sábado, 7 de janeiro de 2012

LINGUISTA


Nasci lingüista, não teve jeito. Lembro-me que, aos quatro ou cinco anos, já sapecava minhas encucações com as palavras da nossa língua. Sei que tinha essa idade pelas lembranças que guardo das casas em que vivi na infância: até os cindo anos e meio, na Tijuca; daí até os sete, no Meier.

Assim, quando me lembro dos fatos da infância, marco minha idade mais ou menos pelas fotos na mente de onde eles ocorreram. E isso aconteceu na Tijuca, eu em torno da mesa quadrada da sala de jantar. Naquela época, meus irmãos estudavam na sala, em volta da mesa, com um abajurzinho cujo formato e cúpula estão gravados em minha mente até hoje. Eles eram muito mais velhos do que eu - o mais novo contava 8 anos a minha frente. Eu os olhava como três adultos, muito velhos. E respeitáveis, é claro. E fumavam, não me lembro se já todos os três... mas quem fumava, fumava muito. Assim, com a sala toda em neblina e uma concentração para colocar qualquer gênio em estado de completude, não me sobrava espaço senão para pensar... e pensar muito.

Isto porque, quando meus irmãos estavam estudando, a ordem era poder “ouvir uma mosca voar no ar.” E isso valia para todo mundo, mesmo para uma garota de cinco anos como eu. Lembro-me que o menor som que eu pudesse soltar era acompanhado pelo célebre:

- Seus irmãos estão estudando, não faça barulho.

Assim, eu não tinha outra saída a não ser acompanhar o estado de concentração de toda a casa, colocando minha cabeça para funcionar, já que não podia funcionar com o resto. E funcionava muito, diga-se de passagem. Eu não podia imaginar o que era “estudar”... eu nem sabia direito o que era escola! A única coisa que eu sabia é que o que eles estavam fazendo era algo muito muito importante. E fumavam como chaminés.

Um dia, me lembro bem, fiquei cismando com aquela fumaça. Estava sentada no chão, um pouco distante, olhando que desenhos a fumaça densa formava no ar. O abajurzinho, no centro da mesa, dava à fumaça um tom diferente, com sua luz oblíqua engendrando várias formas. Me fixei no abajur.

Não sei por que, comecei a repetir para mim mesma o nome das coisas: mesa, cadeira, teto, chão, janela... abajur? Não combina. Não, definitivamente, abajur não combina com o conjunto.

Todas as minhas dúvidas eram sempre tiradas com meu padrinho de batismo, vale dizer, meu irmão mais velho, para mim o responsável direto pela minha educação. Olhava-o como quem olha para o dono de todas as verdades. Por isso, me aproximei devagar, como quem tem medo de interromper. Mas era sempre assim que eu fazia e parece que ele já estava acostumado. Eu esperava a deixa, até que ele olhasse para mim, perguntando o que eu queria. Isso era mesmo um ritual.

Hoje, fico imaginando como deve ter sido pesado àquele jovem de 16 ou 17 anos, tomar para si o encargo de ser um “verdadeiro padrinho” durante todo o dia, já que meu pai só chegava tarde da noite em casa. Em sua ausência, o comandante era ele.

Ah... e como eu respeitava isso...

Assim, fui chegando, em silêncio, e fiquei na beirada da mesa, olhando para ele. Com certeza, uma hora dessas, ele iria perceber, se virar e perguntar o que eu queria.

- O que foi?

- Por que abajur se chama abajur?

- Ora, porque é esse o nome dele!

- Mas não combina!

- Como não combina? Tem de combinar?

- Tem. Teto combina, mesa combina, chão combina, janela combina... mas abajur não combina!

- É um nome francês. Todo mundo chama assim.


Eu não sabia o que era francês. A única coisa que eu sabia é que esse nome não se encaixava na lógica da minha cabeça.

- Mas não combina!

- Por que teto, mesa, cadeira, chão, janela você aceita e abajur não? Foram todos nomes dados à coisas!

- Pois é... mas esse não combina.

- Em português também chamam de quebra-luz, mas é um nome muito antipático.

- É, mas quebra-luz combina, abajur não combina.

- Então chame de quebra-luz e me deixe estudar.


Saí dali convicta de que o nome daquilo, mesmo feio, tinha de ser quebra-luz, pois isso, sim, combinava com mesa, janela, cadeira, teto e chão.

Eu não podia imaginar que o que estava em jogo era a lógica de construção morfológica dos nomes de nossa língua e, evidentemente, abajur não estava na lista da composição mórfica de uma menina de cinco anos, atenta aos nomes das coisas.

Quem pediu uma lapiseira ao Papai Noel e implicou com o nome “abajur”, só poderia mesmo fazer Letras e virar lingüista um dia...

3 comentários:

Anônimo disse...

minha amiga,
vc poderia ter sido muita coisa! Vc é versátil e talentosa. Como especialista em cultura grega, vc sabe muito bem que também poderia ter sido filósofa, participando, por exemplo, de um diálogo de Platão como o Crátilo! Com certeza vc teria muito a indagar sobre os mistérios da linguagem!!! bjs a vc, sempre, décio

Celina disse...

Acho que foi você, que um dia explicou a expressão "é a cara de fulano cuspido e escarrado" que na realidade deriva de "esculpido em mármore de carrara".
Mas com cinco anos, ter essa percepção! É querida, sua cabecinha sempre foi muito à frente!
bjs

pblower disse...

É amiga.... Estava escrito nas estrelas!!! E eu ainda aproveitei e pegeui uma carona, tendo super aulas com vc.