sábado, 31 de julho de 2010

O SEGREDO


Entender a lógica de um internato, só vivendo. Não tem outro jeito. É mesmo como nos filmes, cheio de artimanhas, travessuras e segredos. Não tem a fantasia dos filmes, mas guarda um encantamento próprio. Quem soube ser “interno” sabe disso. Mas é preciso “ter sabido” ser interno. Senão, era mesmo um suplício sem fim. Digo isso em nome de muitas de minhas colegas.

Percebi bem cedo que saber adaptar-se é uma arte e uma imperdível opção de aprendizagem. Sou grata à vida também por isso.

Pois então: fui interna. Interna por exatos dez anos, segundo consta na regulamentação da separação de meus pais, declarada e consumada sob o martelo de um juiz. A menina será internada, como deseja o pai, num colégio à escolha do casal, para que tenha uma educação européia esmerada. Não tenho isso registrado, tim-tim por tim-tim, mas era mais ou menos esse o rumo da prosa, segundo soube muitos anos depois. Ter educação européia esmerada, mas num colégio brasileiro, entenda-se, de passagem, já que minha mãe não admitiria minha saída do Brasil. Então foi assim mesmo, um colégio de freiras italianas do mais alto gabarito, na época. Agora não sei como está, mas sei que saí de lá, pronta para ser uma princesa, aos dezoito anos de idade. Uma princesa dessas de contos de fadas: esmeradíssima na etiqueta, bordadeira, pianista, esportista, prendadíssima. Com todos esses superlativos. Dona de casa, com curso de preparação para o casamento, neste caso, PhD completa.

Não saiu como o planejado, mas bem que tentaram... e tentaram assiduamente, honra seja feita. Aqui cabe um sorriso. De graça, de condescendência e de espírito indomável, mas cabe. Um sorriso também benevolente, pela crença que elas tinham de que poderia ser feito. E até foi, sob muitos aspectos. Prendas da vida.

Falar sobre aquele internato dá panos para mangas... e muitas mangas... talvez vestidos inteiros... mil memórias rendem a possibilidade de muitos contos que, com certeza, nascerão. Lembranças de internato, de dez anos em que aquela casa foi, literalmente, a minha casa.

Escolho apresentá-lo, desta vez, em uma de suas facetas mais interessantes – a criação de artimanhas e suspenses. Aqui, é preciso uma pausa para incluir você no clima do que é, ou melhor, do que era um internato, sob os aspectos indispensáveis para entender a trama dessa aventura.

Na época a que quero me referir, década de sessenta, eu pertencia à classe das maiores que era como se intitulava o grupo que pertencia ao atual nível da escola média, antes denominado clássico ou científico. Os grupos eram sempre divididos em classes, de acordo com o ano escolar, cada uma tendo uma mestre e uma assistente, todas freiras, naturalmente.

Conforme a gente ia crescendo, recebia os chamados “privilégios”. Pode imaginar, então, que as maiores tinham os mais altos privilégios do colégio. E há, também, privilégios que vão sendo adquiridos, de acordo com muito esforço e conquistas. Só isso daria uma novela a ser contada, cheia de detalhes, alguns rústicos, outros interessantes. O que vale dizer, aqui, é que as maiores tinham muitos privilégios, em relação às demais.

Esse “muitos” que, ao conhecer, você vai até achar graça, significavam tesouros para nós: mudar o estabelecido, numa sociedade fechadíssima, é muito difícil. Assim, o que parecerá uma brincadeira para você, corresponde a honrarias de deuses para quem vivia lá dentro. Por exemplo: as maiores podiam deitar-se às 21 horas enquanto o resto do colégio dormia entre 19.30 e 20.30, dependendo da idade. Não precisavam andar em fila - visualize um colégio enorme, que mais parece um mosteiro, com mais de cem alunas internas, todas se deslocando em filas por todos os cantos: da sala de estudos para a capela, da capela para o refeitório, do refeitório para o recreio... tudo em fila, o tempo todo, por ordem de tamanho, no mais absoluto silêncio. Pois então: as maiores podiam se deslocar sem fazer fila! Em grupo, em silêncio, mas sem fila! Você não pode imaginar o privilégio que isso significava. Engraçado? Só vivendo.

