sábado, 2 de abril de 2011

A CORTINA


Considero-me privilegiada, morando em um canto tranquilo de Copacabana, a uma quadra de todo o bulício, sem que ele me perturbe. Mas quando me mudei para esta rua, em 1973, não foi direto para o apto que moro hoje. Foi, justamente, para o prédio em frente, sala e quarto, digamos, um “apertamento” ajeitadinho, bem ao estilo dos antigos apartamentos de Copa.

Minhas janelas davam para outro prédio, cheinho de janelas e, por trás, o morro da ladeira do Leme, do qual só via o topo, mesmo morando no décimo primeiro andar. De minha janela, no entanto, dava para ver um lindo e distante coqueiro, que namorava todos os dias, sem exceção, dando-lhe bom dia, boa tarde e boa noite, como acontece com os enamorados. Um coqueiro solitário, lá no alto que, não sei por que me hipnotizava e me encantava. Soberbo e humilde, altivo e flutuante, cheio de promessas benfazejas, símbolo misto de companheirismo e abandono. Refletia minha alma em seus dias ensolarados ou chuvosos, deixando-se levar pelos ventos e tempestades e brilhando aos raios do sol. De onde moro, agora, consigo ver a mesma montanha, mas em outro ângulo da rua e não vislumbro o meu coqueiro. Será que ainda existe? O fato é que, enamorada e jovem, muitas vezes me punha à janela do quarto para pensar com ele sobre tantas coisas que nem sei.

Um dia, ao me postar à janela do quarto, no entanto, meus olhos distraídos pousaram sem querer numa das janelas do outro lado da rua. Acho que o fiz por causa do movimento e do chamado constante, gritado, que vinha de lá. Era uma menina, bem pequena, que acenava para mim. Uns quatro anos, no máximo. Gritava por “tia” e me dava adeus. Por delicadeza, correspondi à pequena princesinha, achando a idéia generosa e gentil. Mal sabia eu o que isso poderia ter de significado para ela. No começo, na verdade, não dei muita atenção. Depois, no entanto, passei a perceber que a jovenzinha ficava esperando que eu aparecesse à janela, apenas para acenar para mim. No início, senti-me um pouco invadida em minha privacidade, na verdade, na privacidade que eu buscava com o meu coqueiro. Depois, por gentileza, passei a acenar para ela e percebia que era como se ela tivesse, enfim, encontrado alguém com quem brincar.

Lembrei-me de minha infância, no colégio, com tanto espaço para os recreios e jogos e passei a me simpatizar com a pequena jovem do outro lado da rua, talvez sempre presa em casa, não tendo distrações e esperando pela “tia”, apenas para dar-lhe um adeuzinho, de vez em quando. Meu coração passou a sentir uma grande empatia com a nova geração e, talvez, hoje eu entenda melhor a solidão dos pequenos jovens, frente à internet, buscando seus companheiros virtuais desde cedo. Há os saudáveis avanços da tecnologia, é claro, mas também há pais que trabalham o dia todo, muitas vezes deixando essas crianças órfãs de folguedos.

Quantas delas, hoje, saberão jogar queimado, pular amarelinha, brincar de roda, de pique-cola, pique-alto, pique-baixo, pique-esconde, bandeirinha, ping-pong e tantos outros jogos que nos davam um cotidiano onde podíamos nos tocar de verdade, com companheiros de carne e osso, com reações imprevisíveis, não mecanizadas, com as quais o cotidiano nos preparava para o convívio real? Sem contar que nos faziam acabar os recreios suadas e cheias de vida, neurônios em festa, num corpo cheio de boa circulação sanguínea...

Mas deixemos de saudosismos. Voltemos às recordações e a uma princesinha solitária.

O fato é que, na década de 70, os computadores não existiam e, em sua solidão, talvez eu fosse sua esperança de festa. Talvez, quem sabe, eu representasse para esta pequena flor da infância, o que o coqueiro representava para mim. Não me dava conta, no entanto, dessa possibilidade. Só descobri alguns anos depois.

Morei naquele prédio de 1973 a 1978. Digamos que minha princesa deve ter-me descoberto em torno de 1976 e daí por diante, ainda que minha vontade me levasse à janela em busca de encontrar-me a sós com meu coqueiro, dava vazão à alegria daquela pequena jovenzinha. Nunca deixei de acenar-lhe, vez por outra, todos os dias em que ela me buscava com seus bracinhos gentis e seu sorriso sedutor. Para mim, no entanto, não passava de uma gentileza.

Os anos passaram, mas isso sempre persistiu. Nunca tive vontade, no entanto, de conhecê-la de perto. Os acenos de boa vizinhança eram suficientes.

Em 1978, depois de muito procurar, achei o apartamento dos meus sonhos. Digamos que o apartamento me fisgou, pois foi justamente o que aconteceu: o porteiro do prédio em questão, sabendo de minha busca através da cunhada que era minha faxineira, fez a gentileza de tocar a minha campainha e dizer que havia um apartamento à venda no prédio que moro hoje. Apenas me custaria atravessar a rua e já estaria na portaria do tal prédio. Mas a fachada nunca me seduziu e, embora pudesse ver a parte do apto por dentro da janela do meu quarto, nunca me chamou a atenção. A felicidade precisou bater deliberadamente a minha porta, puxar-me pela mão para eu poder enxergá-la.

