sábado, 21 de agosto de 2010

SAPO


Não havia segredo no internato que eu não conhecesse, regra que eu não soubesse, travessuras que não tivesse feito, recanto da casa que eu não dominasse. No fundo, acho que as freiras acalentavam a idéia de que um dia, eu seria uma delas. Doce ilusão, pois não conheciam o espírito que vivia dentro de mim. E este espírito é a alma das minhas aventuras no internato: instalada assim, como se estivesse em casa (e, na verdade, estava...), é claro que me sentia à vontade para as mil traquinagens, tão comuns na infância e na adolescência.

Das travessuras da infância, destaco uma, da qual participei, mas não fui autora. Algo tão ingênuo quanto o gosto infantil pelas coisas simples, ao mesmo tempo que indica que o ser humano, desde pequeno, não se isenta de espertezas e oportunismos.

Era o trote nas mais novas. Não conhecíamos isso pelo nome. Na teoria, nunca tínhamos ouvido falar, mas liguei o fato à minha entrada na universidade, muitos anos depois. O trote. Um trote bem maldoso, por sinal, se pensarmos na suposta simplicidade da alma infantil.

Às refeições, era-nos permitido repetir elementos do prato salgado, mas jamais a sobremesa. Na melhor das hipóteses você pode estar pensando que as freiras tinham o honrado compromisso de nos ensinar a preferência pelas proteínas e a distância dos açúcares. Nada disso, pois eu fiz questão de perguntar. A resposta foi a de que devemos comer o prato salgado porque nos alimenta e o doce, como é prêmio, deve ser comedido. Conclui-se, assim, que devíamos nos habituar ao sacrifício, pois o sacrifício é muito bem recebido por deus nosso senhor. Em outras palavras, o dever pode ser cumprido até em excesso, mas o prazer e a alegria devem ser comedidos.

De onde será que elas tiravam essas pérolas de sabedoria?

Era permitido a uma aluna, portanto, ceder sua sobremesa a outra, quer por sacrifício, quer por não apreciá-la. Tínhamos de comer de tudo que fosse o prato principal, gostássemos ou não gostássemos. Mas, a respeito da sobremesa, era permitido até ceder, não apenas recusar.

Em outros termos, você pode ceder no prêmio ou no prazer, jamais na obrigação.

Custei a me desvencilhar dessa prática ardilosa e subterraneamente plantada em minhas atitudes de vida adulta, principalmente no que se referia à prioridade ao aspecto profissional, mesmo em se tratando, muitas vezes, de domingos e feriados.

Mas voltemos às refeições: havia uma sobremesa de especial paladar, cobiçada por todas internas. Até hoje não conheço a receita, guardada a sete chaves em algum lugar não accessível a nossa sedenta curiosidade, segredo jamais revelado, nem às vésperas de eu sair do colégio. Posso adiantar, no entanto, que pelo paladar sentíamos o sabor de banana, açúcar e canela. Acho também que era frita, mas sequíssima, posso garantir! Para completar a delícia, não era muito doce e nada enjoativa mesmo para mim que sou chatíssima para cheiros e paladares. Um manjarzinho divino e raro. Aparecia uma vez por mês. Talvez fosse o sacrifício consagrado das freiras da cozinha prepararem cerca de duzentos desses manjares de uma só vez (éramos cerca de 100 internas e 100 semi-internas). Devia mesmo dar um trabalhão. Mas eram simplesmente deliciosos. Só de me lembrar deles, sinto o cheiro, o gosto, o apetitoso prazer. Mas tinha uma forma estranha. Por saber cozinhar, imagino que fosse desses doces de tachos em que você mete um colherão, pega uma porção e joga no óleo quente ou coisa assim. Ficava um doce meio deformado e, por incrível que pareça, com um jeito parecido com a de um sapo esparramado. Essa era a analogia que fazíamos, crianças habituadas a fazerem o recreio em espaços cercados pela frondosa, pura e plena floresta da Tijuca. Assim, todas nós nos habituamos a denominar “sapo” a esse deliciosíssimo quitute dos deuses.

A primeira aluna que percebia o movimento da cozinha e via a sobremesa nos bandejões passava adiante a senha da sobremesa do dia. Assim, tão logo essas alunas sentadas mais próximas à cozinha descortinavam qual seria a sobremesa, era questão de segundos a notícia se espalhar por todo o refeitório. Um telefone sem fio perfeito, apenas com movimentos dos lábios, já que nosso silêncio só poderia ser quebrado depois que o último prato salgado fosse recolhido da mesa. Dia de sapo era um bulício. Nem precisávamos da leitura labial. O mexer dos ombros, os sorrisos já denunciavam que “era dia de sapo”.

No primeiro dia do ano em que éramos brindadas pelo sapo, o trote acontecia. Tudo na maior linha, na maior ética, no maior requinte. Coitadas das alunas novas...

Uma veterana começava o teatro tão logo o silêncio era suspenso e poderíamos começar a falar:

- Oba, hoje a sobremesa é sapo!

A aluna nova ou as novas faziam uma cara de espanto:

- Sapo?

- É, a sobremesa mais gostosa do colégio, você vai ver!

- Mas é sapo mesmo?

- Ué, claro que é sapo, você vai ver. É uma delícia.

- Como é feito?

- Não sabemos, mas tem um gosto parecido com banana, leva açúcar, canela e a receita é secreta, as freiras não contam, não tem jeito.


Era muito convincente, já que na mata, com certeza, haveria milhares de sapos à disposição para qualquer tipo de empreitada culinária, se quisessem. Mas tínhamos o requinte:

- Naturalmente, as freiras devem levar muito tempo para juntarem a quantidade de sapos suficiente, pois só temos dessa sobremesa uma vez por mês, portanto, aproveite a oportunidade, coma saboreando bem, pois já sabe que só terá outra chance no mês que vem.

As carinhas de espanto se transformavam rapidamente em carinhas de nojo, tanto da sobremesa como das comensais. Como tínhamos coragem de comer sapo e, ainda, por cima, dizermos que era a sobremesa mais gostosa do colégio? As nossas expressões eram angelicais, dessas de filme. Depois de colocarmos o manjar dos deuses em seu devido lugar e incentivarmos ardorosamente nossas novas colegas a experimentarem o batráquio, dizíamos:

- Bem, se vocês não vão querer mesmo, se importam de nos dar?

Assim, todos os anos, no primeiro mês, as veteranas tinham a sobremesa repetida ou dividida irmamente nos pratinhos de sobremesa. Quanto mais novatas houvesse em nossa mesa, melhor: mais sapos a serem divididos.

O ardil só seria descoberto mais tarde e, como único consolo, no ano seguinte, elas poderiam passar o trote nas novatas.

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