sábado, 3 de julho de 2010

TRÂNSITO CARIOCA


Não conheço um trânsito igual ou parecido com o do Rio. Pode haver pior, melhor, mais engraçado, mais certinho, mais bagunçado, mas o do Rio, para mim, é único.

Prefiro definir a diferença entre o nosso trânsito e os demais que conheço dizendo que, nos outros lugares, sinto que as pessoas se vestem e saem de carro. No Rio, as pessoas vestem o carro e saem. E com esta “pele” de metal, nos sentimos tão em casa como no próprio corpo. Um corpo carioca, cheio de gingas, meneios e mandingas, um doce balanço a caminho do mar de avenidas, ruas, trilhas e estradas que compõem nossa cidade e seus arredores.

Ser motorista carioca, como o próprio povo, é um estado de espírito, não apenas ter uma carteira de motorista aprovada. O exame clínico completo, incluindo a minuciosidade do exame de vista está longe da aprovação concedida pelos golpes de vista, visão consentida pela cidadania carioca. Isso nos liberta, ao mesmo tempo que confunde os menos avisados, denominando-nos, às vezes, de irresponsáveis e inconseqüentes. Digo isso por ter vários amigos de outros Estados me visitando de vez em quando e sendo brindados com passeios para lá e para cá, no meio do bulício citadino.

Andei pensando nisso, vez por outra, pois faço parte da possível tropa de inconsequentes e irresponsáveis, com licença oficial tirada e sempre renovada com o carimbo dos Órgãos Oficiais do Estado. Mas deduzo com segurança que, se fôssemos realmente inconseqüentes e irresponsáveis, nossas ruas estariam atoladas de batidas, trombadas, desastres, atropelamentos. Ando muito de carro e, confesso, é muito raro eu ver acidentes por onde ando. O que vejo é uma dança coordenada de meneios e mesuras, onde se misturam delicadezas e xingamentos, como uma troca de sentimentos que se somam e se completam em nosso transitar cotidiano.

Decididamente, a maioria de nós é do time que veste o carro e sai. E assim como pedestres dão passagem a alguém com quem quase trombam na rua, damos também passagem ao carro do lado que atravessa a nossa frente para pegar a rua do outro lado, como ocorre com os pedestres, em passadas consentidas, no meio da calçada.
Saber entender a linguagem dos motoristas é de vital importância para o bom desempenho desse bailado não ensaiado, mas rigorosamente previsível. Se um taxi (principalmente os taxis) piscam um pouco ao lado e atrás de você pode significar duas coisas: pedir passagem ou dar passagem. Pode contar que, se você está ligeiramente à frente, há espaço e ele está um pouco ao lado, dá uma freadinha quase imperceptível e pisca, o motorista provavelmente estará dizendo:

- Vai, vai.

Se você não for, não faz parte integrante do corpo de motoristas atentos e cotidianos, perdendo a oportunidade de usufruir das delicadezas do ritual. Mas se ele estiver só um pouquinho de nada atrás, mas quase emparelhado com você, não dá a tal quase imperceptível paradinha e pisca, dê passagem, pois ele está realmente com pressa, mesmo que seja psicológica, e será a sua vez de bancar o cavalheiro (dama), correndo o risco, se fizer o contrário, de levar uma fechada mais adiante, acompanhada de um bom xingamento pela falta de delicadeza.

Se um ônibus funga às suas costas, não tenha dúvidas: o motorista, que não pode usufruir do beneplácito da buzina, se sentiu ultrajado por alguma barbeiragem, diga-se, fechada não consentida que você lhe deu lá atrás. É melhor não ficar brigando, pois, já que foi você que errou, é de bom tom resgatar-se da falha deixando que ele passe a sua frente, e, é lógico, se você não é de briga, dê-lhe o direito de devolver a fechada. Se você não tem alma para fazer isso, então, é melhor dar uma boa arrancada e se mandar para bem longe, pois ele vai te perseguir, vai sim. Não se pode ser indelicado com um monstro desses, ora vejam só. E, se você é um carioca de bom coração, pense um pouquinho: esses caras ralam prá caramba, tendo de fazer um monte de idas e vindas por dia, surfando nesse transito entupido o dia inteiro para conseguirem o seu pão. Ganham uma miséria. Sejamos mais condencendentes com eles. Se for verão, então, a maioria deles passa o dia inteiro pingando de suor, para cima, para baixo, num mito de Sísifo sem fim. Há de se levar isso em consideração.