A compra do apto não foi fácil, visto que o dono era uma dessas pessoas que buscam tirar vantagem até do que não existe. Mas pulemos este pedaço. O bom da história é que vendemos o apartamento onde morávamos felizmente com a rapidez necessária para darmos entrada neste outro, fizemos o famoso financiamento e, seis meses depois, era apenas uma questão de atravessar a rua para transferir a mudança.

É preciso esclarecer que eu não estava indo morar no mesmo prédio da princesinha. O meu prédio era de esquina, o dela ficava em frente e eu estava atravessando a outra rua, para o outro lado.

Confesso que não estava dando importância para a mudança, em termos do que poderia significar para ela. Assim, ao tirar a cortina, apenas acenei gentilmente, numa despedida carinhosa. Não notei sua tristeza, sua angústia, seu desespero.

Esqueci, na verdade, bem rápido da pequena jovem e da mudança. O que mais se destacava eram as saudades do meu coqueiro. Eu realmente não sabia o que poderia estar significando minha mudança para ela.

Um mês depois, no entanto, ao sair do meu prédio, me deparei com um pai e sua filha de mãos dadas. Ao me ver, ele se dirigiu diretamente a mim, dizendo:

- Puxa vida, você nem imagina quem você é para a minha filha!

Olhei a menina, sem reconhecê-la. Encostava-se ao pai, envergonhada, como acontece frequentemente com crianças perto de adultos. Mas não tirava os olhos de mim. Ele continuou:

- Ela é a menina a quem você dava adeus da janela, no outro prédio. Quando ela viu que você estava se mudando, chegou a ficar com febre, ansiosa, pensando ter perdido você para sempre. Mas no dia seguinte, você colocou a cortina em sua nova casa e você precisava ver o escândalo que ela fez, quando reconheceu a cortina, dizendo que você tinha apenas mudado de prédio e não de rua e que não havia perdido a tia. Só que, lá, você não fica na janela e ela fica esperando à toa.

De fato, pela composição do minúsculo apartamento, volta e meia, eu estava a um passo da janela. Neste novo, não só pelo espaço, mas pela disposição do mesmo, raramente eu passava perto da janela da sala. E havia mais uma razão: no apartamento antigo, eu gostava de ir à janela para pensar olhando para o meu coqueiro e, não podendo mais vê-lo, a janela, dando apenas para uma rua tranqüila, perdeu o significado para mim. O prédio da menina passou a ficar num ângulo à esquerda, para mim despercebido.

Eu não podia imaginar o valor que teria o meu adeus para a pequena e solitária menina!!! Fosse hoje, mais madura, eu teria dado muito mais importância ao caso. A menina estava ali, olhando para a sua “tia fada” e eu apenas (apenas!) sorria para ela, sem mais festa do que a de um encontro de vida, uma gracinha, uma coincidência. Nunca tínhamos nos encontrado na rua e eu apenas conversando com o pai, enquanto, na verdade, eu deveria estar dando total atenção à jovenzinha. Só me dei conta disso depois! Posso imaginar a decepção que ela deve ter tido, mas, aí, talvez, já tivesse sido tarde demais. O fato é que, vez por outra, dirigia meu olhar em direção às inúmeras janelas do grande e suntuoso prédio da menininha. Mas, na verdade, não sabia exatamente qual dessas janelas lhe pertencia. E não a vi mais. Talvez a tivesse decepcionado cruelmente. O encontro não lhe deu a dimensão esperada da mesma carinhosa acolhida... ou, talvez, a "estrela", uma vez na terra, tenha perdido o seu brilho. É bem provável que tenha sido isso. Ou os dois.

Nunca mais a vi. Mas quando me lembro, sinto uma dor indecifrável por dentro. A dor de não ter correspondido aos seus sonhos, aos seus anseios, a sua dedicação. Há coisas que fazemos que não tem conserto. Espero que não tenha sido tão triste para ela quanto imagino. Gostaria de vê-la para saber. E dizer o quanto sinto não ter sido uma fada de verdade, uma tia digna de suas expectativas.

Não posso imaginar se ela ainda mora lá ou não. Não sei em qual janela seria, no meio de tantas que compõem o prédio que faz quina com o meu... e também há muito não ostento minha cortina azul. Mas gostaria de saber sobre seu paradeiro, se é feliz, que caminhos trilhou. Pelo tempo transcorrido, deve estar com mais de 30 anos...

Quem sabe, um dia, por acaso, ela me leia e queira acenar, uma vez mais da janela, para mim, ou colocar algum comentário, aqui mesmo. Será muito bem-vinda.

Mas se ela ler e preferir o silêncio, gostaria, apenas, que ela soubesse que, se fui o seu “coqueiro”, por algum tempo, quem sabe seja bom para ela também saber que não a esqueci.

3 comentários:

Carmen disse...

Lindo conto,emocionante,mas, triste.Sabe,deu-me vontade de torcer pelo reencontro,acho que será uma delícia para as duas se acontecer.O mundo é redondo,a vida tem muitos caminhos e nada é impossível,portanto,que assim seja.

Celina disse...

que lindo! esse é realmente um era uma vez de verdade. Concordo com a Carmen, quem sabe?

pblower disse...

Esta historia eu não conhecia. Linda! Comovente. Muytio linda.