domingo, 9 de maio de 2010

A MADRE



Tinha acabado de me formar, quando fui chamada pela titular da cadeira de Língua Grega e Cultura Clássica da Universidade. Queria que eu a assessorasse na disciplina, pelo período de um ano, já que estava preparando duas alunas, há quase quatro, para serem suas futuras assistentes.

De saída, disse que não. Aula de grego? Nem pensar! Como iria ensinar grego com meus míseros dois anos de estudo da língua em meu currículo de Português e Literatura? A titular, no entanto, não era pessoa de receber um não. Ah, isso não era não... e me armadilhou com a promessa de que a primeira vaga em língua portuguesa, seria minha, se eu aceitasse. E ela tinha influência suficiente para conseguir isso. Depois, sem me deixar muito tempo para responder, mandou meus 22 anos de juventude para casa, para pensar por uma semana. Garantiu-me que me prepararia o suficiente para pegar o primeiro período, em março, após um árduo treinamento de três meses.

Saí entontecida. Sabia que diria não. Comentei com Virgínia, minha grande companheira de turma, minha amiga do coração. Éramos tão inseparáveis que a turma nos chamava de Cosme e Damião. Pois bem, Virgínia é uma peça. Uma peça rara em todos os sentidos. Diz a coisa mais séria do mundo no meio de uma estrondosa gargalhada:

- Ué, quem sabe grego aqui? Só você e a titular mesmo. Aceita. Os alunos não vão nem notar.


Essa era a Virgínia, fazendo pouco dos meus desesperos, sabendo o quanto de cdf eu tinha para aprender grego em três meses, se fosse necessário. Ainda mais com uma titular daquelas!

Precisava trabalhar, mas não me venderia por uma promessa de um futuro, mesmo que promissor. Não aceitaria.

Uma semana depois, como tinha sido estabelecido, no lugar e hora determinados pela mestra, lá estava eu, com a resposta ensaiada, agradecendo o privilégio, mas recusando. Entrei na sala contrita, mas trêmula. Dizer não a ela exigiria um artesanato mental. Era a única freira que dava aula no Curso de Letras e, diga-se de passagem, uma das fundadoras da Ordem no Brasil, ou melhor, uma das fundadoras do ensino universitário da Ordem, no Brasil. Sotaque francês carregadíssimo, um tigre andando pelos corredores, bem à moda do início do século. Desnecessário dizer que nascera em 1899 e estávamos em 1973, mas ela mantinha a classe do início do século, chamando a todos os alunos de senhor e senhora, pura formalidade do século XIX. Precisa dizer mais? Pois então, era para ela que eu iria dizer não.

E não disse. Ela não me deu tempo. Parece que adivinhava a minha resposta e já me esperava sentada à mesa, com livros e gramáticas de grego (escritos por ela mesma e reconhecidos internacionalmente). O que ela queria comigo, afinal? Sempre fora boa aluna, tinha tirado 10 em todas as avaliações de grego, é certo, adorava a língua e a cultura clássica, mas... sequer fora sua aluna, já que quando fizera a disciplina ela estava na Grécia! Por que seus faróis apontaram na minha direção? Por que não dava a disciplina a quem tinha sido meu professor? Só os deuses me explicarão um dia. Mal entrei na sala e antes que pudesse dizer qualquer coisa, ela disse:

- Temos muito o que fazer, teremos aulas de grego todas as manhãs, das 8 às 12 horas, durante esses três meses. À tarde, a senhora estudará em casa e me mostrará o resultado de seus exercícios na manhã seguinte. Pararemos aos domingos, para o descanso sagrado. Trouxe um caderno? Vejo que não. Poderá providenciar para a aula de amanhã.

Assim, de uma tacada só, ela falou apontando a cadeira a seu lado e eu, com a respiração em suspenso, me senti aquela menininha do colégio de freiras diante daquela beldade, respeitada e homenageada pelo governo grego, tendo recebido as chaves de Athenas, do próprio prefeito da cidade, em uma de suas visitas ao país sagrado. Tá bom ou quer mais? Aquilo tudo, ali, na minha frente, sem que eu conseguisse reagir. Só me restava eu mesma me convencer de que aquela era uma das grandes oportunidades da minha vida. E foi. Desnecessário dizer que suas alunas assistentes, por caminhos diversos que a vida traça, não puderam assumir a cadeira no ano seguinte. Uma delas acompanhou o marido em viagens profissionais e só voltaria dois anos depois, outra casou e não trabalhou. Sobrava para mim, com certeza. Mas ela mesma já havia se encarregado de que não me dispensaria de todo, pois, ao longo do ano, as relações tanto profissionais como de confiança mútua estavam se fortalecendo. Sem contar que eu já estava completamente apaixonada pelo grego...

