domingo, 30 de maio de 2010

PURI


Essa história da descoberta de descendência povoou alguns anos de minha vida. Imagine que descobri que minha avó era descendente de índio, quando já contava com mais de vinte anos de idade, casada, formada, digamos... dona do meu nariz.

Começou numa discussão com minha mãe, numa dessas visitas de domingo:

- Lá vem você com seu tacape...

- Tacape? Como assim? Que tacape?


Resposta impensada:

- Sangue da família por parte de sua avó!

Sou inteligente. Burra para mil coisas da vida, mas inteligente para deduções práticas.

- Então, minha avó era índia?

Resposta pronta e irritada:

- Isso é assunto proibido na família.

- Como proibido?


Quis assuntar. Nem pensava mais no conteúdo da discussão, completamente ultrapassado e esquecido. Tentei seduzi-la. Doce ilusão. Uma coisa que minha mãe não fazia era cair em qualquer sedução desse tipo. Adorava o segredo, a proibição, a manutenção da informação, o poder sobre alguém, como detentora do objeto do desejo jamais concedido.

Assim, também, o segredo do índio, ou melhor, da índia. Só consegui saber que era a mãe do avô de minha avó materna, muitos anos depois, mais especificamente, agora, por uma cunhada que, pelo que parece, acabou sabendo mais do que eu, embora eu bem que tivesse assuntado sobre isso com meus irmãos, na época, sem muito sucesso. Enfim, o que importa é que, por tudo que é mais sagrado, eu tinha mesmo uma descendência validada pelo irrefutável senso matriarcal. Se era por parte de avó, mesmo vindo de um avô distante não sei de onde, para mim, o que importava era que eu era mesmo descendente de índia, segundo deixara escapar minha mãe, sem muita informação, naquele descompromissado entardecer de domingo.

Minha alma feminina, embora não soubesse de toda a verdade, deu asas à imaginação inventando um ancestral pulando o muro conjugal, dando como resultado uma prole de bastardos da qual eu fazia parte. Ri da idéia, por algum tempo, imaginando a tradicional família paulista, de onde eu supostamente vinha, enroscada com tanto embaraço... ou será que o jovem, cujo nome desconheço, desrespeitou os desejos dos pais e fugiu com uma bela e jovem índia para os quintos dos infernos, de onde, pouco depois surgiu a Fazenda Água Preta, de imensa plantação de arroz, onde fui apenas uma vez, na minha pré-adolescência, para gozar dos doces de Tia Letícia, conhecer o riso franco de Tia Célia e disputar a rede com o Tio Zeca? Tudo hipóteses... e minha imaginação, como se pode perceber, mostrava-se fértil. Mas não me trazia a verdade.

Então, minha avó Sinhá, que não conheci, tinha sangue de índio. Buscava descobrir traços escondidos por trás da única foto que eu tinha, desbotada e muito antiga, ela bem idosa com muitas rugas e cabelos presos.

Não dei o assunto por esquecido, mas não tinha pistas. Sabia que minha família, por parte de mãe, era paulista, de Bragança, Pindamonhangaba, Taubaté e outras bandas do interior... busquei mapas na época, sabia farejar, mas não sabia interpretar os dados.

Os anos se passaram. O assunto, no entanto, foi um desses panos de fundo de minha história de vida. Volta e meia, em conversas eu dizia:

- Tenho sangue de índio.

- Que tribo?

- Não sei, mas vou descobrir.


Fracasso é uma palavra esquisita e meio desconhecida para mim...

O assunto ficou cozinhando em banho Maria. Quase sempre voltava a ele. A ele e à minha infância de internato, no Alto da Boa Vista, no meio do mato carioca. Ah, aquele mato, o cheiro do mato, o som do mato, o andar no mato. Coisas que fazia com gozo de infância ou com sangue de índia? Não identificada com a alma de minha família, talvez sentisse necessidade, com essa descoberta, de me identificar diretamente com a alma da terra...

A Cascatinha da Tijuca fora (e é) minha grande confidente. A ela concedia o privilégio de ler meus pensamentos mais íntimos e dela sorvia o delicioso leite de suas espumas maternais. O Açude da Solidão me dava a força interior de seu lago sempre suave, doce, tranqüilo, translúcido e puro. Em suas águas me olhei muitas vezes e vi meu rosto se transformar de menina em jovem, depois, em mulher. Ainda hoje, ele me revela os traços, as rugas, a maturidade dos anos conseguidos. Volto lá sempre, pois aquela mata é, antes de tudo, a minha casa, a primeira verdadeira casa, a que me ensinou a beleza do silêncio interior, da contemplação, do sentimento de completude e de paz.

Seus símbolos formaram a minha essência, seus animais acompanharam meu desenvolvimento. Seus frutos eram colhidos com delícias mais para o meu coração do que para o meu paladar. Nada ali me inquietava. Lembro-me de ter achado uma cobra morta, no jardim do colégio, talvez façanha do velho jardineiro. Lembro-me de tê-la recolhido com cuidado e trazido comigo para mostrá-la em sua beleza para os olhos assustados das freiras e colegas. Na cobra, que causava temor aos demais, eu só conseguia sentir beleza e satisfação: pele lisa em corpo acolchoado e macio...

