sábado, 17 de julho de 2010

MEU CORAÇÃO CARIOCA


Sou uma carioca nascida em São Paulo. Amo São Paulo. Por ser portentosa, magnífica, imponente e, principalmente, por ser o ninho de amigos de vida. Não vivi em Sampa, não voltei em nenhum momento da vida, a não ser para visitar ou, eventualmente, trabalhar, através de congressos e cursos. Assim, embora haja motivos que me impulsionem com alegria para lá, no fundo, apenas tenho a referência de minha certidão de nascimento e a minha mais pura admiração.

O fato é que a vida me fez carioca: ando como carioca, falo como carioca, transito como carioca, me visto como carioca, trabalho como carioca - e carioca trabalha muito, é folclore pensar o contrário.

O Rio é uma cidade pronta para as mais diversas análises. Mas é difícil falar dela, sem cair no lugar comum. Por isso, talvez, tenha adiado tanto falar sobre a cidade do meu coração.

Acho que ser carioca é ser, antes de tudo, um forte. É ir ao trabalho, todos os dias, tendo à volta tanta beleza e atrativos que até dá dó. Creio que é mais difícil ser um bom trabalhador aqui do que na maioria das cidades do mundo com todas essas tentações de cidade linda e cheia de graça. Mas trabalhamos. E muito. Isso nos dá o direito de sairmos do trabalho correndo para um chopinho ou uma água de coco à beira-mar.

Moro num canto de Copa, a três quadras da praia. Isso é um privilégio: aproveito o silêncio a uma quadra do bulício e convivo com beija-flores vindos da montanha ao lado, para curiosarem em minha janela. Agora mesmo passou um por aqui.

Caminhar para a praia é curtir um pedaço especial dessa cidade amada. O flanelinha da rua é conhecido por todos. Não tem casa, mora por aqui mesmo. Seria na rua, não fosse um dos moradores ceder seu carro para que ele tenha onde dormir e guardar suas poucas roupas no porta-malas. Toma banho todos os dias e se barbeia no banheiro dos empregados do prédio ao lado. Conhece a todos nós por apelidos, tratando-nos com toda a atenção. Quando passo pela rua, logo reconheço sua voz:

- Bom dia, minha princesa...

Tem um apelido diferente para cada um, todos gentis e portentosos. Talvez um sorriso diferente também. Sua gentileza nos acolhe e parece estar bem com a nossa acolhida. Um dia, perguntei-lhe o que achava da vida e ele me respondeu:

- Na verdade, sabe, acho que tenho tudo de que preciso.

Estar no Rio é expor-se ao inusitado.

Quando passo pela farmácia, vez por outra, escuto:

- Bom dia, professora!

O mesmo acontece com a padaria. Até hoje não sei como eles descobriram que eu era professora. Uma cidade grande, muitas vezes, com pinta de cidade pequena. Coisas de bairro, embora Copacabana seja cosmopolita e com ares de estrangeirismos...

As praças por aqui são geralmente sujas, algumas delas não cheiram bem. Muitos falam da falta de higiene dos chamados mendigos, mas poucos lembram que não há banheiros públicos gratuitos, nem chuveiros, nem rios ou lagos onde possam banhar-se. Temos muitos moradores de rua, principalmente na zona sul. É onde eles conseguem sustento, vendendo frutas, balas e trecos ou fazendo malabarismos circenses nos sinais de trânsito. Alguns roubam, mas muitos não farão isso, se você for delicado ou delicada com eles. Tente. Ofereça um lanche. Você sempre terá algum no bolso para ajudá-los a se sentirem gente. Não estou falando de dinheiro, estou falando de convidá-los a tomarem um suco, mesmo que você esteja com alguma pressa. Se você encontrasse um amigo na rua, não pararia por alguns momentos? Pense nisso, pare um pouco, leve seu suposto ladrão para um minuto de convívio. Converse com ele. Provavelmente, se surpreenderá. Faço isso, sempre que posso, enquanto não vejo a ordem pública fazer algo que realmente os ajude e lhes dê o apoio que necessitam para terem uma vida e uma educação decentes. E você nem imagina que lições de vida poderá ter com isso...

