a minha surpresa: tão logo passamos pela Polícia Federal, quase tropeçamos naquele tão conhecido uniforme, ostentando o crachá da VARIG. O jovem funcionário estava ali, a postos, com uma cadeira de rodas e aquele sorriso acolhedor:

- Daqui por diante, seu conforto está sob nossa responsabilidade.

Estávamos quase na hora do vôo, o que significou pouquíssima espera. Logo meu pai foi levado pelo gentil rapaz para que fosse acomodado antes de todos os outros passageiros, com calma, conforto e segurança e, principalmente, sem atropelos. Logo depois eu fui chamada, pois meu lugar era ao seu lado. Assim, fomos os primeiros a embarcar, meu pai à janela e eu ao seu lado. Antes do embarque dos demais, uma comissária de bordo se apresentou:

- Estarei atenta a este jovem senhor, disse sorridente. Chame-me sempre que achar necessário.

O “jovem senhor” tinha apenas oitenta e dois anos... delicadeza que não se consegue com treinamento. É natural mesmo...

O vôo era diurno e não preciso dizer que meu pai foi servido sempre em primeiro lugar e, volta e meia, a tal comissária sorridente e acolhedora estava ali, com alguma coisa, um pouquinho de água, uma toalhinha úmida para o rosto por causa do ar condicionado:

- Não vamos querer nenhum sinal de desidratação não é mesmo? É melhor beber sempre um pouquinho de cada vez, para o senhor não se sentir desconfortável, afinal como não vai se levantar, mesmo com fralda, vamos bebendo aos pouquinhos...

Enfim, cuidados aos detalhes e de tal forma que, a certa altura, meu pai comentou:

- Eu estou achando que esta moça está interessada em mim...

Enfim, chegamos, depois das longas horas de vôo, que separam o Porto do Rio de Janeiro. Assim que o avião pousou, a mesma comissária se aproximou:

- Vocês tem alguém esperando no aeroporto?

- Sim, meu marido.


Naquela época, eu ainda era casada.

- Ele está motorizado?

- Sim.

- Então, por favor, de-me o passaporte de seu pai, o nome de seu marido e pode desembarcar. Cuide das malas e de sua passagem pela migração. Nós cuidamos do resto.


Agradeci muito e só tinha como resposta, aquele olhar gentil, prestativo, cúmplice:

- Ele foi um amor, não deu trabalho nenhum. Fique tranqüila.

Saí do avião pensando em encontrar meu pai ao lado de meu ex. Mas não. Não sei o que a VARIG fez, mas, quando vi meu pai, ele já estava dentro do carro, sentado no banco do carona, que já estava devidamente forrado com plástico. Um jovem mantinha a porta aberta, ao lado de uma cadeira de rodas e conversava um pouco com ele, como se o estivesse distraindo.

Quando chegamos, ele se dirigiu a nós e disse:

- Bem, está entregue, espero que tenham feito uma boa viagem. A VARIG agradece a preferência!

Preferência? Agradecer a preferência? Eu é que deveria agradecer à VARIG o motivo de minha eterna adoração por ela...

E isso foi só um dos fatos...

A tal da comissária me encontrou quase um ano depois, com meu pai já falecido... e esse encontro vale mesmo outra história, que conto semana que vem.

8 comentários:

Anônimo disse...

Hoje já é dia 7/02, quarta. Neste último fim de semana, não houve conto postado no site. Claro, amiga, se não não foi possível, não se discute! Saiba apenas que a gente procurou por mais um episódio das tuas narrações!
Volta logo, bjs, décio

Unknown disse...

Gosto de lembrar da VARIG, pois quando tinha menos de 20 anos adorava ver o Electra com seus 4 motores cruzando os céus, sobre minha casa, em um subúrbio do Rio de Janeiro. Era a ponte aérea Rio - São Paulo.
A professora Eulália descreve essa Empresa com todo o carinho e emoção que ela merece. Quando estudava alemão no centro do Rio de Janeiro gostava de ver algumas colegas, funcionárias dessa empresa, em seus uniformes impecáveis.
Fico imaginando a comissária ao ser fitada bem no fundo dos olhos pela professora, pois já senti a força desse olhar quando fui seu aluno. Eles expressam uma sabedoria milenar e uma grande verdade. A professora Eulalia é um exemplo de dignidade e talento e após 30 anos fico imaginando o quanto seus olhos e seu semblante firme são capazes de revelar.

Celina disse...

Eu não tive tantas oportunidades de conhecer a Varig, mas lembro dos comerciais, da música, e de alguns cartazes na Via Dutra que diziam: Pela Varig, você já estaria lá. Simples assim!
no Natal, era o comercial que anunciava o fim do ano!

Eulalia disse...

Queridos!
Obrigada por todos os comentários! Décio, com certeza estarei de volta no próximo sábado (se os deuses permitirem... mas eles são tão meus amigos...)

A este(a) aluno(a) desconhecido, minha leitura emocionada!!! Ser professora é marca de alegria por toda a vida! Obrigada pelas palavras tão gentis!!!

Celina! Ainda vou falar das propagandas da VARIG, ah... se vou!!! (risos).

beijos carinhosos a todos!

Carmen disse...

Nossa deve ter sido muito difícil trazer seu pai de Portugal sòzinha,ele doente,que bom que vc achou essa aeromoça.É a Varig faz mesmo falta mas eu adoro ir para Portugal pela TAP,são muito atenciosos,vou sempre com meu irmão,a filha dele é dentista e mora lá com o marido que é portugês e farmaceuêutico,eles tem uma clinica lá,Mas isso não vem ao caso o que vale é que essa aeromoça deve mesmo ter gostado do Sr. Vianna ele era a delicadeza em pessoa.

pblower disse...

É... A Varia fazia a diferença sim. Conforto e atenção. Gostei dessa história de vc querer voltar a viajar. Quem sabe não vamos juntas?

Eulalia disse...

Gostei da ideia!!!

Anônimo disse...

Sua aluna aqui abraçou a profissão de comissaria com amor no coração apreço pelos passageiros carinho orgulho honra de ter sido VARIG.Deus não me deu asas mas...VOEI! Obrigada pela linda homenagem.sua eterna aluna doralice.