domingo, 27 de junho de 2010

O ANEL E A FLOR


É difícil encontrar alguém que possa dizer que viveu uma paixão avassaladora. Vivi. No México, em agosto de 1984. Estava indo a um congresso, apresentar um trabalho acadêmico, o que se deu logo no primeiro dia. Quem apresenta trabalhos em congressos sabe do privilégio que é livrar-se do encargo logo no primeiro dia. Significa que a tensão vai logo embora. Ademais, não vamos a uma cidade, principalmente fora do país, só para ficar o dia todo no congresso. Por mais cdf que seja uma pessoa, como eu era, não se faz isso. Passeia-se também. E, diga-se com ênfase: o México é pródigo para o devaneio turístico e cultural. Cidade lindíssima, sítios arqueológicos impecáveis, pirâmides, berço de civilizações antigas. Cultura por toda parte e um povo super interessante.

Logo no primeiro passeio, conheci Manuel. Era o guia turístico, encarregado de me buscar no hotel. Detesto excursões, mas entrei nessa. Também evito sair em grupo com o pessoal do congresso, dificilmente ligado em conhecer a cidade tal como ela é, preferindo os lugares comuns, as compras, as fotos. Eu queria a vida local, as pirâmides, um bom guia turístico. Consegui esta indicação no próprio hotel e uma camionete veio buscar os passageiros, que eram sete ao todo, com este guia turístico muito muito muito interessante. Tão logo reuniu o grupo, cuidou de nos acomodar de modo que eu ficasse no banco da frente, exatamente ao seu lado. Não tinha saída. Aliás, adorei a iniciativa. E não precisamos de muita apresentação. Parece que já tínhamos marcado aquele encontro. O dia foi maravilhoso, com passeios por Teotihuacan, Quetzacoatl, nomes que, com cuidado de lingüista, aprendi a pronunciar com perfeição, para impressioná-lo. A subida à Pirâmide do Sol foi indescritível, naquela tarde magnífica de verão mexicano. Em segundos, aprendi todas as lendas e histórias, pormenores citados e explicados por tão interessante personagem.

Havia um encantamento que não poderia terminar no final daquela tarde, mas eu ainda não sabia como encompridá-la. Gosto de ser seduzida, prefiro não tomar a iniciativa. Isto faz parte do encanto para mim. Mas ele mesmo se encarregou disso, levando cada turista a seu hotel, passando pela frente do meu por duas vezes. Tornou-se óbvio: eu teria uma boa esticada de dia. Todos entregues, ele fez questão de me mostrar “um México que os turistas não conhecem”. Fomos a um café. O café mexicano é simplesmente péssimo. É um chafé, de xícara inteira, insuportável, ridículo, imbebível. Mas eu estava achando tudo ótimo. Passeamos por sítios arqueológicos não muito conhecidos, fomos a recantos inusitados, conheci a cidade por dentro, em conversas gostosas, muito riso, insinuações deliciosas.

O congresso virou acessório, embora eu o frequentasse. No dia seguinte, ele iria levar turistas a um passeio de meio turno e estaríamos novamente juntos pelo resto do dia. Redobradas caminhadas por aquela maravilhosa cidade, que se fazia como pano de fundo para aquela figura esguia, masculina, única, que me conduzia como em sonho. Não foi direto à sedução explícita. Sentia que ele queria certificar-se de que, quando pedisse um beijo, não caberia um não. Eu fazia o jogo que a maioria das mulheres sabem fazer bem: um pouco provável não, um certo talvez, um possível sim. Juntava-se a sedução ao saboroso clima daquela cidade encantadora e cheia de inenarrável luz mística. O Museu Antropológico foi um dos museus mais fantásticos que já visitei, embora conheça vários outros europeus e americanos. Sem contar com a vantagem de um guia fenomenal, especialista contumaz das culturas asteca e maia. Eu estava vivendo ou levitando?