Ah... um dos melhores: as maiores não precisavam descer para a capela todos os dias, às 17.30 para rezarem o terço e as ladainhas. Isso era considerado um quitute dos deuses. Como a aula de trabalhos manuais tinha de caber em algum horário do dia e as maiores tinham muitas atividades a mais, a aula de bordados e tapeçarias era das 17 às 17.50 e podíamos rezar o terço e as ladainhas dentro da sala de aula, com nossos enxovais se estendendo pelos joelhos, olhos e mãos trabalhando no linho, enquanto nossos lábios moviam-se automaticamente no refrão das preces. Parece engraçado para você? É porque você nunca precisou ter a obrigação de ficar de joelhos na primeira dezena do terço e nem nas ladainhas. Podíamos fazer tudo isso bordando, sem deixar os joelhos empelotados, cheios de cabelos encravados, que é como ficam, com essa postura todos os dias. Bem, é só para dar uns exemplos clássicos. Para você, talvez até grotescos... para nós, vitais.

Mas há um detalhe importante e fundamental para a nossa história: as maiores tinham dormitórios especiais. Todas as turmas tinham dormitórios que mais pareciam enfermarias: dez a vinte camas, dependendo do número de internas por turma, já que éramos divididas por etapa escolar. As maiores dormiam em quartos de três camas, o que dava ares de algo muito especial. Não precisávamos ter a impressão de que dormíamos em bando. No meu quarto, especificamente, éramos apenas duas, pois a terceira cama era da mestre de classe. Ninguém queria dormir ali, claro, junto com a freira. Mas quem era antiga no colégio sabia que era o melhor quarto: a freira só chegava em torno das 22 horas para dormir (nós nos recolhíamos às 21 horas) e saía às 5 horas para a reza matinal. Em outros termos, quem ficasse no quarto da freira tinha apenas uma companheira de quarto, o que era mais que um privilégio, coisa de hotel cinco estrelas. Mas é claro que ninguém sabia disso e, no começo do ano, duas espertinhas, (durante dois anos seguidos, eu e Carmen Lucia) nos “sacrificávamos” e escolhíamos o quarto da irmã que era a mestre de classe.

É bom que você saiba o que era uma mestre de classe. Era a freira que se responsabilizava pela turma perante a superiora do colégio. Como as maiores davam menos trabalho, havia uma única mestre de classe para todo o ensino médio (clássico, científico e normalistas, no vocabulário da época), enquanto que todas as outras turmas, das médias e menores, tinham uma mestra de classe por turma. Vale um detalhe: usávamos o termo “freira”, apenas entre nós, pois era considerado desrespeitoso nos dirigirmos a elas com esse jargão. Deveriam ser chamadas pelo título de “irmãs”. O termo freira era usado em momentos descontraídos entre nós ou, também, não amistosos: a “freira” vem aí, como alerta, por exemplo, ou a “freira” me deu nota baixa. Colocando você a par desses detalhes, vamos aos fatos.

Imagine você uma adolescente, namorando, interna. Pode imaginar o que é namorar sendo interna? Um namoro de finais de semana, sem chance para telefonemas no decorrer dos dias, com aquela vida de reclusão em que se vive no internato. Isto é o que era. Mas não éramos o único casal vivendo aos pedaços. Eu e mais umas tantas colegas, inclusive minha colega de quarto. Na ocasião, tínhamos como diretora uma freira italiana, dessas avançadinhas para a época.

Podemos considerar avançadinha uma superiora que, nos finais da década de 60, dá ordem às freiras para que não mais nos acordem aos gritos da Ave Maria, como era o costume, até então, mas com música clássica de fundo, que vai aumentando o volume aos poucos, até que uma freira entre no quarto, dê bom dia em tom compatível com um ouvido que acaba de despertar e, só então, entoe as preces. É só um exemplo, entre outros que poderão ser contados em outras oportunidades. Para nós, ela era um avanço. Parecia que o quartel tinha tomado outro rumo. Para os anais de hoje, continuaria sendo uma clausura, mas, pelo que eu já tinha passado em anos anteriores, era o paraíso.

No início de junho, as maiores procuraram a diretora para pedirem uma saída especial na tarde do dia dos namorados, desde que a família estivesse de acordo. Concedido! Inédito! Esta freira era mesmo um avanço. Se tinham de se casar, que formassem um santo lar, sob a proteção e conselhos perenes dessa ilustre guardiã no futuro. Muito esperta aquela italiana...

Bem, no dia 10 de junho a diretora viajou para São Paulo e se esqueceu de avisar isso à sub-diretora. Se esqueceu ou a sub-diretora disse que esqueceu. Ocorre que ela acabou dizendo que, se nós saíssemos, as meninas do último ano do fundamental (as médias) teriam o mesmo direito e ela suspendeu a saída de todo mundo. Aí tinha coisa... e, é claro, logo descobrimos. As meninas do último ano do fundamental (quarta série ginasial da época) descobriram e queriam o mesmo privilégio. Ora bolas, por que não tiveram a mesma idéia e não pediram isso à diretora antes de sua viagem? Não era problema nosso e queríamos a palavra mantida.

