sábado, 7 de agosto de 2010

O SEGREDO - A REVANCHE



A revanche prometida no conto da semana passada:

As alunas tinham um conselho. Chamávamos de “conselho das alunas”. Isso mesmo, coisa de filme, de livros romanescos. As freiras não sabiam que existia, aliás, muitas alunas também não. Era uma espécie de irmandade secreta, que entrava em vigor quando alguma coisa era considerada errada e deveria se submeter a julgamento, segundo nosso critério. Um julgamento necessário, de alguma coisa que teria “escapado” à ética estabelecida pelo poder da ordem local, no caso, as freiras. Aprendi muito com o conselho das alunas, do qual, aliás, eu era uma das líderes, dada a minha posição de aluna antiqüíssima. Geralmente, as moças ficavam internadas apenas de um a três anos, no máximo, só para tomarem um banho de loja “princesesca”. Eu era a anfitriã de todas elas, mesmo das mais velhas. Quando alguém chorava com saudades de casa, se sentia só, triste, mal nos estudos, eu era a “aluna irmã” que estava ali, para uma palavra amiga, para ajudar nos estudos, para dar uma solução. Eu me sentia em casa e, portanto, conseguia ver isso tudo com mais naturalidade e segurança. O colégio me ensinou a ver as pessoas que me cercam como irmãos, pois o que contava ali não era o sangue, era o convívio. Outro presente da vida, para as intempéries do futuro, em meu percurso pelo mundo.

E foi porque conseguia entender essas angústias, e por ser também uma aluna e não uma freira que, espontaneamente, o conselho das alunas começou a ser criado, pois me procuravam para ajudar a resolver casos insolúveis pela “lei local”. Instintivamente, fui achando o peso grande demais para minha responsabilidade e acabamos por formar uma espécie conselho, pois, assim, poderíamos ponderar, ouvindo mais vozes, a cada vez que fosse necessária uma intervenção dessa lei marginal, mas, convenhamos, a nosso ver, de uma ética interna impecável. Tudo, é claro, aos nossos olhos adolescentes. Contarei, em outra oportunidade, histórias interessantes advindas do conselho das alunas, o mais democrático que conheci. Por ora, voltemos à história.

Nos reunimos no recreio, fazendo pequenas rodinhas, fingindo brincar de alguma coisa como “escravos de Jó”, ”conte-me seu segredo” ou coisa assim. Era para disfarçar, pois não tínhamos privacidade suficiente, no contexto social, para segredos que freiras não pudessem ouvir. No caso, como já éramos maiores, até que tínhamos um pouco mais de privacidade. Mesmo assim, nesses casos, dávamos um jeito de disfarçar. Escolher que tipo de castigo nossas colegas estraga-prazeres teriam não foi fácil. Tinha de ser algo tão grandioso que ficasse na história. E ficou.

Aproveitamos um privilégio que a tal turma que sofreria a revanche tinha conquistado a duríssimas penas, pois ninguém no colégio tinha conseguido algo igual. Deveria ter sido por muita influência da mestre de classe (a tal irmã coordenadora) somado a um comportamento impecável da turma, durante muito tempo: elas podiam tomar banho antes de se deitarem. Todas as turmas tinham horário para o banho, dependendo da série, mas ninguém antes de deitar. Motivo: poderia fazer muito barulho e as pequenas acordariam. As pequenas (7 e 8 anos) deitavam-se às 19.30. Pois bem, a tal turma tinha conseguido o privilégio de tomar banho às 20 horas, para dormirem bem quentinhas. Isso, no frio do Alto da Boa Vista é de um privilégio sem tamanho. E o que elas teriam de fazer em troca? Serem absolutamente silenciosas, andando pé ante pé pelos corredores da ala dos dormitórios para não acordarem os anjinhos do colégio. E faziam. Com muita classe, diga-se de passagem. Eu tinha sido uma delas, quando fui da turma do quarto ginasial (assim denominado na época). O pé ante pé, incluía o ritual de tirar as toalhas dos cavaletes de madeira, super frágeis. As toalhas ficavam penduradas ali e os cavaletes ficavam apenas apoiados no chão. Qualquer deslize faria barulho e qualquer barulho naquele casarão principesco no silêncio noturno do Alto da Boa Vista ecoava por toda a mata. Pois bem, nós faríamos algo que provocasse um barulhaço. Como? Dando nós em algumas toalhas. Quando puxadas, trariam consigo os cavaletes e as madeiras, caindo no piso marmóreo, fariam o maior barulho da história do colégio.

