sábado, 14 de agosto de 2010

O MARIDO QUE NÃO ERA


Pouco depois de divorciada, em 1996, tive um namorado sociólogo e antropólogo. Conversa vai, beijinhos vêm, acabou sabendo das minhas aventuras de internato. Acredito que ficou curioso por conhecer o testemunho de tantas aventuras, assuntar sobre o ambiente, curtir as sensações. Não sei ao certo as motivações. O fato é que gostaria de conhecer o colégio por dentro, depois de eu contar que era um prédio magnífico, digno de ser conhecido por sua altivez, espaço, acolhimento. Talvez sua formação acadêmica tivesse aguçado sua curiosidade. Acabei providenciando a visita, num lindo domingo ensolarado.

Era preciso telefonar, cumprir a receita protocolar: marcar dia, hora, enfim, todos os requisitos já tão meus conhecidos, mesmo trinta anos depois de ter passado por lá. Tudo na mesma: “quem quer visitar, porque, quem vem, quem não vem”. Tempos e mentes supostamente congelados ou era só preconceito meu? Marcados dia e hora, lá fomos nós. Adverti-o dos possíveis desconfortos: não sabia se, depois de tantos anos, haveria alguma freira que me reconhecesse e, se assim fosse, que não se incomodasse com o preconceito, já que elas teriam conhecido meu ex-marido e poderiam olhá-lo meio de viés. Além disso, havia o fato de ele ser quinze anos mais novo do que eu o que, por si só, mesmo na possibilidade remota de acharem que eu ficara viúva, já chamaria a atenção. Alertado cuidadosamente para isso, tocamos a campainha. O mesmo som, de há tantos anos passados.

Uma freira veio à janela e me apresentei, como sendo a tal ex-aluna visitante. Aguardamos na portaria, à espera de alguma outra religiosa que nos acompanhasse durante a visita. Muito esquisito para mim, que andara por aqueles corredores como quem anda por sua própria casa. Se você leu “o segredo”, logo verá que a superiora mudou. Em 2010 andei sozinha por todos os cantos, a fim de tirar fotos para o blog. A superiora mudou e, provavelmente, os tempos também. Mas, naquela tarde de 1996, tive de esperar que viesse uma religiosa que me tratasse como visita e não como a ex-aluna de tantos anos. Coisas da vida. Para minha surpresa, veio uma freira conhecida, a irmã da enfermaria. Quantas e quantas vezes eu inventara uma dorzinha de barriga só para subir ao quinto andar, refrescando um pouco a cabeça da sala do estudo da tarde. Não me reconheceu, mas, boa anfitriã, honrou a educação que eu mesma recebera, delicadamente nos levando por todos os cantos do prédio, o enorme colégio que precisa mesmo de um guia turístico para traçar todos os seus aposentos e corredores.

Não havia mais internato, o que modificou toda a estrutura dos antigos dormitórios. As salas de estudo, no entanto, continuavam as mesmas, chão impecavelmente lustroso e limpo, ambiente de quietude e discreto luxo. Mesmo cheiro, mesmos recantos que me contavam mil histórias. Meu companheiro era tratado com o maior cuidado e respeito, um tal de senhor para cá, senhor para lá. Ele me olhava com olhares de quem queria desdizer tantas de minhas recomendações anteriores. Nenhum preconceito. De minha parte, nenhuma saudade. Encontrei uma ou outra freira, na verdade, apenas duas, do meu tempo de escola: a professora de matemática (inesquecível) e a professora de pintura em porcelana, doce criatura. Todas bem, como se tivessem tomado formol importado por todos aqueles anos. Soube que muitas de minhas antigas mestras já haviam falecido, outras estavam aposentadas em casas da irmandade, em outros Estados, em algumas das muitas filiais dessas religiosas, espalhadas por todo nosso país.