Aos poucos percebi que o tigre era um tigre de fachada, ou melhor, um tigre de papel. Sua formalidade escondia um carinho imenso, um carinho disfarçado, mas suave e brando. E ela conservava uma criança interior incrível, escondida por trás de sua disciplinada forma de ser publicamente. Com o correr dos anos, nos transformamos em grandes amigas, para espanto de todos, que a tratavam com o respeito que se dá a uma rainha. Mal sabiam... Quantas vezes eu a pegava de carro e fugíamos Rio afora. Ela adorava ir à Barra da Tijuca, num posto de sorvete, na época intitulado “Sem nome”. Ali, não havia dia que repetisse o mesmo sabor de sorvete. Eu sempre pedia o de creme ou de ameixa, mas ela já teria provado quase todos. Dali, íamos ver os surfistas para que ela se deliciasse com as ondas, sentada na areia, com seus mais de 70 anos de idade, uma corcunda considerável que dificultava muito seu caminhar, mas que, incrivelmente, apenas lhe dava um toque a mais. Era ali que ela descansava sua saudade das praias bretãs.

Num desses dias, estávamos tomando sorvete e um grupo de surfistas, meninos e meninas, todos adolescentes, se aproximaram. As pranchas de surf a atraíram imediatamente e, em menos de cinco minutos, estávamos eu e o vendedor no balcão, enquanto ela, com um sorvete (provavelmente de manga misturado com alguma outra fruta exótica), já se misturara com os meninos, pedindo licença para passar as mãos nas pranchas, coletando mil informações. Aquela freira de hábito longo, no meio de meninas com biquínis minúsculos e meninos de sungas apertadas merecia um quadro modernista. Mas eu estava sem a máquina e, mesmo que tirasse a foto, talvez ninguém na Universidade acreditasse que era a mesma pessoa. Nesse dia, ela saiu com um monte de papeizinhos, com telefones que garantiriam também sua entrada na Pedra Bonita para ver de perto as asas delta, que estavam começando a fazer sucesso na época. Imagine! Era também uma de suas paixões ir à praia do Pepino para ver essas asas de Ícaro pousarem. No início, eu ficava surpresa com essas empreitadas, mas, com o tempo, fui me acostumando e, não raro, fugíamos literalmente para Grumari, Prainha ou Floresta da Tijuca, em passeios incansáveis, de papos amenos e muitas lições de vida.

Ela era mesmo incrível e nosso carinho mútuo, maternal-filial, não pode ser descrito. Tento, apenas, evocar o sentido. Um exemplo da suavidade e feminilidade de seu coração pode ser contado em um dia em que estava adoecida. Fui visitá-la e, geralmente, não se pode ver uma religiosa acamada. Ela não estava mesmo nada bem e eu queria apenas que ela soubesse que eu tinha ido lá, levando-lhe algumas frutas. Era como meu carinho poderia alcançá-la. Qual não foi a minha surpresa, quando a religiosa voltou me dizendo que a seguisse! Fui vê-la, em seu pequeno quarto, deitada com sua camisola, bastante pálida, mas me dizendo tranquilamente que não ficasse preocupada, pois estaria bem dentro de dias. Minha juventude perguntou o que ela queria que eu fizesse, que pedisse qualquer coisa!

- Qualquer coisa?

- Sim!

- Qualquer mesmo?


Minha juventude a postos:

- Sim, qualquer coisa.

Ela sorriu e disse:

- Todas as noites, aqui deitada, vejo a lua através da janela e a acho tão linda... você a traria para mim?

Sorri. Era assim que ela me ensinava as coisas sobre a vida...

Anos mais tarde, quando resolveu se aposentar, retirando-se para a casa de repouso da congregação, em Salvador, contava os 80 anos de idade e fez questão de se despedir de mim, por último, no aeroporto. Enquanto se despedia me convidando a visitá-la sempre que quisesse, pela primeira vez, explicitou diretamente seu carinho por mim. Não que eu não soubesse, mas jamais tinha ouvido:

- Deus lhe deu uma vida difícil, minha filha, mas... em compensação... presenteou-a com o carinho de uma segunda mãe.

Não respondi. Não conseguiria! Apenas abracei-a esforçando-me ao máximo para atender a seu desejo de véspera:

- Por favor, não chore amanhã. Também vou sentir saudades, mas aos 80 anos, preciso me retirar do Rio. Há muitas traduções de peças gregas e um dicionário etimológico que também quero escrever.

Aos oitenta anos, ela se retirava do trabalho de dar aulas, para poder trabalhar mais. Pode? Pode. Deixou a cadeira de língua grega em minhas mãos, atividade que levei até 1986, quando me retirei dessa Universidade. Visitei-a muitas vezes, até sua morte, dez anos depois. Saudades sempre. Até hoje. Mas agora se traduz como uma lembrança suave, amiga e gentil.

O fato é que este imenso amor à arte grega, que já estava entranhado em mim, desde minha infância, foi devidamente alimentado por tão espetacular criatura.