O Rio é uma cidade perigosa como outra qualquer, mas a propaganda a faz parecer tremendamente pior. Já cansei de caminhar pelo calçadão de Copacabana, às onze horas da noite, voltando a pé para casa. Chego de carro de madrugada sem as preocupações do que dizem por aí. Não sou invisível, mas nunca me aconteceu nadica de nada. Não me meto em cantos desconhecidos. Os malucos é que fazem isso, pedindo para saírem nos jornais do dia seguinte. Talvez não saibam ser cariocas. Não sei. Acho que isso acontece em qualquer cidade grande. Se você não é carioca não pode ignorar a cultura do lugar ou agir como se estivesse morando em sua própria cidade. Cada uma tem seus costumes e é preciso estar atento a isso. Desmerecer esses cuidados é mancada, na certa, em qualquer lugar do mundo.

Estar no Rio é estar na praia e de repente querer estar no mato. A distância é mínima e você pode fazer isso num passe de mágica. Se desejar, conseguirá trocar os 38 graus da praia pelo fresquinho do Alto da Boa Vista, sem sair de dentro da própria cidade. Em meia hora, talvez, você estará caminhando pelas trilhas da Floresta da Tijuca. Puro luxo.

Ser carioca é chegar à praia ou a muitos dos lugares comuns com a roupa que quiser. Tanto faz ser com a bolsinha da moda a tiracolo e salto alto, quanto com uma bermuda esfarrapada. Ninguém nota, ninguém sequer presta atenção. A regra é cada um fazer como se sente melhor.

Morar no Rio é andar pela zona sul ouvindo mil línguas distintas, muitas não identificáveis, nessa cidade de milhares de turistas de todas as cores e tons. É ir ao subúrbio e encontrar uma cidade que você nunca viu, reconhecer a pobreza, mas também o aconchego de gente humilde e cheia de luz.

Ser carioca é conhecer os caminhos da camaradagem, o sorriso fácil, combinando com manhãs e tardes ensolaradas. É conversar com quem você não conhece, como se convivessem há séculos, no mínimo tempo contido entre o primeiro e o nono andar de um prédio qualquer.

Blusas sem mangas, bermudas, paletós não vestidos pendurados nos ombros, ar condicionado a mil nos bancos e nos taxis. Contraponto.

Ser carioca é não precisar pedir cidadania. É ser muita coisa e, ao mesmo tempo, quase nada. É deixar que o Rio possua você, sem precisar fazer força para isso. É ir ficando e deixar que o milagre se faça por si mesmo.

Foi assim que aconteceu comigo e, quando me dei conta, meu coração já falava com sotaque puxado a ‘ch’.

6 comentários:

Anônimo disse...

Diz a lenda que perguntaram a Tom Jobim sobre morar em Nova Iorque, ao que ele disse: "É bom, mas é uma m...". Já no Rio: "é uma m..., mas é muito bom!"

Eulalia disse...

Obrigada, "anônimo". Adorei seu comentário! Minha cidadania carioca sorriu.

João Carlos disse...

É o intimista comentário mais carioca que dos próprios cariocas. Parabéns!!!!

pblower disse...

Amiga,

Que texto lindo. Sou uma carioca que passou toda a vida em Nikity, mas qu sabe e entende as coisas dessa cidade.
... que é maravilhosa!

Celina disse...

Que declaração de amor! Eu acho o Rio uma cidade ímpar, única! Já vi muitas e ainda é uma das mais lindas! Fico imaginando sem miséria, sem tiros e sem medo. Seria mesmo o paraíso!
bjs

Eulalia disse...

Oi, Celina! Obrigada pelo comentário, mas... aí seria demais! Não caberia todo mundo aqui! (rsrs)