Para meu companheiro, a visita foi de puro encantamento. O prédio, magnífico por fora e por dentro, recendia a aventura, bom gosto e, por que não dizer, nobreza. Na hora do lanche, fomos brindados com os quitutes da casa. Não resisti e perguntei se tinha “sapo”. O nome foi reconhecido pela irmã da enfermaria. Sorriu. Talvez eu tivesse tocado em algum momento feliz de seu passado. Olhou-me buscando em sua memória o que ou quem eu poderia ter sido. Mas, trinta e poucos anos não passam assim à toa, mesmo eu tendo sido quase filha da casa. Ademais, minha aparência tinha mudado muito, agora com mais de quarenta anos de idade e sem nenhum resquício da disciplinada aluna que eu fora. Senti que não ela conseguia alçar-me em sua memória, mas o “sapo” tinha sido um código de passagem, uma senha de um passado, talvez nostálgico, irrecuperável. Os tempos, com certeza, tinham mudado e, com ele, a juventude não só minha, mas da velha anfitriã. Disse-me que a sobremesa não era mais reconhecida por aquele nome e que, infelizmente, naquele dia não havia nenhum para servir-me. Mas tinha o bolinho de milho, que fazia questão de nos oferecer. Santos deuses, o bolinho de milho que eu tanto detestava... O que dizer, no entanto, diante de tão boa vontade? Rumamos para o refeitório, para meu sacrifício. O cheiro do chá, meu conhecido, mostrava que deveriam ser por volta das 15 horas, horário que reunia a comunidade para o lanche da tarde. Tínhamos chegado um pouco depois e o refeitório já estava vazio. O chá nos foi servido, com os tais bolinhos de milho. Fingi comer um deles, esperando um deslize da freira para passá-lo para o prato de meu companheiro. Boa boca, ele já estava se deliciando com o segundo deles. A freira foi buscar qualquer coisa e me aproveitei da oportunidade para passar-lhe o meu. Quando voltou, vendo meu prato vazio, me ofereceu generosamente mais um. Tentei recusar, dizendo-me satisfeita. Meu companheiro prendia o riso diante de meu constrangimento. Mas, diante da insistência, impossível negar. Ainda mais porque o bolinho era considerado sobremesa e sobremesa, para elas, significava prêmio. Acabei por comer um, com muito sacrifício, em nome dos passeios pelos corredores que esta freira, há trinta anos atrás, em seu antigo ofício, me proporcionara, deixando-me tomar um comprimidinho qualquer antes de voltar vagarosamente para minha sala de estudos, não sem antes passear um pouco pelo terraço.

A tarde, enfim, terminara e fomos gentilmente, levados até os portões do magnífico edifício incrustado no esplendor da Floresta da Tijuca. Na volta, ouvi comentários sociais e antropológicos a respeito de meu preconceito quanto à intolerância das freiras que, ao contrário do que eu preconizara, tinham acompanhado o desenvolvimento de nossa sociedade, tal a generosa forma com que ele fora tratado. Os tempos tinham mudado e eu, no entanto, é quem continuara com uma visão retrógrada em relação àquelas gentis e avançadas religiosas. Engoli o sermão bem quietinha e também perplexa por tão inesperada acolhida.

A vida é muito interessante. Eu nunca tinha me encontrado com aquelas religiosas na rua, durante tantos e tantos anos. Um mês depois, no entanto, passando pela Rua da Assembléia em pleno centro carioca, por incrível que pareça, eis que me deparo nem mais nem menos, com a mesma irmã anfitriã, devidamente acompanhada de uma outra da comunidade. Tinham vindo ao oculista, se não me engano. É preciso esclarecer que, por princípios religiosos, elas nunca saem sozinhas. Estão sempre em dupla ou em tripla. Abordei-a por causa da coincidência, achando interessante nos encontrarmos novamente, um mês depois, após tantos anos sem nunca ter visto nenhuma delas pelas ruas. Ela sorriu e me perguntou:

- E o marido, como está?

- Marido?


Caiu a ficha. Em ambas. Eu, por recuperar, de pronto, toda a minha ciência sobre um preconceito supostamente não existente; ela por sentir-se enganada, traída em sua confiança. Afinal, tratara tão bem a quem?

- Aquele senhor não era seu marido?

- Não, eu me separei há mais de um ano...


A freira que a acompanhava arregalou os olhos:

- Você se separou, minha filha? Por quê? Ele batia em você?

Olhei-a, incrédula! Juro pelos deuses que foi o que ouvi. Apesar de ter sido educada por elas, a pergunta não conseguia fazer sentido para mim!

- Não, ele não me batia.

- Então, por que se separou?

