sábado, 10 de julho de 2010

O MALA


Havia uma urgência em dar espaço ao coração. Nada acontecia. Parece que há fases na vida da gente em que os amores simplesmente desaparecem. Pois então... era isso. Um dos que me apareceu, no entanto, se tornou um desafio à descrição. Caiu de um site de relacionamento que eu, como curiosa, havia entrado para ver como funcionava, dada a insistência quase irritante de amigos mais chegados:

- Você se nega a experiências.

Ok, então, vamos lá. Foi fácil, foi rápido, foi interessante e, depois de algum tempo, me arrisquei a conhecê-lo, de fato. Cinco dias, não ininterruptos, naturalmente, pois eu não teria agüentado tanto. Mas foram dias de convívio que trouxeram pérolas de experiência.

Nos encontramos pela primeira vez, na saída do metrô. O cavalheiro (ou cavaleiro?), de saída, fez a gentileza de me fazer esperar por 50 minutos, embora eu o tivesse tranqüilizado a respeito da minha pontualidade britânica (homens não gostam de esperar, mas se esquecem que mulheres também não). Após suar em bicas em dia de intenso calor carioca, sentada na praça em frente, pois não havia outro lugar onde ficar, me apareceu a prenda. Estávamos em torno de pouco menos de 11 horas da manhã, com encontro marcado para as 10. Após dizer-se encantado com a minha aparência (que bom!), começou o meu suplício. O homem não parava de falar. Mesmo! Um assunto depois do outro, como se tivesse "engolido uma agulha de vitrola", como se dizia antigamente. Esta foi a primeira impressão que tive, numa caminhada sugerida até a Avenida Atlântica. Poderia ser nervosismo. Dei o desconto. Sentamos num desses bancos do calçadão e o homem emendando um assunto no outro, muitas vezes pegando o último fio para pular para outra coisa completamente diferente, mas provavelmente semelhante dentro da lógica de seus pensamentos. Definitivamente, monologava muito bem. Isso durou até quase às 13 horas e, é preciso ratificar: ininterruptas. Eu não precisava responder, aliás, nem tinha chance: ele fazia o contraponto de suas perguntas e suas próprias respostas, como se fossem as respostas que eu estava dando e pronto, emendava os seus mecanismos cerebrais em seu monólogo interior. De exterior só tinha mesmo a compulsão. Coisa de descrição literária, se é que posso dizer assim. Eu tinha resolvido dar trela, para ver onde ia chegar. Não chegava. Sequer sentia sede, eu pensava, depois de falar tanto e com aquele calor. Não tinha fome? Tampouco... a fome era ter um ouvido que servisse de depósito, foi o que eu podia concluir.

Em torno das 13 (estávamos em frente a um desses relógios de rua) eu resolvi dizer a mim mesma que eu iria falar. Não que sentisse tanta necessidade, mas porque eu precisava urgentemente descansar os meus ouvidos! Dor de cabeça, minha completa desconhecida na vida cotidiana começava a despontar, acredita? Esperei a deixa e, entre uma frase sobre cultura românica (o cara era culto, reconheçamos) e uma tomada de ar, eu disse que tinha começado a minha vida como professora de cultura clássica. "É mesmo?" respondeu, e continuou falando como se não tivesse escutado. Interrompi, pela segunda vez, dizendo que gostaria de contar como tinha começado minha carreira. Ele pediu para terminar o que estava falando para não ser interrompido. Quando ia emendar um assunto no outro, completamente diferente, eu o interrompi e disse que, antes que mudasse de assunto eu queria contar como tinha começado a minha vida acadêmica e emendei, forçando a entrada:

- Assim que eu me formei...

Nesse momento, uma motocicleta rugiu no sinal de trânsito, a nossa frente. Ele apontou a moto e, me interrompendo (ele nem deve ter notado que eu tinha começado a falar...) discursou sobre marcas e encontros de motoqueiros. Quando ia emendar em outro assunto, eu o interrompi, forçando novamente a entrada, não sem esforço, e disse que iria acabar a minha história e acrescentei, num sorriso temperado:

- Ou melhor, começar, né? E voltei a dizer:

- Quando me formei...

Ele estendeu o olhar para longe e achou uma bandeira de um partido político passando dentro de um carro (estávamos em época de eleições) e falou:

- Olha lá a bandeira do (nome do partido).

Eu sussurrei, perplexa pelo absurdo da coisa, mais para mim do que para ele:

- Não acredito...

Ele, imediatamente, respondeu, interpretando que era um comentário sobre a bandeira:

- Acredite, é verdade!

E passou a falar sobre o tal partido político e suas incursões partidárias na juventude.

