sábado, 23 de abril de 2011

CARAGO


Coisas de Portugal. Acho que agora, foi mesmo Portugal que entrou na berlinda dos meus contos.

Mas você pode entender... afinal.. sou filha de portuga, termo que uso com carinhos de filha. Amo o país, que me aceitou como cidadã. Graças a ele, tenho o passaporte que me faz européia. Agradecida, brindo essa terra também amada por meu coração.

Minha estadia na casa de meu pai, no entanto, traz mais recordações que o país em si mesmo. Natural, pois ficava muito mais em casa do que em qualquer outro lugar, curtindo um vinho verde (muito pouco, pois, depois de uma taça, o álcool sempre me disse chega...), as rosas aos montes que meu pai plantava no quintal e na Quinta de San Martinho de Dume e muito papo aqui e ali. Nada assim muito turístico propriamente dito. Vi muitos lugares, é claro, lindos e que me enchem de saudade, mas o que mais me chamava a atenção eram os hábitos caseiros, as falas, os costumes.

Meu pai, por exemplo, estava só esperando eu chegar para ir ao açougue e apontar para ele o que era filé mignon. Ninguém sabia... o nome de muita coisa é bem diferente e ele estava acostumado a ver as carnes já prontas no prato, nunca nas mercearias. Não me lembro mais que nome tem, mas lembro da alegria dele comendo o tal filé mignon exatamente como comia aqui no Brasil, super agradecido.

Os falares, naturalmente, me chamavam especial atenção, não fosse eu lingüista. Dois deles me marcaram de modo especial. Vamos a eles.

Carlos era o marido de Gloria, afilhada de casamento de meu pai. Na verdade, Gloria chegara menina lá em casa. Fora contratada para os afazeres domésticos e acabou se transformando em uma espécie de governanta. Quando casou, Carlos foi morar lá e era uma tranqüilidade. Tinham um quarto no segundo andar, em frente ao quarto de meu pai. Assim, ele não morava sozinho. Pelo contrário: era extremamente paparicado pelo casal, que lhe dera, de presente, dois “netos” muito fofinhos.

À mesa, praticamente só Carlos e o Sr. Viana (esse cara era o meu pai) conversavam. Ambos adoradores de política e, claro, de partidos diplomaticamente adversos. Nada mais natural: papai, do tipo patriarca familiar e Carlos, protético, do tipo classe média em ascensão... podem imaginar como a coisa se dava. O fato, na verdade, é que ambos se gostavam muito e a discussão era a pimenta das refeições. Coisas que amigos se dão o direito de ter.

Gloria era um amor de moça. Notei, logo que cheguei da primeira vez, em 1975, que ela estava toda sem graça comigo. Pude imaginar logo o porquê. Era evidente que ela era a dona da casa e eu chegando como filha, teria esse direito natural a meu favor. Assim, no primeiro dia, notei que ela não sabia muito como me tratar e também como tratar a direção dos afazeres da casa. Afinal, ela entrara ali como empregada e, embora tivesse se transformado em afilhada, tinha honras a prestar a essa estrangeira que chegava do Brasil, sabe-se lá se toda cheia de frescuras, com direitos de filha. Percebi isso logo na entrada e fiz questão de ir tratando das coisas como se ela jamais pudesse ter tido qualquer dengo em deixar o seu posto.

Assim, já no dia seguinte ao da chegada, procurei me colocar no lugar de ajudante, deixando claro que ela é que entendia da casa. Achei que assim estava de bom tamanho e ela logo entendeu. À tardinha me bandeei para a cozinha e fiz tudo para mantê-la em seu lugar de governanta. Eu era a filha, o dono era meu pai... e ela mantinha suas prerrogativas. No mesmo dia, logo de saída, nos tratamos por você e eu achei que a intimidade estava feita. Era você para cá, você para lá e estava tudo certo. Mal sabia eu...

Dias depois, acho que umas duas semanas, ela já mais chegada e confiante, me perguntou se podia saber uma coisa. Estava meio sem graça, mas notei que muito curiosa.

- Claro que sim!

