sábado, 3 de dezembro de 2011

O QUEIJO


Passei anos de minha vida esperando ir a Paris. Na verdade, acho que começou no dia em que me dei conta de que Paris existia. Sem saber explicar racionalmente por que, algo indescritível fala francês dentro de mim desde que me conheço por gente.

Em 1975 realizei meu sonho pela primeira vez. Digo primeira vez, pois o sonho se renova a cada vez que ponho os pés lá. A última foi em 2001 e, se demorar muito mais, quem sabe eu tenha um treco.

Mas voltemos a 1975. Quatro dias apenas, mas quatro dias vividos com quase volúpia. Respirava cada detalhe por dentro e por fora, meus olhos encharcados de luz e sonho.


A cidade, a todo momento, registrava o descompassado ritmo do meu coração. Paris, afinal, fala por si mesma. Não há como descrevê-la. Não há como dizer qual lugar é mais intenso do que outro. Tenho pensado nela por esses dias... quem sabe, hora de fazer uma loucura... uma saudável loucura... vou começar a tramar melhor isso.

Mas hoje vim para casa com um queijo tipo Camemberg nas mãos. Me deu saudades do gosto e, por extensão, da lembrança de queijos e vinhos... por associação... Torre Eiffel. A memória é fantástica e nos enreda por cheiros ou gostos já vividos. É como um raio de luz que abre um espaço em recordações escondidas. Mas desta vez, voltei para casa inquieta e só consegui me sentir acomodada quando meus dedos começaram a digitar essa lembrança.

Torre Eiffel, depois de uma manhã inteira de muita caminhada. Um percurso de muitos quilômetros de encantamento e as pernas pediam repouso. Uma fila imensa aguardava os visitantes. Entrei nela e inventei de esquecer que minhas pernas existiam. Por um bom tempo, meu corpo resumiu-se aos meus olhos que filmavam, centímetro por centímetro, aquela harmoniosa ferragem engendrada em forma de Torre.



Quantas e quantas vezes eu a tinha visto apenas corporificada pelo papel de fotos e postais. Mas estava ali, a minha frente, mais um precioso tesouro para os olhos do meu coração.

Subir ao seu topo significaria para mim conquistar a cidade, fincar minha bandeira no cume e dizer: “Paris, no teu topo, aqui estou eu!” E faria isso. Poucos passos me separavam dessa conquista.

Foi quando percebi que o avançado da hora exigia cuidados alimentares. Claro, não abri mão de almoçar lá em cima. A subida deu-se harmoniosa só no que tocava ao bondinho, que ganhava as alturas suave e firme.


Meu coração é que subia aos trancos, em trilhos internos desencontrados, talvez um pouco enferrujados por tantos anos de espera. Meus olhos precisavam de lubrificantes, pois negavam-se a piscar. Até hoje, sinto as sensações físicas esquisitas do momento, contrastando com minha alma em festa.

Chegamos ao segundo, dos três andares que compõem a estrutura. A vista maravilhosa era, para mim, o ponto central da festa, mas meu ex-marido me puxava impaciente para o restaurante. Entramos. Meu delicadíssimo estômago pediu o prato mais simples que existia. Meu ex, ao contrário, boa boca, pediu o que encontrou de mais sofisticado. Muito justo: em terra de franceses, seja francês.

Colesterol à parte, adoro queijo! Ao final da refeição, portanto, me animei a participar com ele do ritual do prato de queijos. O garçon, como todo francês que se preza, trouxe, vaidoso, o que havia de melhor em Paris. Cuidadosa, pedi o queijo mais simples que encontrei. Ele, ao contrário, para honrar a festa, solicitou que o garçon apontasse o que seria recomendado. Não me lembro que queijo era, mas a aparência era das mais “sofisticadas”, para não dizer, por puro respeito, das “mais esquisitas”. Mas foi esse mesmo que ele escolheu e eu tratei de fixar minha atenção apenas para a simplicidade atraente do meu prato.

O queijo era tão magnífico que me esqueci do que estava à volta. Por isso levei algum tempo para me dar conta do que acontecia ao meu companheiro de jornada. Quando o fiz, notei que ele estava congelado, como se fosse uma estátua. Apenas olhava para mim, sem mexer um músculo. Sua expressão era, no mínimo, muito engraçada. Notei que seu prato havia sido tocado, mas eu não podia imaginar o que ele sentia. Estava adorando o que tinha em sua boca ou detestando? Ele não se mexia.

- O que foi?

Ele, mudo, olhos fitos em mim, sem mexer um músculo.

- Bom demais?

Ele quieto.

- Ruim demais?

Ele acenou muito ligeiramente com a cabeça.

- Engole de uma vez!

Ele quieto, olhando para mim.

- Não pode ser tão ruim assim.

Ele acenava que sim.

- Vai ao banheiro e joga fora.

Ele não se movia. Olhei-o, incrédula:

- Não é possível.

