sábado, 12 de junho de 2010

NEGUINHA



Neguinha fez parte intensa de minha vida. Talvez uma de minhas melhores amigas dos anos 90. Irrepreensível em suas atitudes. Meiga, suave, forte, fiel, colaboradora, vivaz, malandra, brincalhona, sutil, abusada. Tudo isso. Guardo até hoje seu jeito doce de se acomodar no meu colo. Uma filha sem escrúpulos, confiante, garbosa. E... dengosa. Ai de mim, se não lhe desse atenção nessas horas de aconchego! Morou conosco por uns três ou quatro anos e enfeitava a minha vida todos os dias. Todos!

Se não falasse com ela, em primeiro lugar, logo que chegasse em casa, era uma tragédia. E, claro, isso acontecia com freqüência. Neguinha se empertigava toda, emburrada. Se é que bico emburra, pois é preciso esclarecer que era uma canária. Ficava toda “gorda”, com as penas ouriçadas e, quando eu punha minha mão na gaiola, me bicava para valer, como querendo me castigar. Ao contrário, se eu chegava e ia direto conversar com ela, punha comidinha entre meus dedos, como quem dá comidinha aos filhotes.

Geralmente, as pessoas não acreditam muito quando falamos assim de animais de estimação. E eu mesma custo a acreditar no que digo e, vez por outra, revejo os filmes que tenho como lembrança, dignos de publicação! Isso mesmo: uma canária esparramada no meu colo, adormecendo com um cafuné. Momentos de aconchego. Outras vezes, brincava de lutar comigo, duelo de dedo com bico. Ensinava seus filhotes a pousarem em minha cabeça e eu ficava frequentemente enfeitada com esses bichinhos coloridos. É preciso dizer que nunca me sujaram, nem a minhas roupas. Não sei como explicar, mas nunca fizeram suas necessidades em mim, nos muitos anos de convívio.

Levar Neguinha ao veterinário era uma festa. Fechávamos portas e janelas e abríamos a gaiola. Ela voava, primeiro, para minha cabeça para se assenhorar do ambiente. Depois, voava para lá a para cá até pousar perto de um dos funcionários ou mesmo em sua cabeça. Com isso estava querendo dizer que poderia ser pega por este, pois, se outro tentava pegá-la, alçava vôo direto para mim. Se fosse o escolhido, no entanto, ela deixava. Pode um bichinho desses? Pois era assim mesmo.

Incrível contar como Neguinha chegara a minhas mãos. Antes dela, tinha tido um canário que escolhera o meu apto para morar. Provavelmente, fugira de alguma gaiola e, perdido, entrara em nosso apto. Isso se deu em 1986. Entrou, ficou, ganhou gaiola, nome e sobrenome. Eu não podia pensar em um bichinho preso dentro de casa, motivo pelo qual nunca tinha tido nenhum animal de estimação. Mas ele escolhera o recanto e eu me senti sem saída. Então, enquanto estava em casa, levava a gaiola para a sala, fechava portas e janelas e o soltava. Ele voava direto para minha renda portuguesa, o lugar mais alto da sala. Ali, cantava até se desmanchar. Um canto alegre, forte, gentil, inebriante. Eu tentava estudar, mas passava muito tempo contemplando aquele precioso presente da natureza. Planta e pássaro num quadro perfeito. Resolvi chamá-lo de Zugspitze, o monte mais alto da Alemanha, que eu tivera o privilégio de conhecer. Lugar onde vi neve pela primeira vez, em pleno verão. Me entalei de frio, mas valeu a pena, já que três horas depois, usufruía novamente do calor exuberante ao pé da montanha. Zugspitze me impressionara pela neve, pela beleza e pela sensação de ter tocado o cume da Alemanha. Ao fitar aquele canário no topo de minha sala, só pude pensar nesse portentoso nome. Estava batizado. Meu canário se chamaria Zugspitze. Um nome desses, no entanto, merecia um primeiro nome familiar... então, para mim, ele era “Pitico”.

Pitico Zugspitze viveu conosco durante dez dias. Dez dias de encantamento.

Sentada à mesa da sala, às vezes, eu o chamava:

- Pitico, vem cá, vem!

E ele, incrivelmente, saía do topo da "montanha", sobrevoava a minha cabeça, tirando um fino (!) e voltava para seu lugar favorito, entre os verdes ramos da renda portuguesa. Não gostava de ser tocado, mas quase me tocava em seus vôos. No final do passeio, voltava sozinho para a gaiola.

Um acidente, que prefiro não descrever, levou esse incrível bichinho de nosso convívio. Um mês depois, minha belíssima e frondosa renda portuguesa de anos, estava completamente seca. Enlutara como eu ou meu luto a enlutou. O fato é que não resistiu ao convivio com a saudade.