E passei a assumir a cadeira de grego, mais especificamente, língua grega, a partir de então, já que também dava aula de língua portuguesa, como ela havia prometido, desde o início. As aulas de literatura passaram para uma daquelas antigas alunas, que voltara do exterior com o marido.

Visitei-a, muitas vezes, para estarmos juntas por uma tarde, tomarmos um chá e para fazer-lhe companhia para rezar duas aves-marias, uma em francês e outra em grego, pois era a única pessoa disponível com quem ela podia contar para compartilhar a oração que mais amava recitar, nas suas duas línguas prediletas. Eu nem me considerava uma pessoa religiosa, mas, naquele momento isso não tinha a menor importância. Lembro-me que, em sua missa de sétimo dia, fui apanhada, de surpresa, com o celebrante me tirando da platéia para dizer algumas palavras sobre ela, já que eu era a pessoa mais chegada que todos conheciam. Não conseguia dizer palavra, mas tenho certeza de que foi ela que veio em meu socorro, ainda desta vez, e eu apenas disse:

- Não consigo dizer nada sobre ela hoje. Mas sei que podemos fazer algo de que ela gostaria muito. Rezemos a Ave-Maria, sua prece favorita.

Essa foi minha segunda mãe. Quando íamos ao consulado juntas, como as vestes de todos os convivas eram dos mais variados tipos, seu hábito não era interpretado como religioso e, como ambas tínhamos olhos claros, por muitas vezes perguntavam ao se aproximarem dela, após ela ser apresentada como a autoridade na área no Brasil:

- E esta é sua filha?

Ela sorria e apenas respondia:

- Posso dizer que sim.

- Seguindo os passos da mãe?

- Com certeza, sim.


Lembro-me de seu sotaque carregado, de um francês-bretão puríssimo. Lembro-me de suas peças traduzidas, linha a linha, pois eu fui revisora de todas, já que ela, sendo francesa, confiava em mim para a arte final. Tenho, até hoje, a tradução de sua última peça, cuja cópia tirei e cujos originais entreguei à Ordem Religiosa a que pertencia para que fosse devidamente publicada. Nunca aconteceu, pois isso jamais foi prioridade lá. Quando ela era viva, sua própria autoridade na Ordem lhe dava acesso direto à gráfica e às providências necessárias. Desta peça, eu fui a única privilegiada na leitura e sinto tê-la de guardar apenas comigo, pois os direitos autorais dependem da Ordem. Nada posso fazer.

Seu dicionário etimológico, segundo o que tinha me informado, em minha penúltima visita, já tinha chegado à letra R e estava esperando terminá-lo para colocar a revisão em minhas mãos. Adoeceu e faleceu em breve espaço de tempo. Quando a vi pela última vez, estava semi-consciente e dela apenas pude ouvir, a muito custo, que nosso próximo encontro seria na eternidade. Assim, nada pude fazer, pois não tive acesso a esses tesouros. Avisei à Ordem sobre a preciosidade que estava guardada entre seus pertences e que estava pronta a fazer as revisões necessárias. O original, no entanto, nunca chegou a minhas mãos. Eu já não trabalhava mais na Universidade, mas estava pronta a fazer o trabalho, sem custos, pelo tanto que ganharíamos, tendo esta preciosidade publicada. Seu dicionário não veio a público. E nunca mais soube de seus escritos.

Guardo com carinho as cópias dos originais de sua ultima peça traduzida, cuja tradução, aliás, não existe em português, até hoje. Sua letrinha tremida, fazendo comentários nas margens, segundo minha revisão.

Seu falecimento deu-se em 1990, justamente no seu aniversário de 90 anos. Dizem que é um privilégio morrer em seu próprio aniversário. Foi o que aconteceu.

Entre todas as memórias, guardo, sobretudo, a imagem fantástica daquela figura entre jovens com biquinis minúsculos e sungas justíssimas, ela, com quase oitenta anos, no final da década de 70, alisando as pranchas de surfe, chamando os jovens de senhores e senhoras e voltando com os olhos brilhantes, a mão cheia de pedacinhos de papel rasgados com vários números de telefones e me perguntando:

- Quando vamos à Pedra Bonita vê-los saírem em seus vôos?

Vez por outra, vou à Pedra Bonita, olhar a magnífica paisagem, dar asas a minha imaginação, descansar meus sonhos, carregar meus pulmões com o ar do Alto da Boa Vista e curtir esse pedaço de céu, em pleno Rio de Janeiro.

Entre meus pensamentos, ela sempre aparece e posso dizer com intensa felicidade interior:

- Agora você já pode voar de onde e para onde quiser, à vontade, com suas asas deltas naturais, entre a paisagem e os deuses.
Se tiver um tempinho, olhe um pouco por mim!

Um comentário:

pblower disse...

Grande texto para o dia das mães. O seu texto para o dia das mães.
Como é bonito poder ler sobre a delicadeza de um ser humano tão especial.
Este foi para mim um grande presente.