sábado, 9 de abril de 2011

O GABONÊS



Cidade do Porto, norte de Portugal, junho, final da década de 90. A fila para pegar o material do Congresso e o crachá estava bem organizada e eu tinha chegado cedo, como sempre. Chegar antes para pegar as coisas com calma faz parte de mim. Atropelos de última hora são dispensáveis a não ser que tragam boas surpresas. Para um congresso, no entanto, ainda mais sendo meu dia de apresentação, imprevistos seriam dispensáveis.

Sentia-me ligeiramente desconfortável em meu vestido sem cinto. Só notei na hora de usá-lo e resolvi ir assim mesmo. Ficava bonito, mas a delicadeza do acessório me fazia falta. Mal sabia que isso seria um detalhe essencial a essa história...

Material nas mãos, crachá no peito, dei umas voltas pelas salas de exposição e voltei para o hotel. Minha apresentação seria à tarde. É ótimo apresentar o trabalho no primeiro dia. Tirada a tensão natural, fico mais livre para curtir melhor o resto da festa. E sendo um congresso internacional de Psicolinguistica, tudo prometia ser muito bom.

Troquei de roupa disposta a não usar mais aquele vestido. O cinto fazia falta. Voltei ao congresso.

Fiz minha apresentação e logo após me dirigi para a sala de trabalhos que apresentava estudos sobre desenvolvimento de processos cognitivos. E foi aí que tudo começou.

Sentei-me na primeira fila, atenta especialmente a uma das comunicações que prometia ser das melhores. E seria a primeira. Foi quando ele entrou, acompanhado de sua orientadora. Um gabonês de alto porte, com um sotaque francês lindo que só um africano em sua origem consegue ter: manso e baixo, de ritmo pausado e doce. Mas me concentrei no perfil acadêmico. De saída, no entanto, nosso palestrante cometeu o crime de desculpar-se por falar em francês e não em inglês. Não entendi. As duas línguas eram oficiais no congresso, além do português. No intervalo, quem sabe, seria uma boa deixa para iniciar uma aproximação amistosa e brincalhona, se seu trabalho me interessasse. Interessou. E muito. O que ele tinha a apresentar era mesmo algo de grande valor. Fiquei embevecida com os argumentos, com a segurança, com a singeleza, com a agudeza dos detalhes, com a inteligência, com as idéias apresentadas. Altíssimo nível. Eu precisava ver isso mais de perto. Assisti aos outros trabalhos da sessão e ele também. Sem dúvida a dele se destacou.

No intervalo, ele saiu às pressas, com sua orientadora, talvez, ambos, em busca de outros trabalhos. Eu me mantive na sala, acompanhando as outras apresentações, atenta aos meus interesses profissionais.

Terminada a sessão, saí em busca de um lanche. No fundo do corredor a porta do elevador aberta, ameaçava fechar-se. Corri e seus ocupantes, apenas dois passageiros, fizeram a gentileza de segurar a porta para mim. Entrei e agradeci. Fui surpreendida pela sorte: eram, justamente, ele e sua orientadora. Muita coincidência. Não sei por que, num impulso, sorri, talvez mais para mim mesma. Mas ele sorriu em troca. Não resisti. Soltei o chiste, no melhor francês que pude arranjar. Mesmo sendo minha segunda língua...

- Gostei muito de sua apresentação, mas teria uma crítica a fazer.

Senti que, imediatamente, seu olhar negro e profundo se embaçou. Por sentir-se desmerecido ou por estar ao lado de sua orientadora? Nunca saberei. Mas ele agüentou firme:

- Sim?

Sorri novamente:

- Como você pode pedir desculpas por falar a segunda língua mais linda do mundo? A minha é a primeira naturalmente...

O sorriso de ambos me acolheu. Aproveitei a deixa e perguntei se ele se incomodaria de tirar algumas dúvidas ou acrescentar algumas informações sobre sua pesquisa, em algum momento do congresso. Sua orientadora adiantou-se e disse que teriam imenso prazer e, se eu quisesse, poderia ser naquele momento mesmo. Descemos os três e procuramos uma sala. Desfiei meu rosário de questões, feliz da vida, por poder entrar num mundo de interesses comuns. Pouco depois, sua orientadora pediu para retirar-se pois estava atrasada para um compromisso. Ficamos sós e muito mais que apenas amigos ali mesmo. Durante todo o resto do congresso ficamos juntos, curtindo todos os sabores que um congresso e uma cidade pequena como o Porto pode oferecer, isto é, até as 22 horas da noite, pois, depois disso, tudo fechava. Então, nos escondíamos no único bar-restaurante numa ruela do centro da cidade, que nos garantia um jantar à portuguesa e um bom papo até a meia-noite, prazo em que a cidade, literalmente, virava abóbora.

Estávamos enlevados, sem dúvida, e só notei que ele também se sentia completamente envolvido, na despedida, no último dia. Estávamos abraçados, quietinhos, aconchegados e, naturalmente, já saudosos. Vi suas lágrimas escorrerem por sua face negra. E me lembro que muitas poucas vezes me senti tão enternecida por alguém quanto naquele momento. Foi quando ele se levantou e tirou, de uma pequena bolsa que costumava carregar, um embrulho com papel de presente. Uma lembrança para que eu não o esquecesse. Abri. Era um lindo, delicado e precioso cinto dourado. Ele me olhou e disse:

- Para combinar com aquele vestido que você usou no primeiro dia, na fila de inscrição.

Foi com essas palavras que ele revelou seu interesse por mim, muito antes de eu ter notado sua presença no congresso. Detalhes sutis e inesquecíveis nos passos de minha vida.

Eu não iria morar no Gabão e ele, tampouco, viveria no Brasil, mas foi com essa singela e delicada percepção que ele marcou sua presença em meu coração.

6 comentários:

pblower disse...

Amiga, que texto bonito! Lembro de nossas conversas sobre ele.

um beijão

Carmen disse...

Adorei!Sinto falta do "Final Feliz",culpa do meu romantismo incurável,mas é mesmo uma bela estória romântica.

Celina disse...

Caramba, você sabe contar em poucas palavras, uma linda estória de amor! E eu adoro o francês falados pelos africanos, tem uma melodia toda especial. Lindo, Eulália, lindo! Que bom ter a sorte de viver isso. bjs

Valéria Hinojosa disse...

Puxa, que encontro encantador. Adorei. Fiquei até imaginando como ele era. Por acaso você tem alguma foto? Não me deixe nessa curiosidade, não!Bjs

Camila disse...

- Para combinar com aquele vestido que você usou no primeiro dia, na fila de inscrição.

Bem sutil e criativo.

Eulalia disse...

e o mais bonito é que aconteceu exatamente assim, de verdade! é tão bonito que parece ficção, né?