sábado, 19 de junho de 2010

NEGUINHA, uma lição de vida


Como prometi, completo minha história com minha querida amiguinha, iniciada na semana passada.

Trouxe Neguinha para casa e saí desabalada para providenciar os apetrechos de sua residência e alimentação básica. Também urgia apresentá-la ao André. Não faria como da última vez. Ela passaria por um exame clínico completo. No mesmo dia, soltei Neguinha pela sala. No mesmo dia, veio bicar meu dedo como me cutucando. Tive a impressão de que queria brincar. Foi assim que nasceu a brincadeira de capa e espada. Sua capa (suas asas) se abriam quando avançava sobre meu dedo em riste e também as usava para voar meio para trás, quando o dedo avançava. Mas não se intimidava... logo o bicava, me empurrando, novamente. Também não se intimidava quando eu apertava o seu biquinho com meu polegar e indicador, apertando um pouquinho seu “nariz” e virando de um lado para outro, como fazemos carinhosa e delicadamente com as crianças sapecas:

- Vou pegar o seu nariz...

Já no primeiro dia passou abusadamente a pousar em minha cabeça. Quantos anos teria? Eu não sabia nada sobre ela, só sabia que éramos completamente amigas. Dr. André também ficou encantado. Disse que tinha idade suficiente para cruzar. Imediatamente, me convenci de que teria de arranjar um macho. Não poderia privá-la dessa felicidade. Ela me parecia muito feliz e, ao contrário da maioria das canárias, cantava divinamente. André me instruiu de que deixaria de cantar, quando tivesse um macho. E foi o que aconteceu. Mas isso não teve a mínima importância para mim. Meu amor por ela era, definitivamente, incondicional.

Antes do episódio do casamento, no entanto, Neguinha quase acabou comigo, numa quarta-feira, de manhã. Lembro-me, porque tinha deixado de dar aula às quartas, e ela ficava solta quase todo o dia, passeando pela sala, voando de um lado para outro, colocando suas asinhas ao sol, bicando aqui e ali. Irresponsavelmente, eu não notara que uma frestinha da janela ficara um pouco aberta. A janela da sala tinha um defeito: quando a puxávamos para fechar, ás vezes, ela carregava, consigo um pouquinho da outra banda. Isso acontecera. E Neguinha escafedeu-se por ali, mundo afora. Um apto em Copacabana, no meio de milhões de janelas! Como ela voltaria? Como a encontraria? Desci alucinada para a rua. Foi quando descobri o quanto as pessoas tomam conta da vida da gente. Perguntando a um e a outro, principalmente aos porteiros dos prédios vizinhos, se tinham visto uma canária assim e assado, ouvi várias vezes:

- Aquela canária que fica solta dentro de casa?

Como eles sabiam??? Foi assim que descobri que, mesmo numa cidade grande, você quase não tem privacidade... é como se morasse numa vila, com as pessoas tomando conta de sua vida. Seria preciso ter olheiros para ficarem de binóculos ou sei lá o quê para perceberem que uma canária ficava voando solta dentro (dentro!) de um apto, no oitavo andar de um prédio, entre montes de outros prédios da rua! Centenas de janelas! No meu desespero nem notei o detalhe... só me dei conta disso depois de passado o susto.

Depois de andar como uma barata tonta pelo meio da rua, acabei por ouvir sua vozinha, vindo de uma das árvores. Fiquei buscando meu tesouro por entre os ramos e... achei-a! Fiz sinal para o meu porteiro, pois era justamente a árvore em frente ao prédio.

- Fique aqui, olhe onde ela está e não a perca de vista.

Subi, vesti uma calça comprida, pronta para subir na árvore, se preciso. Desci com a gaiola aberta, esperançosa de que ela ouvisse meus apelos, como de costume: quando eu precisava sair para trabalhar, apenas batia na gaiola e, rápida, ela voltava para sua casinha. Comecei a chamá-la, esperançosa de que ela cumprisse o ritual. Juntou gente. Pedi, encarecidamente, que as pessoas se afastassem, pois ela não voaria para baixo, com tantos desconhecidos à volta. Ninguém arredou pé. Eu estava a ponto de escorraçar todo mundo, tal era o meu desespero, quando Neguinha simplesmente voou para o prédio ao lado, entrando em um apto, exatamente no prédio em que eu morara antes de comprar o meu, e exatamente na janela da coluna onde eu morara, anos atrás: coluna 01. Neguinha entrara no primeiro andar. Entrei enlouquecida pelo prédio, perseguida pelo porteiro, também enlouquecido, dizendo que eu não poderia subir. Não poderia o escambau!... eu já estava escada acima, em busca da campainha do 101. Uma velhinha calminha e desavisada abriu a porta (naquele tempo, isso ainda acontecia). Eu poderia ter matado a velhinha de susto, imagine! Entrei porta adentro, sem pedir licença, apenas dizendo que minha canária tinha entrado na casa dela. Ela assustou-se, não conseguia falar, mas apontou para a janela. Lá estava minha jóia, dentro de uma pequena gaiola, com a porta aberta. Em frente a ela, outra gaiola, esta, com porta fechada. Era o pássaro da velha senhora, cujo nome soube depois: D. Marly. Aproximei-me devagar. Tinha medo de que Neguinha, sapeca como era, alçasse vôo novamente. Eu não sabia que o medo também povoava o seu coração. Devagar coloquei minha mão portinha adentro e a peguei no colo. Ela, muito suada, acomodou-se e piou. Só então, chorei. De alívio, de culpa, de desespero, de alegria, de gratidão. Pela primeira vez, olhei a velha senhora que, gentilmente me disse que tinha uma gaiola aberta, com comida, para que passarinhos da rua viessem fazer companhia ao seu. Neguinha, talvez acostumada por mim a voltar para a gaiola, vendo essa com porta aberta e longe do bulício, ali refugiou-se.