Degustava aquela mata, suas árvores, seus frutos, seus animais como se fosse a verdadeira e genuína família a qual tinha o privilégio de pertencer. Andando por ela, ou a contemplando da janela da sala de estudos, horas a fio, não pensava senão na alegria de deixar meus olhos perdidos pelas copas das árvores de vários tons e feitios, meus ouvidos entregues aos seus sons. À noite, os vagalumes invadiam o dormitório e suas luzes povoavam o meu coração. Luzes na escuridão: eles me ensinaram que há sempre luz na escuridão. A mata me ensinou que há conteúdo no silêncio. As caminhadas solitárias me ensinaram que, muitas vezes, é se perdendo que a gente se acha...

Sangue de índio.

Um dia, encontrei João, entre as boas e belas coisas que me custaram a passagem de minha vida acadêmica por uma universidade pública, como professora adjunta, onde, finalmente, pude realizar um de meus grandes sonhos – criar um programa de extensão. Um programa de extensão nos coloca diretamente com o trabalho voluntário junto a uma comunidade. Eu tinha um desses projetos, ligado à Educação Especial, o que me colocou em contato com outros professores voluntários, entre eles, esse magnífico colega, descendente de índios e, claro, fundador de um programa extensionista ligado a comunidades indígenas. Contei minha história, achando que pegara o fio da meada. Ele, generoso, pesquisou, pesquisou, pesquisou. Chegou muito perto de várias possibilidades, pelos mapas geográficos e as sondagens de onde minha família tinha suas origens... nada. Um dia, acalentou meu coração:

- Querida, ser índio não é apenas ter o sangue, é também um estado de espírito.

Sorri. Ele tinha razão... e quase teria esquecido a história finalmente, não fosse uma feira comunitária que todos estávamos organizando para o grande evento anual que iria expor nossas atividades extensionistas ao público, em geral.

Afoita e atirada, sem ter uma ajuda no momento, urgia carregar os apetrechos de minha sala para o espaço da feira. Consegui um carrinho de carga, mas não conseguia um funcionário que desse conta da tal carga. Eu estava com quarenta e oito anos e, sinceramente, tal era a ênfase dada ao trabalho acadêmico, que me descuidava totalmente da manutenção dos cuidados do corpo, caminhadas, exercícios e demais necessidades básicas para uma vida cotidiana com corpo em forma, saudável. Importa esclarecer esse sedentarismo para explicar o que se sucedeu. Comecei, sozinha, a carregar a carga, que de leve não tinha nada. E foi no momento em que levantava com muita facilidade uma televisão avantajada para o meu peso e tamanho que João passou pelo corredor, me viu e exclamou:

- Você é Puri!

Puri? Sim, Puri. Uma tribo de hábeis pescadores que vivera no litoral do Espírito Santo e Rio de Janeiro, mas que, com a chegada dos portugueses se dispersou pelo interior do Brasil. Pacíficos, mais tarde, se aproximaram dos colonizadores e era comum sua presença nas fazendas como agregados (aí é que deve ter entrado o meu ancestral...). A história registra um grande massacre dos índios puris pelos habitantes que formaram a cidade de Resende.

Ora, minha mãe nascera em Bragança, mas fora criada em Resende, onde morava uma boa parte de sua família ancestral! Foi ali que cresceu e se formou normalista. Além disso, esses índios também habitaram regiões onde hoje se localizam as cidades de Taubaté, Lorena, Guaratinguetá, tudo bem conhecido e habitado por minha família materna. Mostrei-lhe novamente a foto de minha avó, esmaecida pelos anos. Olhou-a cuidadosamente, acenou com a cabeça:

- É provável.

Para mim, o provável passou a ser o certo. Tudo conferia!

Mas por que João descobrira que eu poderia ser puri, só ao me olhar carregando uma televisão de grande porte?

- Pelo cheiro, me respondeu ele, sorrindo. Depois acrescentou:

- Os puris eram baixos, mas de musculatura muito forte, muito ágeis. Só juntei as peças.

Eu tinha sido esportista no colégio, do time oficial de vôlei e campeã de corrida. Não havia quem me barrasse ou fosse mais ágil que eu. Conferi os dados e me batizei Puri.

Gostei de me batizar Puri. Gente mansa e tímida, que é o que significa o nome, lá na língua deles, de origem um pouco desconhecida, cujos ancestrais foram os Coropós e os Coroados. Não sou tímida... essa característica deve ter sumido por influência do sangue paterno. Mansa? Não sei, os amigos poderiam dizer melhor. Mas ágil e forte...

Puri. De puro, sonhei eu, em paralelo com os sons de nossa língua... de uma pureza vinda da selva ou do interior escondido no que temos de mais sublime em nossa origem como seres humanos. Puri.
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5 comentários:

Virgem Casa 6 disse...

Uma coisa eu posso garantir: você é da tribo Sol/Marte com certeza! Força, coragem, ousadia e muita vontade de viver!

pblower disse...

Este eu já conhecia em primeira mão.
beijocas,pat

marcelo lemos disse...

Oi Eulália tenho pesquisado sobre os Puris do sudeste e se quiser alguma informação estamos a disposição.

Unknown disse...

Marcelo, eu sou bisneta de Índias Puri de Minas Gerais, quero muito por favor ter mais informações dos Puri e você como posso tirar cidadania indigena? Qual o seu email? Obrigada

Unknown disse...

Eu sou descendente direta de Puri, sou india com muito orgulho, meus avos paternos são filhos de índios Puri, minha Bisa foi laçada pelo Bisavô e do lado materno também tive uma Bisa Puri 🙌🙏 sou bem indiazinha 😊 Você sabe como faco pra tirar cidadania indigena? Minha família mora em São Paulo, mais são todos de Minas Gerais, bjs e obrigada