- Por que você e vosso marido se tratam por “você?”

- Ora, porque temos intimidade... é assim lá no Brasil... e aqui?

- Intimidade, aqui, é tratarmos por “tu”...


Nos olhamos pasmas uma para outra por algum tempo... mas logo depois caímos numa gostosa gargalhada. E não conseguíamos parar. Afinal, eu a tratava por “você” dando-lhe intimidade e ela achava que eu a tratava por “você” para manter certa distância. Isto posto, não se atrevia a me tratar por “tu”... dali por diante, realmente, nos tornamos verdadeiras amigas, numa troca de “você” e de “tu”, agora propositais, só para fazer graça.

Mas o melhor foi mesmo a segunda história, que deixo para o final:

Voltemos às discussões políticas à mesa. Carlos era generoso no uso de uma palavra que, ao que me parecia, consideramos bem pesada. Por uma questão de delicadeza, para você saber qual é, trata-se de uma que é bem parecida com “carago”.

Pois então, nas discussões, ouvíamos com uma freqüência avassaladora:

- “Carago”, Sr. Viana, deixa estar que esses políticos, do seu jeito, vão colocar Portugal a perder.

Vale dizer que estávamos em 1975, ano da revolução dos cravos, mais especificamente em julho, poucos meses depois. Na televisão, mesas redondas para discussões políticas quase diárias incitavam meu pai a responder:

- E vós que não cansais de fazer mesas redondas com bestas quadradas...

- “Carago”, Sr. Viana, estamos a construir Portugal!


Meu ex me olhava com o rabo dos olhos. Um dia, depois do jantar, comentou comigo:

- Não saio de Portugal sem soltar um “car...” num jantar desses, só para descontrair.

E assim foi. Um dia desavisado, a troco não sei de que, ele soltou, em alto em bom som o tal “car...” só para se sentir “enturmado”.

Depois do jantar, no entanto, ouvi Carlos dizer que queria falar com ele em particular.

Mais tarde, no quarto, ele ria tanto que não conseguia contar para mim o que ocorrera. Depois de se acalmar, no entanto, me explicou:

- Carlos me chamou a atenção para não dizer a palavra “car...” na presença de mulheres, pois aqui em Portugal é um palavrão sem tamanho. Respondi que o ouvia falar todos os dias à mesa e não estava entendendo a reprimenda. Foi aí que ele me esclareceu:

- Não! O que falamos é “carago” e isso não é palavrão... esse aí que você usou é palavrão e dos bravos. “Carago” qualquer um pode dizer, mesmo uma mulher educada, quando tropeça na rua, por exemplo. “Ai, carago” é uma expressão muito comum. Uma exclamação. Qualquer um pode usar. Não há mal algum.

- Mas que diabos significa “carago”?

- É uma palavra que se solta, como exclamação ou indignação. Sentido mesmo, acho que não tem.


Como lingüista, para mim, essa expressão que, afinal, é uma gíria, me soou como um manjar dos deuses. Procurei saber a origem, mas não consegui saber de ninguém, entre todos que perguntei. Quem sabe, um dia eu descubra.

“Ai, carago!”... Será que ainda existe?

4 comentários:

Carmen disse...

Que intererssante, em Sintra ouvi muito a expressão"Du caraças".Coisa de portuga,carinhosamente falando tb.Bjs.

Camila disse...

Feliz páscoa atrasado,
Portugal tem suas belezas né?

Celina disse...

Carago!!! Se eu tivesse um passaporte português, eu já estava lá com toda a crise, hehehe! vou adotar carago, toda a vez que for ao supermercado, toda as vezes em que Dilma ou algum político aparecer dizendo alguma pérola... é querida, carago, definitivamente vai estar no meu vocabulário!

dade amorim disse...

Olá, Eulália. Gostei imenso de seu blog. Também tenho amor a Portugal, terra de meus bisavós, mas sempre querido por avós e pais, que me ensinaram a gostar da terra. Estive em várias cidades portuguesas, foi uma viagem maravilhosa.
Um beijo e seja bem-vinda.