Ok, aprovado por unanimidade. E agora, quem vai dar os nós nas toalhas? Muito difícil, pois as alas do colégio não podem ser assim visitadas a qualquer hora. Você só podia ir à zona dos dormitórios por motivos heróicos: deitar porque está doente, trocar de peças íntimas nos dias femininos e coisas assim. De qualquer forma, nunca mais de uma aluna de cada vez e, com licença expressa de uma mestra de classe para se afastar do grupo da turma. Isso quer dizer que tínhamos a obrigação expressa de só andarmos sozinhas ou em bando. Mas isso é outra história, que trouxe vantagens e desvantagens para minha vida futura. Deixemos estes detalhes para outro momento.

Quem faz? Eu, que tive a idéia, claro, me incluí. Carmen Lucia, minha grande amiga de quarto fez eco. Ninguém mais se atreveu, embora a idéia tenha sido aprovada com louvor. Fizemos. Desnecessário dizer que foi durante o recreio após o jantar (das 19.10 às 19.30), tendo eu pedido licença para ir ao banheiro e Carmen para trocar de peças íntimas. De propósito, pedimos para freiras diferentes para que desse certo as duas poderem sair ao mesmo tempo. Já tínhamos essa estratégia, quando necessário. O recreio do jantar era no salão de cima, um salão enorme que ocupava metade de todo o andar do colégio, chamado por nós de “terraço”. Este recreio juntava, apenas nesta hora do dia, quase todas as alunas do colégio. Era, então, mais fácil de escapulir, cada aluna pedindo para uma freira diferente. Elas não tinham notado isso. Toda a segurança tem lá seus furos.

Entrar na ala dos dormitórios completamente às escuras, encontrar os cavaletes certos e fazer o combinado só poderia ser conseguido por alguém que conhecia muito bem o colégio como eu, driblando a vigilância pela escada de serviço, etc. Como você vê, se já passou pelo capítulo de minha história em Braga – “golpe de mestre” - minha juventude já ensaiava amar a vida temperada com suspense, um bater de coração mais rápido. Mas eu mal sabia o que me esperava!...

Cumprida a tarefa, voltamos para o recreio a tempo de nos juntarmos às colegas para o estudo da noite, na outra ala do prédio. Inusitadamente, as maiores quiseram se deitar mais cedo naquele dia. Claro, queríamos ouvir, no camarote da cama, o resultado da façanha.

Não posso descrever o que foi. O barulho foi tão intenso, que me arrependi. Parecia que o colégio estava vindo abaixo, que algum andar estava despencando, que estruturas estavam desmoronando. Choro desesperado, angústia das pequeninas, luzes se acendendo rapidamente, freiras correndo e acudindo de todos os lados. O que foi o que não foi, etc. Nós lá, deitadas, quietas. Eu, com pena das pequeninas, nem conseguia curtir a vingança. Não tinha me lembrado do horror que poderia causar-lhes. Alunas que arriscaram se levantar tinham comandos imediatos de suas mestras: voltem para a cama meninas, quietas, aguardem, está tudo bem, durmam. Durmam?

Vozes das duas mestras de classe – da nossa e da tal turma da quarta série - despencadas no ar, a alto e bom som:

- Foram suas meninas!

- Por que as acusa? Como pode provar?


Chega a Senhora Superiora. O que houve, o que não houve, quem foi, quem não foi. Nossa mestra empacada na palavra:

- Minhas meninas não foram.

–Veremos. Vamos perguntar a elas.


Nossa mestra começou pelo primeiro quarto do outro lado do corredor. Nessa ordem, o nosso seria o último. Ouvíamos o som do interruptor da luz e o fio de claridade, na penumbra do corredor, se aproximando de nosso quarto, a cada vez. Acende a luz:

- Foi você, Beth?

- Não senhora.

- Foi você, Lucia?

- Não senhora.

- Foi você Laura?

- Não senhora.


Apaga a luz, outro quarto, acende a luz...

- Foi você Fernanda?

- Não senhora.