Mas uma semana passa muito depressa, ainda mais nessas condições. E eu não podia ficar mais. Estávamos em agosto e teria de estar no Rio, mais especificamente dando aula na minha universidade, dentro de dois dias. Naquela noite, fomos à Zona Rosa bairro de turistas e restaurantes noturnos, pequenos bares aconchegantes. Foi para lá que meu gentil cavalheiro me levou. Entramos numa espécie de bar noturno, a meia luz, para um papo mais íntimo. Um barzinho interessante, típico, pouco espaçoso, muito bem decorado, em cujas mesas sentavam-se casais isolados. Parecia um lugar para receber pares, não mais do que isso e... com uma característica especial, da qual logo me dei conta: de vez em quando, um dos acompanhantes se levantava, ia ao microfone e cantava para sua dama. Perguntei a ele o que era aquilo e ele me explicou que era exatamente o que eu estava vendo. Os casais iam ali, ficavam conversando e, volta e meia, o cavalheiro se levantava para cantar para sua amada. Era um costume e ele queria que eu conhecesse. Nada de bater palmas, nada parecido com caraoquê. Nada disso. O ambiente era de puro romantismo. Fiquei encantada. Agradeci-lhe a gentileza por ter me levado a um lugar tão interessante. Ele sorriu, levantou-se, dirigiu-se ao microfone, falou alguma coisas aos músicos e, então, cantou para mim: “El dia que me quieras...” que voz...

Acredite: eu estava ali. Neste e no dia seguinte, apenas interrompemos nossos encontros pelo trabalho dele e pelo encerramento do congresso, felizmente muito curto. Eu queria ficar ali para sempre. No fundo, sabia que era uma paixão, não tinha certeza se poderia se transformar em algo mais e, ademais, tinha um compromisso conjugal me esperando no meu país de origem que, embora praticamente falido, estava em lento processo de ser resolvido.

Não sabíamos o que dizer um ao outro, na despedida. Eu pensei que fosse morrer, pois tinha um nó na garganta tão apertado que mal podia respirar. Ele não falava nada, apenas me olhava ternamente, sentados, ambos, em seu carro, em frente ao meu hotel. Eu voltaria no dia seguinte. Ele apenas disse que esperava firmemente que a vida nos desse a chance de nos reencontrarmos. Tirou seu anel de formatura e o colocou em meu dedo anular, como um compromisso. Até hoje eu não sei por que desci do carro. Na verdade, não me lembro de como fiz isso.

Marcamos de nos encontrarmos no dia seguinte antes de minha partida, mas isso não aconteceu. Ele não pode livrar-se do trabalho e me telefonou, se despedindo. Acho, no fundo, que ele não quis enfrentar outra despedida.

A viagem do México ao Rio custou-me uma dor concreta e íntima. Tinha a impressão de que estava dividida em pedaços que jamais encontrariam seus lugares novamente.

Uma semana depois, recebi uma carta dizendo o quanto ele sentia a minha falta. Respondi, dizendo que queria vê-lo novamente e que guardava o anel comigo. Não obtive mais resposta. Alguma coisa que eu não sabia o que era, aturdia o meu coração. Nada combinava com os dias e com a carta que ele me mandara uma semana depois de minha partida. O tempo passava e, coincidentemente, houve aquele avassalador terremoto na Cidade do México. Escrevi perguntando como ele estava, tanto para o endereço do trabalho, como de sua residência. Nenhuma resposta.

Comecei a sentir-me profundamente triste. Os dias pareciam cinzentos, tinha sonhos estranhos, sentia-me deprimida. O peito apertava-se, não conseguia respirar direito. Não conseguia concentrar-me no trabalho, no cotidiano, nas coisas mais banais da vida. Manuel ocupava todo o meu pensamento, todo o meu coração, os meus passos, minhas preocupações. O que teria acontecido?