Uma parte de mim morreu, com certeza. Jurei a mim mesma nunca mais ter bichinho algum. Sentia-me responsável pelo acidente. Hoje sei que foi uma responsabilidade que não me pertenceu. Mas não poder evitar, foi cruel. Enfim, melhor não ter mais ninguém. Minha faxineira, no entanto, pensando me consolar, apareceu com outro canário, um mês depois. Esse antecedeu Neguinha. Não tive como recusar a gentileza e acabei ficando com ele. Só que não cantava de jeito nenhum... como não cantava, passei a chamá-lo simplesmente por Piú. Piú só fazia “piú” mesmo... e era tremendamente tímido. Não gostava lá muito de sair da gaiola... era preciso enxotá-lo sempre para que voasse um pouco e exercitasse as asas. Se você não sabe, fazer os pássaros voarem é o melhor preventivo para que não fiquem doentes. Canários, de modo geral, morrem de complicações pulmonares. Pássaros foram feitos para voarem, não para ficarem presos em gaiolas. Então, Piú era enxotado para exercícios diários, mas logo voltava para casa. Era preciso respeitar sua timidez e reserva e fora os exercícios de praxe, eu aceitava esse novo serzinho do jeito que ele era: tímido e sem canto. Um belo dia, no entanto, olhei para Piú e ele tremia mais do que vara verde. Peguei-o com cuidado e ele não parava de tremer. Achei estranho ficar em minha mão, pois ele era muito arisco. E tremia tremia tremia. Apavorada, liguei para André, nosso veterinário, ex-veterinário dos pássaros do Jardim Zoológico e, naquela época, dono de uma clínica de animais. Entendia horrores de pássaros naturalmente e, com certeza, me salvaria.

- Pelo amor aos deuses, André, eu não sei o que está acontecendo! Piú não pára de tremer!!!

Ele começou uma série de perguntas sem fim, mas eu só queria levá-lo lá! De repente, eu disse:

- Não precisa mais, André! Está resolvido!

Breve silêncio do outro lado da linha (provavelmente, ele havia pensando no pior).

- O que houve? perguntou enfim.

Eu estava espantadíssima:

- André, o Piú acaba de botar um ovo... esse bicho é fêmea!

Daí por diante, Piú virou Piúa e, claro, dispensada do canto harmonioso dos machos...

Piúa viveu conosco por quase um ano. Morreu uns quatro meses depois que nos mudamos para a casa do Humaitá. Como a dona, detestou aquela moradia e, se no apto pouco saía da gaiola, lá se negou peremptoriamente. Decididamente, aquela casa fez muito mal às fêmeas da família...

Falecida Piúa, levando mais uma parte de meu coração, mais um motivo para não querer mais ter bicho algum.

E assim foi, por um ou dois anos.

Um dia, por pura e mera curiosidade e por amor à admiração pelas belezas da natureza, ao passar por uma praça, num recanto da Tijuca, vi uma feira de pássaros. Parei o carro e desci. Resolvi passear por ali, encantada com a plumagem e canto de canários de gaiola... acho que era uma feira de expositores. Estava tão distraída que não reparei em um senhor que se aproximou de mim, segurando uma gaiolinha minúscula, dessas que se usa apenas para portar o passarinho de um canto para outro. Pois bem, o senhor se aproximou de mim e perguntou:

- Você gostaria de comprar minha canária?

Fiz questão de não olhar para a gaiola e respondi categórica:

- Não senhor.

O homem insistiu:

-Mas eu preciso vendê-la.

Respondi enfática:

- Sou contra ter animais de estimação. Não quero ter um bicho em casa, mesmo que seja um canário.

O homem não se deu por vencido:

Ela precisa de um bom dono e sei que você cuidaria bem dela. Eu e minha esposa estamos mudando de Estado, não podemos levá-la e tomei como responsabilidade arranjar alguém que sei que cuidará dela como nós cuidamos.

Olhei-o incrédula:

– Como o senhor sabe que eu cuidaria bem dela?

- Meu coração diz isso. Por favor, fique com ela, eu a dou para você!

– Não, obrigada. Eu lhe agradeço a gentileza, mas não quero.

– Mas você não gostaria sequer de ver como ela é?


Eu tinha me recusado a baixar os olhos para vê-la, embora a gaiola fosse comum e deixasse o pássaro à mostra. Ele notara isso, levantou um pouco a gaiola e a aproximou de mim. Tentei desviar o olhar e afastei a gaiola delicadamente com a mão. Senti algo tocar o meu dedo e olhei, instintivamente. Era o bichinho, me dando uma leve bicadinha. Uma canária linda. Linda! Irresistível. O senhor notou meu encantamento a aproveitou a deixa:

- Ela gostou de você!

Acabei comprando a canária, a contragosto, mas amando por dentro. Tínhamos feito um pacto de amizade desde o primeiro segundo. O senhor, sedento por encontrar um novo e confiável dono, no caso, dona, e talvez receoso que eu desistisse da responsabilidade ou, quem sabe, disfarçando a custo a dor da separação, deixou a gaiolinha em minhas mãos e sumiu. Afastou-se apressadamente e desapareceu entre as pessoas. Não me deu tempo sequer de perguntar-lhe o nome do bichinho!!! Olhei-a e, de pronto, sempre soube que se chamava “Neguinha”. Sorri e coloquei o dedo entre as grades. Ela, dengosa, colocou uma das patas sobre ele. Estava feito o pacto. Seríamos inseparáveis até a morte.

Mas a história é mesmo longa... conto o resto na semana que vem!

2 comentários:

pblower disse...

Eulália,

Eu lembro dela.

beijocas

pat

Celina disse...

meu deus! você e Patrícia agora estão postando em capítulos!!! Sei bem como um animal enche a vida da gente. Morro de saudade do meu bebê peludo que se foi e agora me aconchego em Marie. Um unico quilo de meiguice.
Adorei!