sábado, 26 de novembro de 2011

RADAR


Radar era um cão fila que mais parecia um filhote de leão sem juba. Feroz. Tão feroz que seus donos tiveram de aumentar a altura dos muros de sua casa para que ele não se incomodasse tanto com os transeuntes. Uma casa suntuosa que se espalhava, em seus jardins e seus dois andares, numa esquina despreocupada de Pendotiba.

Eu conhecera Radar bem filhote e já era bem grandinho para que eu conseguisse coloca-lo em meu colo. Depois de crescido, soube, por acaso, que apenas quatro pessoas conseguiam colocar as mãos nele despreocupadamente: os donos, o veterinário e eu. Não conseguia ter medo dele. Era mesmo uma amizade sem cuidados. Confiança mútua, eu diria. Os familiares o temiam e eu não conseguia entender por quê. Quando eu chegava, era uma festa só! Remexia-se todo de contentamento e não saia de perto de mim o tempo todo da visita. Aliás, só ele chegava perto de mim, pois rosnava para todos que se aproximavam. Eu não conseguia fazer festa nem na fêmea, uma fila linda, delicada e gentil. Ele se interpunha entre mim e ela e não tinha jeito de eu conseguir afaga-la sequer.

Às vezes, eu ficava pensando se não seria exagero das pessoas pinta-lo de forma tão feroz: diziam que o entregador de pizza já mostrava certo receio quando anotava o endereço: é da casa do Radar? Ele sequer vira o cão, mas só os latidos o faziam tremer. Posso imaginar o que diriam do carteiro...

Embora Radar não tivesse acesso aos transeuntes, pois até o portão de entrada era indevassável, diziam que seu instinto fazia com que viesse latindo furioso batendo-se contra o portão ao primeiro estalar da campainha. Eu nunca presenciara esses desacatos e para mim, Radar era um amigo querido e sempre bem acolhido.

Veio o divórcio e todas as conseqüências que isso traz à vida da gente. Até que tudo se estabilize, você fica mesmo um pouco distante de muitas coisas, mesmo das que gosta. O meu, especialmente, com tantas dívidas advindas depois, me fez ficar imersa em trabalhos e compromissos por longo tempo.

Quando a vida começou a estabilizar-se, comecei a freqüentar meus amigos novamente. A casa de Radar era distante e ir lá exigia uma disponibilidade que eu não tivera até então. Estava com saudades de todos, mas, confesso, Radar tomou meus pensamentos a maior parte do trajeto entre minha casa e Pendotiba.

Toquei a campainha. Seria uma bela oportunidade de testar a fúria de meu amigo, pois, afinal, já havia uns dois anos que eu não ia lá... um pouco pensativa, temia, na verdade, que já tivesse se esquecido de mim. Ao ouvir os latidos furiosos que vieram de longe, dos fundos da casa em direção ao portão, tão logo toquei a campainha, lembrei-me do entregador de pizzas e sorri. Naquele instante, passei a acreditar em todas as histórias. Nenhum entregador poderia se esquecer daquele rugido que de cão pouco parecia... mas usufruí desse episódio por muito pouco tempo: no meio do caminho, os latidos pararam abruptamente. Radar ganiu, baixinho a princípio, depois mais alto e desapareceu. Soube depois que fora como uma flecha buscar meus amigos, agoniado, acompanhando-os, empurrando-os para o portão. Ele havia sentido a minha presença.

Quando entrei nem pude cumprimenta-los. Meu olhar estarrecido, contemplou aquele animal enorme, indócil, nervoso, me empurrando contra a parede com o focinho. Ele não se esquecera! Pelo contrário, mostrava a falta que eu tinha feito durante todo aquele tempo. O ritual completava-se como antigamente: ele sabia que eu não poderia conter seu peso e nunca pulou sobre mim, quando eu chegava. Pelo contrário, empurrava-me para a parede e, como parte da brincadeira, eu sempre me fazia de difícil, até que ele conseguia me encurralar com o focinho. Uma vez encostada contra um muro ou parede da casa, ele levantava suas patas dianteiras e as colocava uma em cada lado do meu corpo. Significava que elas ficavam mais ou menos acima da minha cabeça, de modo que, ali presa, eu não tivesse outra opção senão coçar o seu peito, como carinho. Radar era muito inquieto e não permitia que ninguém o abraçasse, nem seus donos. Mas fazer carinho, coçar suas costas, cabeça ou peito, era tudo de bom. E o peito era a parte em que ele mais gostava de receber minhas coçadinhas. Ficava assim por um tempo e não havia meios de alguém o arredar de seu ensejo. Rosnava até para os donos, se fosse necessário. Confesso que me sentia uma princesa, ali, dona da situação. A fera domada pelo suave toque de minha mão.

Este ritual sempre impressionara muito as outras visitas da casa:

- Você não tem medo?

- Como posso ter medo diante de tanto carinho?


