sábado, 5 de novembro de 2011

LEO


Já andei falando do tal anjo que me socorre nas horas mais inesperadas e também me apronta mil aventuras. Pois então, ele me apareceu para me tirar de um aperto que mal posso acreditar.

Tudo começou com um porteiro que tivemos, ou melhor, vigia da noite. Depois da aposentadoria do Geraldo, aquele tal do conto “O vigia”, muitos porteiros da noite rodaram pelo meu prédio. E um tal nordestino, cujo nome me esqueço, graças aos deuses, foi um deles.

Ocorre que o homem bebia. E muito. Dormia de roncar no sofá do fundo da portaria. E eu, que muitas vezes não tinha hora para chegar em casa, ficava presa do lado de fora, carro aberto, quase arrebentando a campainha para acordá-lo. Teve uma vez que precisei telefonar para um vizinho descer e abrir a porta para mim. Naquela época, tínhamos uma síndica muito condescendente. Vivia tendo pena do rapaz, tentando “ajeita-lo”. Descobri, mais tarde, que ele era parente de uma faxineira sua ou coisa assim e ela queria ajudar. Não tenho nada contra isso, pelo contrário, mas alcoolismo não é coisa que se ajeite colocando os moradores em risco. E conto por quê:

O homem era irritadiço. Além disso, mal educado e bem grosseiro, mesmo quando não estava bêbado. O edifício estava passando por um período complicado. Na verdade, faltava um mês para a assembléia geral e a síndica não queria convocar uma extraordinária para tratar de assuntos financeiros. Eu e mais outros moradores insistimos um pouco nisso, mas sem efeito. A maioria se acomodou. Bem, o fato é que o homem acumulava dois cargos: era faxineiro de dia e acumulava as folgas do vigia da noite, que eram duas, não me lembro mais por quê.

Um dia, meio alto, ele já tinha ameaçado uma moradora com uma vassoura. Eu fui com a moradora à síndica, dizendo que o menino podia ter jeito, mas não podia chegar a esse ponto. Ele estava ficando sem limites! A síndica benevolente, pediu que esperássemos pela assembléia. Não sei o que ela tinha para protege-lo, mas, temporariamente, aceitamos.

Na noite seguinte, cheguei tarde. Pelo vidro da porta, vi que ele estava estatelado no sofá, dormindo. Toquei várias vezes a campainha, bati com a chave na porta de vidro. Nada. A síndica acabara de se mudar para o prédio ao lado e eu não sabia qual era o seu número de telefone. Eram duas horas da manhã. Não iria acordar meu vizinho, outra vez. Já estava sem graça. Não tinha outros números para ligar e na rua não queria ficar. Bati continuamente e com força até que ele, estonteante, acordou. Levantou-se para abrir a porta da garagem. Entrei com o carro, bem irritada. Não era possível, deveria repreende-lo. Naquele dia e para sempre aprendi que não se repreende, não se fala, não se olha para quem está bêbado. Mas tive de aprender...

-(nome),você não pode chegar ao cúmulo de dormir e me deixar presa na rua!

O homem enfureceu-se e avançou em minha direção, dizendo mil palavrões e levantando a mão. Disse que tinha uma peixeira e ia enfiar em mim. Ele ia mesmo me bater! Não sei que forças ou que proteção eu tive. Só sei que coloquei o dedo em riste e apenas disse:

- Não se atreva a avançar. Você não sabe com quem está falando.

E entrei imediatamente no elevador que, felizmente, estava no térreo! Meu coração batia. Estava em pânico. Eu não sabia nem como eu tinha reagido, pois o que eu tinha dito não teria valor algum, diante de um homem naquele estado. Acho que ele reteve o passo apenas porque não esperava uma reação e eu aproveitara para escafeder-me pelo elevador, antes que ele, bamboleante, pudesse me alcançar.

Entrei em casa achando que iria ter um troço. Tranquei todas as portas com todas as trancas que eu tinha, com todos os ferrolhos. Mantive a sensação de estar sendo posta em perigo durante o resto de toda a noite. Não conseguia me imaginar saindo de casa nunca mais!

Esperei dar as 7 horas da manhã e liguei por interfone para o sobrinho da síndica, que também morava no prédio. Expliquei o caso em prantos e disse que precisava falar imediatamente com ela. Disse que não arredaria pé de casa. Sentia-me em perigo. Ele avisou a tia e desceu para minha casa para me fazer companhia. Ficou preocupado, pois eu estava mesmo em pânico. Conversamos um pouco, me acalmei. A tal síndica era casada com um advogado e foi ele quem me ligou, em seguida.

- Não saia de casa. Vamos falar com ele agora, dizendo que fizemos queixa na delegacia. Que ele fique muito atento e reze para que nada aconteça a você, pois qualquer coisa que aconteça, ele será o primeiro suspeito. Isso o assustará.

- Eu exijo que ele seja mandado embora! Me sinto em perigo. Não precisa ser por justa causa para ele não se enfurecer mais ainda e me pegar numa esquina qualquer. Mas não arredo pé da minha casa enquanto esse cara estiver trabalhando aqui! Tudo isso em prantos, você pode imaginar.