Por falar em ônibus é rigorosamente proibido levar a sério suas setas de sinalização. Sinalização de ônibus não pode ser levada em conta em nossa cidade! Se o pisca-pisca está para a direita, não significa que ele vá manter-se encostado na pista não. Ele pode virar à esquerda a qualquer momento, desde que haja um tráfego esquisito à frente. O pisca-pisca à esquerda, na grande maioria das vezes, também não faz sentido ou ele apenas quer manter os mais medrosos que o seguem nos seus lugares, alimentando, assim, a possibilidade de uma driblada para a esquerda a qualquer momento. É fácil você perceber, no entanto, se esse pisca-pisca está valendo ou não. Embique o carro como quem vai avançar. Se ele mantiver a linha reta, o pisca-pisca está ali só para enfeite. Siga em frente e ultrapasse, mas sempre alerta, claro. Deduz-se que pisca-pisca de ônibus é mesmo uma enganação. Não o considere. Siga mais sua acuidade, sua carioquice e mantenha um pouquinho mais de atenção, ao estar ao lado deles. Um amigo me alertou que pisca-pisca de ônibus serve mais para eles usarem em caso de acidente. Já viu algum ônibus batido sem o pisca-pisca ligado, justamente, na direção da batida, como a dizer que ele tinha avisado e você é que avançou perigosamente? Qualquer perito sabe disso, mas, é claro, malandragem é malandragem. Enfim, com o devido cuidado e sabendo das manobras, esses monstros não são tão perigosos quanto parecem. Pelo contrário, escondem gentilezas inusitadas. Sair de minha rua e pegar a Av. Princesa Isabel é deparar-me com eles, diretamente, na curva da Filipe de Oliveira. Quando o trânsito está para lá de ruim, quase sempre, são eles que dão uma freadinha amiga, numa hora de aperto, permitindo que eu faça uma manobra mais avançadinha. Não são os carros, não são as vans, não são os caminhões. São mesmo os ônibus os donos dessa gentileza. Ah, se isso acontece com você e se você é carioca, com certeza, já sabe: é de mau tom, terrível mau tom não dar uma acenada em agradecimento, mesmo que você esteja com o vidro fechado por causa do ar condicionado. Abri-lo e colocar a mão como polegar para cima é alta etiqueta que não deve ser esquecida jamais por um carioca da gema ou mesmo de coração, como eu.

Ah, motoristas homens e mulheres são assexuados no que se refere a educação e etiquetas. Antigamente, os homens deixavam que nós, mulheres, passássemos à frente, saíssemos das garagens, nos davam prioridade nos estacionamentos. Isso acabou. Todos somos iguais perante nossos automotivos. Mas isso é bom. Só acho que, em compensação, deveríamos ser mais respeitadas, já que somos “iguais”. As mulheres, no entanto, continuam sendo discriminadas no quesito saber dirigir bem. E dirigem! Ainda fico um pouco constrangida quando vou estacionar em vaga pequena e ouço aquele gracejo chato: “não vai dar não”. Ou, então, simplesmente param e ficam contemplando a manobra. Cheguei à conclusão de que o melhor é ignorar, fingir que não ouvi ou vi e fazer a manobra como se nada estivesse acontecendo à volta. Afinal, vaga não se encontra sobrando por aí. Aconselho às cariocas fazerem o mesmo. Não desprezem sua auto-estima. Para mim, no entanto, quando entro numa dessas, estaciono e ouço outro gracejo: “é, mandou bem”, longe de ser um elogio, me chateia um pouco. Com certeza, esses “fofos” não falariam nada se fosse um macho que estivesse na direção... mas nada é perfeito e os cariocas não poderiam fugir á regra, é claro. O melhor é tentar aceitar com bom humor, se puder, e seguir em frente, com cara de parede, como se nada tivesse acontecido. Mas isso acho que não é quesito carioca... esse item já vi em quase todos os Estados que visitei.

Não é muito comum deixar que quem está saindo da garagem tenha a vez. Parar para alguém entrar na rua não é comum e não é considerado como indelicadeza nem por quem está na rua, nem por quem está querendo entrar no trânsito. Muitas vezes, estamos mesmo com pressa, outras, nem percebemos. Isto porque, como o nosso trânsito exige muita concentração para não perder o passo da contradança, quem está na calçada não faz parte do perímetro de nossas atenções. Aliás, é bom que os pedestres saibam disso. Vez por outra, no entanto, essa gentileza ocorre e é rigorosamente de praxe um agradecimento especial por parte do motorista (ou do pedestre) que está ganhando as ruas. Como num passe de samba, ter essa licença equivale a dar a volta na bandeira da Escola e não se faz isso sem a mesura própria de um mestre-sala. Se você é carioca, sorria, meneie com a mão e, principalmente, ganhe a rua com rapidez para não atrasar mais quem lhe fez essa delicadeza.