Voltei para casa brigando com minha doce amiguinha. Na verdade, brigando comigo. Trazia meu bichinho junto ao peito e atravessei a rua enfrentando os curiosos que diziam que isso só acontecia uma vez em um milhão. Não conheciam a força do amor. Só sabiam de estatísticas. Não disse nada, entrei em casa e liguei correndo para o André. Ele prescreveu os cuidados das primeiras 24 horas, quando ela poderia desidratar, depois de tanto esforço. Havia risco de vida, para um pássaro não acostumado a ficar solto na natureza! Não fui trabalhar por 24 horas, cuidando de minha filhota que, felizmente, restabeleceu-se bem e, logo, estava de novo voando solta e lépida, como se nada tivesse acontecido.

Por todos os natais seguintes, até a morte de D. Marly, nós duas lhe mandávamos um cartão de agradecimento, assinado por mim e pelas patinhas de Neguinha.

Mas voltemos ao episódio do acasalamento, de acordo com as prescrições do veterinário, agora meu grande cúmplice nos cuidados de minha pequena donzela.

Quis levá-la à casa de canários para escolher o seu par. Não sei por que acedi às observações de meu ex-marido, que achou um exagero sair por aí, com uma gaiola nas mãos e ficar em casa de animais perguntando ao seu bichinho de estimação com quem desejaria se casar. Coisas de antigamente e, como eu fazia naquela época, para evitar conflitos, cedi à observação conservadora e comportamento tão tradicional e me mandei para a casa de passarinhos, jurando a minha amiguinha que encontraria o príncipe de seus sonhos. Passei a manhã inteira observando cada gesto, cada canto, cada movimento de uma galeria de machos... não sabia o que fazer, mas acabei me decidindo por um. Comprei o bichinho, gaiola e todo o resto de um enxoval digno de um príncipe. Queria apresentá-lo lindo, garboso e com aparência digna dela.

Entrei em casa e não a apresentei de pronto. Limpei cuidadosamente a gaiola de seu futuro noivo (será que ela o aprovaria?). Enquanto limpava, no entanto, perceberam a presença um do outro. Embora eu tivesse colocado a gaiola em um canto da área de serviço em ângulo que não pudessem se ver, eles se ouviram. Ela piou, ele respondeu e... seguiu-se um silêncio total de ambos os lados. Eu observava tudo, atentamente.

Uma vez acabada a preparação da gaiola, levantei-a e a aproximei o pretendente da gaiola de Neguinha. O que se seguiu é quase indescritível, um quadro magnífico: Neguinha ficou petrificada, imóvel, enquanto o canário soltou um canto, o mais lindo que já ouvi!!! Era nítido o mútuo encantamento. Se eu fosse uma canária, não quereria ouvir nunca mais canário algum! Que canto! Belíssimo, prolongado, apaixonado. Neguinha estática! Ele, estarrecido. Lembro-me perfeitamente que senti meu coração bater mais forte e, ainda agora, consigo trazer aos meus sentidos a memória desse momento inesquecível.

Quantos humanos poderiam se encontrar dessa forma tão amorosamente feliz?