- Ué, não deu certo.

- Minha filha, você está vivendo em pecado diante de deus nosso senhor! Os casamentos são para sempre, até que a morte os separe!

- Irmã, não me sinto vivendo em pecado. Pecado seria submeter-me à infelicidade!

- Mas você está vivendo em duplo pecado agora,
disse a irmã anfitriã, lembrando-me de meu acompanhante.

- Irmã, Deus sabe de minhas intenções.

- Como você consegue dormir à noite? Isso é inconcebível diante das leis de deus!


Não quis lembrá-la do antigo testamento e do monte de “poligamias lícitas” nele contidos. Não valia a pena. Apenas respondi:

- Durmo com meu travesseiro e na santa paz do senhor, que tudo sabe. Poupei-a de acrescentar “e com o meu namorado”. Seria demais.

A outra irmã indagou, como que querendo salvar-me de um naufrágio iminente:

- Você teve filhos?

- Não.

- Ah, minha filha, então ainda há salvação: peça anulação do casamento.

- Anulação do casamento? Depois de 22 anos de casada e divorciada?

- Sim,isso é possível, pois o casamento não foi abençoado! Você pode entrar com um processo no Vaticano.

- Para quê?

- Para redimir-se diante de deus.

- E preciso de um papel dos homens para redimir-me diante de Deus?

- É a única forma de salvar a sua alma. Só então poderá casar-se novamente e viver em paz na fé da santa amada igreja.

- E quem disse que eu quero me casar com o meu namorado?


Foi o suficiente. Quase me arrependi de ter dito isso. As freiras estavam horrorizadas. Pensei que poderiam ter um ataque ali mesmo. Tentei consertar:

- Irmãs, fiquem tranqüilas. Eu me sinto em paz com Deus. Ele sabe de todas as coisas e também da minha retidão.

As freiras pareciam petrificadas. Tive pena, mas não havia mais jeito. Elas estavam perplexas e eu condenada às chamas do inferno para sempre! Destino selado, depois de tantos anos de uma educação religiosa perfeita. Eu tinha posto tudo a perder. Elas pareciam inconsoláveis. A irmã anfitriã baixou os olhos, senti seus dedos buscarem o rosário que eu sei que elas sempre trazem no bolso, um pouco à mostra. Queria assegurar-se de que deus estaria por perto. A outra segurou o crucifixo que trazia ao peito. Foi um momento de constrangimento entre o céu e a terra. Não havia como sossegá-las. Talvez, quem sabe, só na próxima encadernação. Nesta, já estavam mesmo comprometidas demais com seus dogmas. Paciência. Ensaiei uma despedida cortês, logo recebida por elas. Afastaram-se às pressas, querendo distância do convívio com as tentações terrenas e com as infestações desta alma perdida para a fé da igreja para sempre.

Cheguei em casa ávida para contar as novidades ao meu companheiro. Ele apenas sussurrou:

- Quem diria... e eu estava tão crente... Sorriu. Eu me senti em casa. Aconcheguei-me a ele e por minha mente passaram muitas e muitas recordações de hábitos e costumes, felizmente não arraigados em meu coração.

Ficamos, assim, em silêncio, ele tendo percebido meu recolhimento, minha satisfação interna de não estar impregnada por repressões sem sentido. E, como prêmio, condescendente, enlaçou carinhosamente sua ilustre pecadora.

3 comentários:

Celina disse...

Adorei esse texto, querida. E como pecadora me identifiquei com ele. Adoro como você escreve. BJs

pblower disse...

Desta vez demorei, pois estava viajando, mas aqui estou e este conto eu não conhecia.

Engraçado... como também pecadora... Adorei o texto!

beijocas caribenhas

Anônimo disse...

Décadas se passam mas algumas coisas não mudam mesmo... Os dogmas são "eternos"... A igreja decide e Deus acata... Agora, conhecendo o lugar (liníssimo mesmo!) e uma amostra das "figuras", fica fácil "ver" as cenas... Deve haver no céu uma ala especial para estas crédulas e rígidas mentes! Deve ser uma ala de lavagem especial!!!! Adorei o conto, mais ainda depois do dia tão especial que você me proporcionou e que volto a agradecer!!! Bjs. Miria