Colocar a mão para fora do carro, juntar e afastar as pontas dos dedos várias vezes e rapidamente, é um aviso ao carro de trás de que ele manteve os faróis acesos, depois que saiu de um túnel. Essa tem sido uma delicadeza um pouco mais rara atualmente, por causa do ar condicionado. Isso era usual, já que temos tantos túneis. Mas ainda se vê um ou outro motorista abrir o vidro para fazer o sinal de pisca-pisca com as mãos. Tal esforço exige do motorista de trás um piscar de faróis em agradecimento. Não fazê-lo é uma tremenda grosseria. Aliás, muitos pedestres também fazem o mesmo sinal para os motoristas, quando os vêem com os faróis ligados. Essa gentileza é muito importante para nós, pois é comum estacionarmos sem nos darmos conta disso e nos custa uma bateria descarregada com mais freqüência do que você pode imaginar.

Se algum motorista, em algum sinal, buzina “tan taran tan”, provavelmente, encontrará um outro, também de bom humor, que responderá “tan tan”. Não é tão incomum o motorista que respondeu iniciar um outro “tan taran tan”. Se o fizer, é de praxe que o primeiro responda “tan tan”. É uma carioquice e, geralmente, a coisa pára por aí. É apenas um cumprimento de dois desconhecidos que, naquele emaranhado de carros aguardando o sinal, jamais se descobrirão um ao outro. Mas não é isso que importa e, sim, o espírito carioca em si, uma graça, um passo de samba perdido no bulício das ruas. Esse gracejo tem-se tornado mais raro, provavelmente, por causa do sonoro já tão poluído que nos invade. Quanto menos, melhor. Mas, vez por outra, você ainda encontra. Não se irrite. Leve em conta, como resquício do nosso espírito brincalhão.

Xingamentos são permitidos. Com certeza, você infringiu alguma regra da lista de barbeiragens consentidas. O melhor é ouvir com humildade. Faz parte do show. Pode ser, também, que o barbeiro seja o próprio xingador. Nesse caso, ele está tão estressado que o melhor é deixar passar, senão, quem perde o bom humor é você.

Motocicletas são, de modo geral, bem-vindas. Não fuçam, não trombam, não perturbam. Pelo menos, nunca as senti assim. Nasceram com o objetivo de chegarem ao destino antes de nós, nos trânsitos engarrafados. Leve isso em consideração e, se você se sente mesmo irritado ou irritada ao ver o bailado ao lado ou à frente de seu carro, lembre-se de que não estão fazendo concorrência com você. Na verdade, seguem apenas sua própria natureza. Não costumam agredir, pelo contrário, apenas existem. São percebidas principalmente nos sinais fechados. Nestes casos, vem furando ou pedindo passagem. Costumo sorrir quando eu mesma faço ou vejo algum motorista fazer o favorzinho de dar uma chegadinha para o lado ou um avancinho de nada para que elas possam passar e ficarem bem lá na frente, para saírem desabaladas mal abre o sinal. Cordialidade bem carioca. E vejo isso com freqüência.

Algumas avenidas com muitas pistas e maior velocidade permitem finos, furos e ultrapassagem pelos dois lados, não apenas pela esquerda, como manda o figurino. Até agora não entendi como dá tão certo. Acho que é porque nosso trânsito exige uma atenção redobrada, uma espécie de intuição ou instinto sobre o que seu companheiro pretende fazer. Já estamos acostumados a isso. E dá tudo certinho. Ir para a Barra, atravessar a Ponte Rio-Niterói, o Aterro do Flamengo é dar-se uma oportunidade de conferir bons exemplos disso.

Já notei que a pista mais rápida, na maioria das vezes, não é a da esquerda, ao contrário do que reza a lógica que aprendemos nas escolas de direção. Em certas ruas, os que já estão habituados já sabem. Na Pinheiro Machado, por exemplo, é sempre a da direita, pode contar com isso. Passei por ela todos os dias durante quase 15 anos. Até hoje a uso com freqüência e é sempre assim. Pode contar: vá pela pista da direita. Essa mesmo, a dos ônibus. Ainda não entendi por que, mas faz uma diferença perceptível. Na Barata Ribeiro, como são quatro pistas, pegue a segunda da direita. Essa mesmo, a que serve para os ônibus passarem uns pelos outros. Não dá outra. É muito raro não ser assim. Havia um tempo em que não era permitido andar por ali, mas agora já pode, na maioria dos trechos como, por exemplo, na entrada da Figueiredo de Magalhães.

Não há nada demais em estar em um lado da pista e ir pegando o outro lado, furando os carros, cortando um aqui, outro ali. Isso feito com a ginga carioca bem medida, faz parte do balé e é até aprovado pelos motoristas em volta, com piscadinhas aqui, acenos ali. Tudo certo.

Os finos são sempre permitidos, desde que não coloque em risco os espelhinhos retrovisores externos dos outros carros.

Haverá, com certeza, mil outros detalhes que minha observação, embora feminina, não conseguiu captar. Mas, no geral, acho que trânsito carioca é isso, pelo menos, sob o meu olhar embevecido e apaixonado por essa cidade amada, cheia de dengos e detalhes. Uma cidade que vale um conto à parte. Quem sabe, um dia escrevo.

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