As recomendações de André eram inflexíveis. Aproximar as gaiolas, deixá-las bem próximas até que se acostumassem um ao outro. Só depois seria possível uma aproximação definitiva. Eu segui as prescrições à risca, mas à risca do meu encantamento, é preciso ressaltar. Levei as duas gaiolas para a sala de jantar e abri as portas das duas. A natureza que fizesse o resto. E fez. Neguinha saiu lépida e fagueira. Ficou de fora da gaiola do macho, piando para ele, andando de um lado para outro. Com certeza, ele estava habituado às grades, desde pequeno. Custou muito a colocar suas patinhas para fora. Não fosse a sedução de tão encantadora princesa, provavelmente, estaria na gaiola até hoje. Em pouco tempo, ambos estavam voando pela sala, ele, um pouco tímido no início, esbarrando um pouco aqui e ali. Mas foi questão de uns vinte minutos. Logo começou a tomar conta do ambiente, embora voltasse com freqüência para as grades da gaiola, mesmo que fosse por fora. Acho que ele não encontrava a porta. Eu me conservei à distância por um bom tempo, mas Neguinha veio me desafiar para as brincadeiras de sempre. Brincamos e, pouco depois, ansiosa por saber o que iria acontecer, fiz o de hábito: bati na gaiola de minha amiguinha, chamando-a para casa. Neguinha veio e começou a chamar pelo macho. Titubeante a princípio, ele ficou rodeando a gaiola de sua pequena princesa. Ela vinha até a porta e piava para ele. Acabou entrando e, desde aquele dia, se tornaram um casal inseparável. Nunca vi um ninho tão bem bordado, pois foi exatamente o que ele fez para ela. Usando pedacinhos de pequenos barbantinhos que coloquei espalhados pela sala e alguns fiapos de algodão, logo foi construído um ninho em cima desses que a gente compra em casa de pássaros. Não havia material suficiente da natureza para que eu providenciasse o que gostariam de ter. Então, aproveitaram o artesanato humano e fizeram algo bem acolchoado por cima. Neguinha também saía em busca de material e não poupou meu cabelo. Pousava em minha cabeça e tentava arrancar os fios para o ninho. Não tinha forças para isso, então, eu mesma arrancava um e ficava segurando na minha cabeça. Ela o pegava do meu dedo e voava para o ninho. Eu me sentia a mãe-sogra e futura avó mais feliz da face da terra.

Era inverno e fazia frio. Geralmente, os canários domésticos dormem nos poleiros, com exceção da fêmea, quando choca. Neguinha estava choca, mas seu marido não se contentava em ficar empoleirado. Dormia de mau jeito à beira do ninho, colocando uma de suas asas sobre sua querida amada, talvez para aquecê-la. Dormia em puro desequilíbrio e pleno malabarismo. Era mesmo uma paixão avassaladora. O dia todo era dedicado a alimentar e cuidar de sua pequena amada. Não sei o que houve, mas acho que a dedicação foi extrema. Antes que a primeira ninhada vingasse, ele amanheceu sem vida, no chão da gaiola. Nenhum sinal de ferimento, André não encontrou nenhum motivo aparente para o fato. Ele apenas morreu.

Neguinha entrou em depressão. Abandonou o ninho e os ovos, não queria mais brincar comigo. Piava baixinho e apenas aceitava ficar no meu colo, com meu cafuné. Eu não sabia que canários poderiam ser assim.

Aos poucos, muito aos poucos, Neguinha voltou à vida, mas... nunca mais cantou.

Arranjei-lhe outros machos, mas ela batia em todos! Não conseguiam se aproximar dela de jeito nenhum. Enfim, achei um marido suportável. Por que fiz isso? Porque percebi que ela adoraria ser mãe. Soube disso desde a primeira promessa de ninhada, com o carinho que a via cuidar dos ovinhos. E foi mãe várias vezes. Tão logo se sentia grávida, lá estava ela, arrumando o ninho, toda fofa, toda choca, toda feliz. Neguinha teve muitos filhotes, todos muito queridos e amados. Por ela e pela avó.

Lembro-me, com freqüência, de quanto nos dávamos bem. Neguinha pode ter aprendido muitas coisas comigo, mas, inegavelmente, deu-me várias lições. Por muitas tardes me peguei observando os vôos de minha pequena companheira, vôos despregados e plenos! Neguinha me ensinava, aos poucos, os caminhos da liberdade, uma liberdade interna, intensa, que eu jamais conhecera. Serviu de exemplo para muitos de meus novos caminhos que comecei a empreender na década de 90. Ensinou-me que gaiolas não são refúgios, mas um lar que deve ser amado e feliz. Voltar para ele, deveria ser motivo de repouso e aconchego e não obrigação.

Neguinha é, até hoje, uma grande companheira de vida. Quando morreu, escrevi, impulsivamente, tudo que ela tatuou, na verdade, em meu coração:

Já que deixaste minhas mãos vazias,
voa, por mim, bem alto,
com seu vôo pleno e sem limites,
onde, ainda, não posso alcançar.


Minha amiguinha morreu em abril de 1992. E foi justamente a partir desse ano, que comecei a dar meus primeiros passos em direção ao meu definitivo vôo para a transformação de minha vida.

Um comentário:

Celina disse...

Menina, você me fez chorar... Que estória, que linda amizade, que texto e poema!!! Uma canária ensinando o valor de um lar... Eulália, valeu esperar o segundo capítulo. Um presente. Obrigada por compartilhar! beijos