domingo, 6 de junho de 2010

O POLICIAL


22h30min, chuva fina, voltando da universidade para casa. Cansada mas feliz. Gostava da universidade, gostava dos alunos, dos colegas, do meu trabalho. Vinha pela Presidente Vargas, cuidadosa com os sinais, já que, a essa hora, não se pára nessa avenida de graça. Aliás, nem pagando.

O sinal verde ameaçava abrir e um ônibus a minha direita avançava devagar. Eu, na cola dele, também fui indo, usando-o como escudo. Mal sabia... de repente, pela frente do ônibus um carro ainda aproveitando o verde do sentido transverso. Tempo daria, se não estivesse chovendo. Derrapei direitinho em direção à porta do motorista e não deu outra: bati mesmo, não forte, mas em cheio, amassando tudinho. No meu e no dele.

Desnecessário dizer que estava bem na altura da Central do Brasil, o ponto mais perigoso da avenida, mesmo nos idos tempos da década de 90. O homem louro, alto, encorpado e ágil que saiu do fusquinha não estava para brincadeira. Dirigiu-se a mim como um tornado e disse rápido e autoritário:

- Saia do carro.

Eu, sozinha, ainda muito assustada, só consegui dizer.

- Ok, calma, vamos conversar.

- Vamos conversar aqui fora. Aí dentro, não posso proteger você.


Tirou a carteira de policial civil e já abria a porta do meu carro. Me pegou tão de surpresa que me vi fora, na chuva, enquanto ele tirava o próprio casaco impermeável e o colocava em minhas costas (eu não tinha nenhum agasalho) para me resguardar da chuva, deixando-se, ele próprio, ao relento. Foi então que ele me explicou que preferia me ter a sua mão e não dentro do carro, para qualquer providência, pois aquela área era muito perigosa. Fiquei atônita. Ele nem tocara no fato da batida. Estava, pude constatar, muito mais preocupado com a minha segurança! Isto posto, perguntou-me se eu tinha seguro. Tinha. Ele não. Foi então que pedi desculpas, ele disse que isso acontece e que as providências precisavam ser tomadas.

Na década de 90, por incrível que pareça para você que lê o conto agora e provavelmente nem se lembra, poucas pessoas tinham celular. Nenhum de nós dois tinha e ele usou de sua autoridade para ir parando os carros na rua, até que achou um e chamou pela perícia. Isso tudo, comigo bem a seu lado esquerdo, para lá e para cá, resguardada pelo seu casaco enorme, enquanto ele mesmo pegava chuva, uma chuva fina, mas que não deixava de molhar sua camisa. Ele estava a paisana, fora do horário de serviço.

Enquanto a perícia não vinha, disse-lhe que talvez fosse melhor entrarmos no carro. Não quis de jeito nenhum. Preferia estar comigo sob controle, ali fora, do que numa armadilha, como ele denominou. Então, só nos restava esperar pela perícia, pois não podíamos deixar os carros ali sozinhos. Quando a perícia chegasse, segundo suas instruções, aí, sim, poderíamos buscar um telefone para ligarmos para o meu seguro. Ok. A essa altura, eu não estava ali para discutir nadica de nada.

Assim, só nos restava conversar e soube que ele era casado, tinha 27 anos e estava terminando a faculdade de direito. Naquele momento, estava voltando da aula quando se deu a batida.

A perícia chegou logo e, como eram todos colegas, ele pediu que tomassem conta dos carros, enquanto iríamos em busca de um orelhão. Eu precisava ligar para o seguro e ele para casa. Atravessamos a rua e seguimos em direção à Central do Brasil. Encontrado o orelhão, ele me pediu para ligar para casa da mãe, primeiro, para que esta avisasse a esposa que morava perto. Ele não tinha telefone em casa. Enquanto discava, me colocou entre ele e o aparelho, me cobrindo com seu corpanzil. Eu estava achando aquilo um pouco de exagero, mas não soltei um pio de reclamação. Minha vez de ligar e o fiz com rapidez. Queria sair dali. Seriam precisos dois reboques, pois ambos os carros estavam sem condições de locomoção. No momento em que estava dando minhas instruções, notei que ele começou a falar. Virei-me e quase tive um treco. Ele cobria o meu corpo, me colocando a suas costas e tinha nas mãos uma arma (parecia uma pistola) prateada bem encorpada e dirigia a palavra para três marginais que estavam se aproximando:

- Circulando, circulando, tão pensando que eu sou quem? Só por que sou louro? Não tô prá brinquedo não. Passo fogo. Circulando!