Eles não percebiam o cuidado de Radar de me empurrar para a parede por saber que eu não agüentaria que ele se apoiasse em meu ombro. Sequer percebiam o movimento de levantar a cabeça para que eu pudesse acariciar o seu peito. Eles só viam os dentes, não o pelo, as garras, não a atitude... coisas que só o amor pode compreender. E amor era o que ocorria ali. Um amor bem possessivo, mas que eu sabia contornar, embora, muitas vezes, um pouco exagerado. Radar não permitia que ninguém chegasse muito perto.

Lembro-me de uma vez em que fui com um namorado. Discretamente, ele logo entendeu que era mais conveniente se sentar um pouco mais distante de mim, melhor dizendo, do outro lado da mesa do jardim. Menos do que isso, não foi permitido pelo meu ilustre cão companheiro.

Eu tenho a impressão de que para Radar eu não era propriamente uma amiga, era uma posse. Ele era o meu dono, um dono sem espaço para meio termo. Ao me sentar, deitava-se ao meu lado o tempo quase todo. Sua cabeça repousava tranqüila em um dos meus pés. Quando não era a cabeça, era uma das patas. Não era para ter dúvidas: eu pertencia a ele, desde a hora da entrada, até a despedida. Leva-lo para o canil, quando eu estava lá, era quase uma injúria e ele reclamava disso a altos brados, quero dizer, a altos latidos e muitos ganidos. Melhor deixa-lo solto e ao meu lado. Aliás, no fundo, eu adorava o escândalo ele que fazia e solicitava “condescendente” (na verdade, suplicante), que ele ficasse por ali. Era mais confortável para todos e melhor para nós dois. Confesso que me agradava muito ter ao meu lado, como se fosse um gatinho, um “filhote de leão”.

Essas visitas, embora não freqüentes, povoam até hoje, com alegria, minhas lembranças. Até mesmo a última vez em que vi Radar foi gratificante, embora extremamente comovente.

Aconteceu que ele ficou gravemente doente. Câncer ósseo, sem cura. Cuidado com carinho e desvelo por seus donos, foi tratado para usufruir do melhor conforto durante a doença. Não me disseram nada, até bem perto do fim. Mas este, um dia, chegou, pois o veterinário aconselhou um término para a dor. Ele estava muito mal.

Eu estava sem ir lá há uns três meses e não sabia o que estava acontecendo, até que eles me ligaram e contaram, de uma vez só, toda a história. Senti uma facada no peito:

- Acho melhor você vir para se despedir, pois ele não consegue mais sequer se levantar e achamos que devemos dar um fim a esse sofrimento.

Fui no dia seguinte, não deixei para depois. Ao tocar a campainha, não fui saldada com os latidos de sempre. Ele deveria estar lá nos fundos. Ao abrir a porta me disseram que seria melhor eu me preparar, pois ele estava deitado e quieto, que eu me aproximasse devagar a falasse com ele.

Ao entrar na parte interna do jardim, vislumbrei seu vulto ao fundo. Sua cabeça levantou-se, ele, a custo, levantou-se e caminhou meio rastejante em minha direção. A cena, em si comovente, surpreendeu os donos e a mim. Corri para evitar que ele fizesse mais esforço. Meu ímpeto foi o de abraça-lo. Com certeza, não teria forças para reagir e evitar o movimento. Mas me contive. Quis respeitar seus princípios. Apenas afaguei-o e ele, imponente, empertigou-se. Magro, fraco, abatido, mas altaneiro. Foi assim que tiramos nossas fotos. Ele se sustentando em pé o mais que podia. E foi a última vez que se pôs em pé.


Enfim, deitou-se, colocou como sempre sua cabeça em um dos meus pés e não mais se levantou, mesmo na minha saída.

Ficamos ali, por muito tempo e conversamos muito. Eu lhe falei de todos os momentos incríveis que ele me proporcionou e ele me respondia, vez ou outra, com pequenos ganidos baixinhos, quase suspiros - doces, embora doloridos suspiros. Nós dois sabíamos que seria a última vez. Mas também sabíamos que seria eterno.

Lembro-me que se queixou quando me levantei para ir embora. Apoiou com mais força sua cabeça, tentando me reter ali. Ao mesmo tempo, sabíamos, ambos, que era esforço demasiado. E foi por isso que me despedi.

Afaguei-o com todo o carinho de uma vida a dois. Sua testa enorme na palma da minha mão. Seus olhos fechados internalizando o momento. Eu sabia. Ele sabia. Minhas lágrimas pingavam em sua face. Nós sabíamos.

Radar, meu querido, doce e meigo amigo, aquela estrela lá no céu, eu bem sei, te pertence. Sei reconhece-la onde quer que eu esteja...

2 comentários:

Anônimo disse...

minha amiga,
bicho é mesmo algo de muito especial. São sempre experiências muito diretas e sensibilizadoras as que eles proporcionam. Gde beijo, décio

Anônimo disse...

Impossível ler sem se emocionar... de verdade!

Só quem tem Filas sabe como é esse amor incondicional deles; e como é difícil dizer adeus quando sua hora chega.

Linda história!

Aníbal S. Felipe-Silva
CANIL FILAS DE FAZENDA
anibalfelipe.vet@gmail.com