Definitivamente, o cara tinha algo esquisito, só podia ser. Eu estava embasbacada. Como um cara daqueles podia escrever mails tão legais e parecer alguém que valesse a pena encontrar? Ali mesmo, decidi que seria o último encontro, pois não conseguiria fôlego para duplicar a dose. Ele, em contrapartida, estava encantado. Pudera: tinha encontrado um ouvido quieto. Sequer se dava conta que era um ouvido perplexo! Eu me conservava a perfeição da educação, mas por dentro tinha impulsos compulsivos de simplesmente me levantar e sair, fugir sem dar satisfações. Fiquei. Ele tinha um compromisso às 14 horas e, para quem tinha agüentado desde as 11horas, faltava pouco.

O encontro acabou e ele insistiu por me encontrar, de novo, naquele mesmo dia, depois do compromisso. O “não” nasceu feliz na minha boca. Mas não saiu. Eu não costumo decidir nada de impulso e, afinal, poderia ser o nervoso da primeira vez. Vamos dar mais uma chance.

Vim para casa pensando em como solucionar o problema, caso achasse que poderia ser um defeito contornável. Sou tolerante, para essas coisas, não acredito em arquétipos de perfeição. "Vamos dar uma nova olhada nessa coisa que se apresenta a minha vida. Nada é por acaso", insisti eu. Ele não conhecia bem a zona sul, pelo que pude supor e coube a mim escolher onde seria. Elegi um barzinho simpático e tranqüilo da Urca, com aquela vista maravilhosa de um bairro que poucos cariocas sabem saborear. Na pior das hipóteses, valeria pela vista e pelo sossego local.

Assim que nos encontramos, a matraca ligou. Caramba! Felizmente, no início do papo, não sei por que ele disse que as pessoas o achavam arrogante, mas ele não era. Foi aí que, como um raio, eu consegui interromper e disse:

- Eu sei por quê!

Frase curta, de impacto. Até porque eu sabia que não daria tempo para falar uma frase mais longa. Ele parou. Pela primeira vez, parou! Ufa! Tive vontade de permanecer um pouco em silêncio, oportunidade para ouvir as ondas deliciosas batendo mansas nas pedras da murada. Mas não... não poderia perder a chance, tive de dizer de um só fôlego:

- Você não dá chance de diálogo, você não pára de falar.

Foi uma bomba, mas necessária. Acho que ficou lívido. Não, não acho, tenho certeza. Eu me achei grosseira, mas ao mesmo tempo aliviada. Minha cabeça latejava. Se ouvidos ficassem inflamados por uso, os meus precisariam de uma emergência hospitalar!!! Mas ele parou, ou melhor, melhorou. Consegui falar sobre amenidades, não toquei no desastroso evento da manhã. Se ele se tocasse, talvez alguma coisa se salvasse e eu pudesse achar, desenterrar, descortinar as qualidades ocultas que tinha encontrado nas correspondências, através dos mails.

Marcamos novo encontro, dois dias depois. Eu fui disposta a nova tentativa. O cara falava muito mesmo e melhor seria, pelo menos, que fossem coisas interessantes. Eram cultas, sem dúvida, mas daí a serem interessantes, havia um passo a ser dado. Mas fui tocando, o encontro foi mais curto. Deu para levar.

No terceiro encontro, descobri que, de brinde, ele queria consertar a minha vida: eu tinha de entrar para um curso de inglês. Imagine você, a essa altura da minha vida, um curso de inglês. Mas como ele dominava a língua, acho que deveria ser um valor de honra para ele, quem sabe. Gentilmente, disse que eu não tinha mais interesse em aprender mais uma língua. Mas ele fazia questão de frisar que eu não poderia viver no mundo atual, sem um curso de inglês. Parecia propaganda de mídia. Esclareci que tinha um inglês suficiente para leitura e, se precisasse sobreviver em um país anglofone, não morreria de fome. Mas não era suficiente às vistas dele. Eu tinha de fazer um curso decente de inglês. Ele nem sabia quanto de inglês eu dominava e, na verdade, nem me perguntou ou procurou saber! Só naquele dia, ele voltou à carga, várias vezes. Lembro-me que, na quarta vez, eu apenas disse que era a quarta vez que ele me dizia aquilo naquele dia e que, definitivamente, eu não tinha interesse e não precisava de um curso de inglês nesta etapa da vida. Ele insistia em dizer que o inglês faz parte integrante do sucesso de uma pessoa. Por uma questão de educação, não quis esfregar meu currículo vitae de vinte e seis páginas, com títulos de doutorado e pós-doutorado, inumeráveis publicações (também em língua estrangeira), vários congressos no exterior, livros de sucesso publicados, carreira acadêmica impecável e bem sucedida e uma aposentadoria decente. Não quis mostrar que morava em casa própria, consultório idem, tinha carro e podia me dar ao luxo de escolher os cursos que me dessem na veneta, inclusive de inglês, se quisesse perder meu precioso tempo com algo que para nada mais me serviria. Não fiz. O que dizer a alguém que nem casa própria ou emprego permanente conseguira na vida? Não quis feri-lo com meu estrondoso sucesso profissional e pessoal. Não tinha interesse nisso. Tenho desses cuidados. Ele que se mancasse. Mas volta e meia a tecla estava lá: eu precisava fazer um curso de inglês. Passei a nem responder mais. Eu tinha definitivamente, embarcado numa canoa furada... me deu ânsias de dar uma boneca de borracha bonitinha, do tamanho de gente, para ele conversar e, simplesmente, cair fora. Acho que ele nem notaria...