Algo mais ou menos assim, num jargão que mal conheço mas que os marginais, com certeza, identificam logo como sendo da polícia. Deveriam estar desarmados, graças aos deuses olímpicos e saíram logo, dizendo que estava tudo em paz ou coisa do gênero. Meu herói simplesmente se virou para mim e disse que poderia continuar minha ligação com calma. Com calma??? Fiz o mais rápido que pude e voltamos para os policiais da perícia que já estavam de saída para outro chamado.

O primeiro reboque chegou logo e era o dele. Por todo o tempo que seu carro era guinchado, ele sorria e conversava, mas notava que seus olhos estavam sempre atentos, olhando em volta. Com certeza, se sentia em serviço, protegendo uma civil. Não importava se esta civil teria causado danos a ele. Naquele momento, minha segurança, eu sentia, era sua responsabilidade. No meio do papo, senti o quanto aquele policial gostava de seu trabalho, o quanto se orgulhava de ser o que era!

Com o carro no reboque, a parte dele estava completa e ele poderia ir. Mas não. Ficou até que o meu reboque chegasse e me colocou dentro de um taxi rumo a minha casa.

Deixou comigo o número de sua mãe para que eu pudesse me comunicar para as providências de praxe e se foi. Vim para casa meio entontecida. Em nenhum momento, ele se irritou. Se gritou comigo, foi apenas no começo, para me fazer sair do carro. Me cobrira com seu enorme casaco e me protegera o tempo todo. Isso existe.

Na manhã seguinte, liguei para a mãe dele. Engatilhei um rosário de elogios ao seu filho e à belíssima educação que recebera, pois, sem dúvida, haveria uma mãe prestimosa responsável por alguém tão especial. Choramos as duas, eu de gratidão e ela de orgulho maternal. Amigas de cinco minutos. Foi a única vez que falei com ela. Mas o suficiente para dar a essa mãe o testemunho que ela mais precisava: ter seu tesouro reconhecido.

Falamos muito por telefone, o jovem e eu, até que todas as providências tivessem sido tomadas para que ele estivesse bem servido todo o tempo. Soube, por fim, que o que ele mais queria tinha acontecido: perda total. Ele estava torcendo por isso pois estava vendendo o carro e, se fosse apenas consertado, não o venderia tão bem. Do jeito que foi, ao contrário, como o carro já era bem velho, a perda total até que havia lhe dado melhores condições. Fiquei muito feliz com o resultado.

Nunca mais vi Francisco, mas guardo essa noite impecável em minha memória. Outras noites chuvosas me pegaram na Avenida Presidente Vargas. E dezenas de vezes, depois disso, passei pela Central do Brasil à noite. Sempre, sempre me lembro dele, do Francisco, de seu orgulho de ser o que escolhera ser.

Se eu tivesse tido um filho, com certeza, um desses me teria feito muito feliz.

3 comentários:

Celina disse...

Pois e querida! Milagres acontecem e que bom que foi com voce! Sera que ainda nos dias de hoje existe alguem assim? Policial ou nao? Adorei! beijos!

pblower disse...

Uma delicia rever suas histórias no blog. Bom demais. Já estou em Caracas. mil beijocas, pat

Celina disse...

Eulalia querida,
Adorei ter a sua companhia durante minha aventura. Quem sabe não fazemos uma dessas juntas? Super obrigada pela alegria dos comentários. Um beijo bem grande!