- Sim, já disse para (nome da síndica) que ele precisa ser afastado, imediatamente, sem cumprir aviso prévio. Ele estava muito bêbado, diz que não se lembra de ter feito isso.

- Seja como for, para mim, chega. Com assembléia ou sem, preciso chegar e sair de casa em segurança. Nem eu nem qualquer pessoa do prédio merece espancar a porta, à noite, para poder entrar em sua casa.


Eu tremia, não tinha como me controlar. Nunca tinha sido exposta a uma situação de tão tremenda ameaça.

- O homem ameaçou me furar com uma peixeira. Onde vocês acharam um sujeito dessa laia para contratar como funcionário? Vocês ignoraram que ele quase avançou com uma vassoura em outro morador, outro dia. É muito fácil por não morarem mais aqui. Vocês não estão correndo o risco que nós estamos!

Eu não costumava agir assim, mas estava mesmo em pânico. Não tinha coragem de sair de casa. Olhei pela janela, ele estava lá embaixo, de papo com os colegas. Soube, depois, que contava vantagem, metido a dono do mundo.

Fiquei em casa, avisei à Universidade que não iria naquele dia. Precisava me acalmar.

Às duas horas da tarde, o interfone tocou.

- O Sr. Leonardo está aqui.

- Pode subir.


Eu até tinha me esquecido. Era o corretor de seguros do meu carro. Tínhamos ficado amigos. Na primeira vez que o vira, ele era o mensageiro de uma firma de seguros e trazia os contratos. Olhei-o de terno, tão compenetrado que havia dito: você vai subir, menino, terá sua própria firma.

- Tomara, luto por isso.

E foi o que aconteceu. Em três anos, ele estava bancando a corretagem. Hoje, tem sua própria firma, com credenciais e tudo. Brincamos sobre o primeiro encontro, cada vez que nos falamos. Muitas vezes, nos primeiros anos de firma, era ele mesmo que vinha trazer os contratos, tomar um café, curtirmos seu sucesso. Hoje em dia, é tudo automático, via internet, não se visitam mais os clientes. Modernidades... mas, naquela época, ele ainda vinha em casa.

Abri a porta para o Leo. De terno, pasta, compenetrado. Entrou e me viu consternada. Tomamos um café juntos e foi ótimo conversar com ele. Teve a paciência de ficar por mais tempo, me fazendo companhia. Me disse que planejava vir no final da semana, mas deu na veneta e decidiu, de repente, vir naquele dia mesmo e resolver logo esse contrato. Que bom, pois acabou por me ajudar e me confortar. Na verdade, até então, eu não estava tendo idéia de que isso já era uma artimanha bem montada do meu anjo da guarda...

Leo saiu. Mais uma hora ou duas, um dos porteiros tocou a campainha. Queria que eu repensasse o caso do tal funcionário, que ele tinha perdido a cabeça, mas que estava muito arrependido. Não precisava ter chamado um advogado, ele não faria mais nada contra mim.

Foi aí que reconheci o anjo. Leo estava vestido de tal forma e ficara tanto tempo comigo que todos pensaram que ele era um a advogado e que eu estava tomando providências jurídicas. Sorri por dentro e, imediatamente, agradeci ao meu protetor de asas. Por fora, mantive a pose:

- Sim, tomei as providências necessárias. Não sei o que ele contou para vocês, mas sei que andou se gabando. O que ele fez foi imperdoável (e vomitei todos os palavrões que ouvi – pode imaginar a cara do porteiro me ouvindo repetir os palavrões?) e não dá para deixar como está a não ser que ele suma daqui e eu não o veja nem de longe, nem na outra esquina.

- Pode deixar, ele vai sumir daqui sim senhora. Vou dizer isso a ele agora mesmo.

- Então tá, vou deixar minhas providências em suspenso, mas darei prosseguimento caso o veja em qualquer momento ou me sinta ameaçada.


Liguei para o Leo. Contei o que se tinha passado. Rimos, juntos, ao telefone. Ele ficou feliz por ter ajudado alguém que tinha torcido tanto por ele. Prontificou-se a dar uma de advogado, de novo, se precisasse. Não foi preciso. Mas ter amigos assim, enfeita a vida! Leo é uma parte linda de minhas aventuras. Alguém que sempre faz sorrir meu coração. Um menino que se transformou em homem, casou-se, teve filhos, criou sua própria empresa, e soube preservar a alma de quem sabe viver a vida e conservar seus principais valores, entre eles, o da amizade.

Nunca mais vi o tal homem. Mas não me atrevia a sair à noite. Um mês depois, soube que ele tinha pegado o dinheiro da demissão e voltado para o nordeste. Fiz uma noitada por conta e a vida voltou ao normal.

Volta e meia, sempre agradeço ao tal anjo que me apronta aventuras e me resguarda de intempéries. E agradeço ao Leo, por ter sido o mensageiro de minha segurança.

Um comentário:

Celina disse...

Querida, você atrai esses anjos! Que eles sejam sempre presentes na sua vida, pois você merece muitos anjos a sua volta.