Por um descuido impensado, convidei-o a me visitar. Desnecessário dizer que configurou meu computador à maneira dele, sem me pedir permissão, sem sequer me consultar. Com certeza, ele estava convencido de que sabia sobre tudo o que seria essencial e melhor para minha vida. Quando me aproximei para dizer que o delicioso jantar que eu havia preparado estava pronto, lá estava o meu computador configurado do jeito que ele gostava, com uma barra de ferramentas suplementar no rodapé atravessando o meu caminho e outras coisas mais. Uma droga. Sem contar com o fato de que sua “deliciosa” mão escorregava com muita intimidade sobre a minha tela de cristal líquido, a tela que gosto de ver sem impressões digitais e riscos de dedos engordurados. Disse, o mais gentil que pude, que não encostasse o dedo na tela. Ele, muito “entendido”, me explicou que não tinha problema algum, que não fazia mal à tela e que isso era “frescura”.

- Sim, obtemperei, uma frescura que gostaria que fosse respeitada.

Ele aproveitou a deixa para me dar uma lição de coisas sobre computador, e continuou colocando o dedo lá mesmo, desta vez, propositadamente, mostrando para mim que, afinal, “não tinha problema algum” e, que se eu tinha essa frescura, que não me preocupasse, ele limparia depois. Você limpou? Ele tampouco. Uma frescura, por certo, pensei, mas no meu computador, ora bolas. Não teria eu direito de ter frescuras com as minhas coisas? Não, não teria.

Sem contar com a porcaria que ele acha ser colocar pratos dentro da pia, antes de lavar a louça. Para quem conhece o cuidado que tenho com as minhas coisas, parece até piada. “Aprendi” com ele que a louça toda deve ficar espalhada em cima da pia e não dentro. Sei das bactérias que se acumulam se a louça fica dormindo ali, mas ele se referia à louça do dia que saía da mesa para o banho. O cara não era apenas chato. Era, definitivamente, doido! E eu precisava me livrar dele o mais urgente possível. Não tinha simancol na própria higiene, mas era rigorosíssimo com o que via: ele não achava nada demais sentar-se diretamente nos meus limpíssimos lençóis com seu jeans acabado de chegar da rua, exposto a assentos de ônibus, metrô e sei mais lá que lugares sujos e poeirentos. Ele sequer notava que fazia isso e eu, tampouco, chamei sua atenção. Desnecessário gastar minha energia com isso. Ele não voltaria a minha casa e tudo iria diretamente para a máquina de lavar. Definitivamente, seus conceitos próprios de higiene e bem-estar só se aplicavam às outras pessoas.

O problema virou, portanto, como me descartar da peça, de modo gentil e discreto, como faz o meu feitio. Consegui. Jamais pessoalmente, já que ele não dava muita chance de diálogo e seria difícil entrar em seus monólogos. Consegui por mail, no meio de muita poesia, do tipo eu não sou a mulher dos seus sonhos. Com certeza, não disse que ele era o homem dos meus pesadelos.

Investi em mais alguns parceiros, sem relevante sucesso, antes de tirar o link do site de relacionamentos da minha lista de favoritos, no browser de meu computador.

Fosse o que fosse, posso dizer que não fugi à experiência. Fez parte da vida. E esperei a fase de carestia fazer seu trânsito completo, dedicando-me a outras artes de viver.

3 comentários:

Celina disse...

querida,
que bom que você conseguiu duas coisas: 1)descobrir rápido que o cara era um mala 2) Tirá-lo da sua vida. Ás vezes a gente leva um tempão para fazer as duas coisas, hahaha! Um beijo!

pblower disse...

Que bom ver esta história no blog. Lembro do dia que vc me contou este encontro (ou desencontro?)

Muito bom!

Tô chegando mañana!

beijocas

argumentos meus disse...

Realmente,seus texto - as ideias e conceitos que eles trazem - acrescem-nos, Eulália.
Estarei sempre por aqui.
Agradecimento,
Maristela