Um dia, em outubro, sentada no chão de minha sala, junto à janela, com um livro de estudo nas mãos, procurava me concentrar na leitura. Não conseguia. Elevei meus olhos para o céu, através da janela e fixei meu pensamento nele. Pedi-lhe fervorosamente por um sinal, por um aconchego, por uma notícia. Fiquei assim, por algum tempo, olhos perdidos no espaço. Aos poucos, no entanto, vi algo diferente vindo do céu, como uma folha, talvez, voando em minha direção. Seria de algum andar de cima? Eu moro no oitavo andar, não poderia ser da rua. Fixei a vista. Era uma pequena florzinha, caída de alguma árvore, talvez do morro ao lado, ou vinda pelo vento, não sei como. Voava em minha direção. Pensei que passaria por minha janela, rumo ao térreo. Mas não. Entrou por minha janela e pousou no chão, perto de mim. Fiquei olhando estarrecida. Segurei a delicadíssima flor, de cor rosada, em minhas mãos, desacreditada do que estava acontecendo. Mas era verdade. A florzinha intacta, linda, gentil, estava ali. Eu não podia supor o que significava, mas parecia estar respondendo ao meu apelo. O que seria? O que estaria acontecendo? Por que o silêncio de notícias e por que a florzinha em minhas mãos, diante de meu desesperado apelo?

Nunca tive a resposta. Guardei a flor junto com o anel e é como estão, até hoje.

Dali, a vida passou a ter pouco sentido. Até setembro, conseguira, ainda, me distrair com a defesa de tese de doutoramento, que se deu, no dia 24. Depois disso, tomou-me o tremendo vazio do coração até o evento da flor, que me prostrou definitivamente. Em novembro, fiquei gravemente doente. Não tinha nada fisicamente, todos os exames nada acusavam, mas eu perdia as forças, a vontade de viver. Não havia médico que desse conta de minha fraqueza. Desmaiei durante uma de minhas aulas na universidade e tive de ser levada para casa. Felizmente, era final de novembro e as aulas terminavam. Eu não agüentaria continuar indo à Universidade por muito tempo. Passei dias de cama. Para mim, o tempo passava e não passava. Tanto fazia. Não se sabia o que fazer comigo. Eu sabia. Queria morrer. Não agüentava mais tanto aperto em meu peito, nessa profunda dor silenciosamente guardada em meu coração.

Fui levada a um médico acupunturista milagroso, segundo diziam. Ele diagnosticou falta de energia vital. Tivemos uma longa conversa e ele me perguntou diretamente o que me fazia não querer reagir. Olhei para ele, sem resposta. Não podia, não havia nada a dizer. Ele me olhou e disse que lhe cabia me ajudar. Eu estava com 33 anos, segundo ele, uma vida pela frente. Fosse o que fosse, havia um motivo para eu estar aqui e não poderia entregar-me à inércia. Entendi o recado, precisava viver. Pedi ajuda, sem dizer a causa de minha angústia. Tive várias sessões de energização dos meus centros vitais. A custo, comecei a comer, novamente, aos poucos sopas leves até a normalização alimentar, o que levou alguns meses. Olhei para o meu futuro, precisava arrancar de mim uma razão para prosseguir. Sim, havia um próspero futuro profissional, sem dúvida. Enfiei-me em pesquisas, voltei à tona aos poucos. Fiz da vida acadêmica o centro de minhas atenções e a vida começou a colorir-se novamente.

Nunca mais soube de Manuel, do que aconteceu, porque não tive mais notícias. Ainda escrevi mais uma vez, busquei-o pela internet, muitos anos depois. Aliás, seu nome não consta, numa varredura pelo Google. Nada. A paixão passou, mas nunca a lembrança.

“El dia que me quieras...”. Eu quis. Nunca neguei viver tudo o que me foi oferecido.

Agradeço à vida por ter acontecido. Agradeço àquele médico por ter me resgatado. Agradeço a mim, por ter preservado com tanto carinho essa lembrança doce e forte em meu coração.

O anel e a flor continuam guardados, na mesma pequena caixinha, prova irrefutável de que uma verdadeira paixão povoou meu coração.

2 comentários:

Unknown disse...

Lali querida, estou cada vez mais encantada com suas histórias! São pura expressão de amor, vida e liberdade! Parabéns, querida!

pblower disse...

Amiga,

Eu que passei esta semana no Mexico, curti ainda mais a historia.
Agora te mando beijos diretamente de Houston.
beijocas