Comecei a suar frio. Carmen Lucia queria vomitar. Não sabíamos que daria nisso. A coisa era séria, tão séria quanto a aventura da terceira série, dois anos antes, que conto outro dia. Só que lá, não houve “culpadas” e a coisa ficou por isso mesmo. Aqui, não. Era pessoal e daria expulsão do colégio, na certa! Carmen Lucia tremia, eu queria morrer. O que vamos fazer? Ela disse que mentiria. Eu disse que não iria conseguir, mas achava que não estaria viva para responder. Isso mesmo, deu uma compressão tal no peito, meus ouvidos zuniam de tal forma, eu suava tanto que pensei mesmo que teria um ataque iminente. Um ataque qualquer, fatal. A voz de nossa mestra se aproximava, quarto a quarto. Pensei rápido. Eu não poderia ser expulsa, pois estava lá por determinação do juiz. Pelo menos, assim achava. Carmen Lucia queria terminar o curso normal para se casar depois. Disse que seus pais jamais a perdoariam. Eu disse para mentir e que eu pensaria até lá. Não estava disposta a mentir. Acho que não me perdoaria. Eu não inventei a vingança? Quem mandou? Acho que nunca me arrependi tanto. Sério. A voz de nossa mestra estava muito próxima.

– Foi você Cristina?

- Não senhora.
Quarto ao lado!!!

Pensei que fosse desmaiar, na verdade, acho que estava bem próxima disso. Sabia que seria incapaz de me levantar, sentia tudo zonzo, minha honra comprometida, pois sempre fora uma aluna exemplar. Das traquinagens, nunca descoberta. Era vez de me enfrentar, talvez pela primeira vez. Testar-me na minha sempre tão defendida correção. Pensei em morrer com honra. Quem tem dezesseis anos é assim mesmo. A luz do quarto ao lado se apagou. Eu ainda não tinha decidido o que fazer, mas sabia que seria a próxima. Ouvi a voz de nossa mestra dizer:

- Foram todas interrogadas.

Ouvi a Superiora perguntar:

- E este?

Deveria se referir ao nosso quarto.

- Este é o meu quarto, respondeu a irmã.

Não acreditei. A voz compenetrada de nossa mestra escondia que conhecia bem o seu “rebanho” e simplesmente nos acobertava, feliz pelo enfrentamento a sua arqui-inimiga, a mestra da quarta série.

Inacreditável. Num segundo percebi tudo. Ela sabia... talvez tivesse, até, o conhecimento do conselho de alunas, quem sabe? Meu colchão estava encharcado de suor. Eu estava num mundo que não era esse. Até hoje não sei se a Superiora também se sentiu cúmplice, pois eu era muito conhecida em todo o colégio e seria estranho não ter se lembrado que o interrogatório não tinha passado por mim. Achei estranho. Mas estava profundamente aliviada. E foi assim, no susto, que fui apresentada a um protótipo de mundo político, não muito diferente do que vivemos aqui fora.

Até hoje, na hora H, não sei o que diria. Gosto de pensar que defenderia minha honra me responsabilizando por tudo. Jamais saberei, pois ninguém se conhece tão profundamente quanto gostaria. Mas serviu de estágio para o futuro, ao assumir melhor a responsabilidade pelos meus atos, pelas minhas atitudes diante da vida.

Isto eu devo ao internato, à necessidade cotidiana premente de estar sempre atenta. Melhor a lição que o castigo. Será que minha mestra, boa psicóloga que era, sabia disso?

Dois anos depois, saí do internato. Voltei a visitá-lo algumas vezes, pois, como você já sabe, fora a minha casa por dez anos. Deixei raízes, embora tenha levado pouco tempo para me livrar delas, tão díspare é o mundo real, aqui fora. No início, no entanto, busquei, algumas vezes, os corredores, os ecos, a mata para meu aconchego, como quem volta à casa materna, em busca de abrigo.

Na primeira visita, ao me ver, minha mestra me puxou para um canto e apenas perguntou:

- Foi você?

Nossos olhares se esbarraram. Respondi com um leve aceno de cabeça.

E juro que vi um sorriso discreto, de secreta cumplicidade, jamais revelada.

2 comentários:

Celina disse...

Querida, que relato! Engraçado e poético ao mesmo tempo. Acho que daria livro, se você contasse tudo que viveu e principalmente sentiu durante esses anos. Emocionante. Adorei!

pblower disse...

Eu já falei para Eulália que daria livro....

Quantas histórias! Acho que está sendo ótimo vc se revisitar.

muito bom!!!!