E era mais do que uma palavra a ser mantida para nós e explico por quê: ocorre que sempre houve uma disputa entre as maiores e o último ano do ensino fundamental. Eu tinha passado por isso e também tinha participado da indignação adolescente do “por que elas podem e nós não”. Afinal, eu tinha a experiência de ter percorrido todos os anos do colégio, com todas as características dos dez anos de reclusão e sabia muito bem o que estava acontecendo. E essa disputa era, na verdade, alimentada, e muito, pelas mestras de classe correspondentes, cujos nomes não publico por simples delicadeza: estas duas mestras de classe estavam longe de um convívio amoroso. Quanto mais desentendimentos houvesse entre as adolescentes dos dois grupos, mais cada uma tomava as dores de suas “filhas”. As duas alimentavam esse mútuo rancor através de suas alunas e nós, que bem intuíamos isso, nos protegeríamos por trás dessa disputa constante para resolvermos a questão, se fosse preciso. E foi o que aconteceu: nossa mestra tomou as nossas dores.

Encaramos o desafio como uma questão de honra. Na tarde do dia seguinte, tínhamos um encontro marcado com nossos namorados e eles sabiam disso. Os pais também. Mas não houve jeito. A diretora só voltaria na manhã do dia 12 e seria preciso esperar. Ninguém dormiu direito, é claro, tanto nós quanto as meninas do ano anterior, que exigiam os mesmos direitos que nós, as maiores, havíamos conquistado! E, com certeza, as mestras tampouco pegaram no sono.

A diretora voltou, na manhã do dia seguinte, e encontrou o circo armado. Muito complicado, pois a mestra das meninas da quarta série, além de mestre das adolescentes da última série (do atual ensino fundamental), era também coordenadora geral do colégio. Com certeza colocou todos os seus galardões na arena. Enfim, ninguém saiu. Briga de cachorro grande. A diretora, para consertar a história que tinha virado uma briga política interna entre as “irmãs” da comunidade e, sem saber o que fazer com a palavra empenhada a nós, alunas maiores, nossos namorados e pais, se saiu com uma de mestre: convidou todos os nossos namorados para irem ao colégio, armou um lanche regado a vinho e nos brindou com uma sala toda enfeitada com corações, flores, etc. Levou apenas algumas horas para organizar toda a festa, só para as maiores, naturalmente, pois as turmas não se misturam.

Cabe observar que, sob este aspecto, se eu não tivesse meus próprios princípios naturais internos, teria incorporado a filosofia da divisão por castas. Vivi dentro dela, moldada pela divisão de “classes” imposta pela organização do colégio, mas, felizmente, não as incorporei, em minhas escolhas futuras, na vida real. Sim, vida real, pois aquela não poderia ser considerada nesse nível. O internato é um mundo à parte e só quando saímos dele é que nos deparamos com as cores vivas do bulício da existência humana.

Mas voltemos à história: as outras alunas ficaram chupando o dedo, pois nem que quisessem daria tempo para avisarem namorados, pedirem licença para as famílias e toda a demais burocracia com que também aprendi a conviver desde cedo. Uma lição à parte, um estágio para os futuros enfrentamentos com as burocracias do poder público. Algo mais ou menos no mesmo estilo. Enfim, passamos uma tarde festiva e agradável, só com nossos namorados, sem os olhos espionantes das freiras, em explícito procedimento de confiança em “suas meninas” e, por isso mesmo, não nos arriscamos a nenhum beijinho. Embora soubéssemos o quanto éramos postas à prova no que se refere a princípios de confiança e lealdade, lá no fundo, como desconfiadas adolescentes, não sabíamos se a porta poderia ser aberta a qualquer momento. Assim, mesmo o que considerávamos natural poderia virar um escândalo disciplinar... melhor não arriscar.

Vimos nossos amores, mas, é claro, não foi como planejávamos. Saimos vitoriosas naquela tarde, mas não foi uma vitória completa. Ademais, as nossas colegas, por pura inveja, segundo nossa maneira de ver, tinham estragado nosso privilégio, o que merecia uma revanche.

Mas estou me alongando demais. Conto a revanche na próxima semana e, com ela, o segredo.

Um comentário:

Celina disse...

Menina, que suspense! Não fui interna, mas estudei em colégio de freiras e tenho uma leve noção do que se passa. bjs