Disse isso e, discretamente, avancei com meu garfo e peguei um tiquinho de nada do queijo dele, pois não queria me arriscar. Experimentei. Imediatamente senti o mesmo congelamento que percebera ao fitar meu companheiro. Não era ruim. Era tão insuportavelmente intragável que me senti a última das francesas. Os músculos de minha boca reagiram imediatamente, a possibilidade de engolir não existia. Minha garganta trancou. A agudeza do sabor agredia o meu íntimo. O impulso era o de descarta-lo imediatamente. Não consegui engolir, mas, no meu caso, não me apertei. Me levantei e fui ao toalete, joguei o tal tiquinho fora e lavei bem minha boca. E o pior: uma crise de riso me invadia. Explodia em mim, a cada segundo que me lembrava da expressão inusitada do semblante de meu comparsa. Queria sentir pena, mas não conseguia!

Mas precisava voltar. Afinal, eu tinha um queijo maravilhoso em meu prato para honrar a minha prudente covardia na escolha, uma escolha talvez considerada desastrosa para um gosto francês mais apurado. Para mim, no entanto, era o queijo mais simples e, ao mesmo tempo, o mais delicioso que jamais provara.

Ao voltar, para minha surpresa, não havia mais queijo nenhum no prato de meu ex.

- Você comeu?

- Não.


Ele conseguira colocar o queijo num pedaço de papel que tinha no bolso para descarta-lo quando saíssemos. É óbvio que sentiu uma vergonha inusitada de deixa-lo no prato, depois de ter sido tão elogiado pelo garçon, por sua escolha.

A parte ruim é que dividi meu maravilhoso queijo com ele. Mas, tudo bem... ninguém conseguiria sair com aquele gosto horrível na boca. Só um francês, talvez, desses que comem daqueles queijos desde pequenininho...

Depois dessa experiência, a tarde voltou-se para o puro encantamento de fazer com que minha alma alçasse vôo rumo ao terceiro andar e vislumbrasse a bela, magnífica, indescritível Paris.


Os dias seguintes também me brindaram à altura de todo o sonho esperado por tantos anos. Lembro-me, vez ou outra, a troco de tudo ou de nada, de tantos recantos, aventuras e deslumbramentos.

Mas toda vez que compro um queijo francês não posso deixar de me lembrar do restaurante da Torre.


Preciso voltar lá. Mas, com certeza, na hora do prato de queijos, meu pedido se repetirá certo, simples e fagueiro, sem cair na conversa de nenhum glamoroso garçon!...

6 comentários:

Celina disse...

querida,
Que deliciosa descrição do sonho de conhecer Paris. Paris, para mim, foi o filme de deu origem à série; e tudo em mim, nasceu em Paris e fala francês. Mas imagino bem o queijo! Meu amigo francês quando veio me visitar, parecia ter trazido um defundo esquartejado na mala! Eram queijos...

Carmen disse...

Ah! Paris,que saudade,na Torre tomei champagne,no último andar,desfrutando o gosto delicioso da bebeda misturado a deslumbrante visão dos arredores de Paris.Queijo só comi no café da manhã do hotel em Pigalle.Amei o conto.,Bjs

Marcelinho disse...

Tia,

como eu digo, Paris foi, é e sempre será um filme.. e pelo que vejo, na vida de todos que passarm por lá! Tudo sempre lindo, glamouroso e deliciosamente diferente. As vezes nem tanto.. Sou tão chato prá comer, que lá, na terra do pão, até vivi bem! Mãe que come de tudo, não suportou o jantar de ano-novo.. kkkk
Mas a vontade de voltar e passear mais pelas ruas lindas de Pris, é anual!!
Bjosss com MUITAS saudades

Anônimo disse...

minha amiga,
concordamos em muitas coisas, mas, em especial, nisto: nada se iguala à simplicidade e à falta de pretensão de um bom queijo de Minas!!! Realmente alguns queijos franceses produzem como efeito a petrificação de quem ousa colocá-los na boca. Dizem até que esse era o verdadeiro segredo da Medusa: antes de formular sua fatal pergunta, ela oferecia a quem se aproximasse uma fatia de queijo francês ... donde o ar de estupefação e abestalhamento de quem era interrogado!!! rsrsrsrs Bem, vc é que é especialista em mitologia grega, logo vc é quem deve saber disso ...
bjs do amigo décio

Eulalia disse...

Queridos amigos,
Adorei os comentários.

Decio!!!
Uma das versões do mito diz que a Medusa tinha um "bafo" insurportável. Vai ver que era isso!

Celina, Carmen e Marcelo, vejo que Paris também é puro encantamento para vocês.

(concordo com você, Marcelo que a comida é uma dificuldade para nós dois - risos. Nesse item, Paris é um problema a ser resolvido à parte...).

pblower disse...

Os comentários não acabaram!!! Aqui estou eu. E sabe... Acho que está mais do que na hora de vc voltar para vinhos e queijos (ainda que com cuidado!) e para a cidade que vc tanto ama! Está na hora de voltar!